As eleições de 2024 registraram um aumento nas candidaturas de mulheres negras e indígenas em comparação com pleitos anteriores. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), das 158 mil candidatas, 81 mil se autodeclaram negras e 961 indígenas, ou seja, mais da metade. No entanto, mesmo na maior eleição municipal de todos os tempos, essas mulheres continuam enfrentando desafios históricos e estruturais que perpetuam as desigualdades na política.
O movimento Mulheres Negras Decidem (MND), organização da sociedade civil que promove a participação de mulheres negras na política, denunciou a prorrogação do repasse de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do Fundo Partidário, adiado para 8 de setembro, ultrapassando o prazo original de 30 de agosto. Segundo o MND, o atraso prejudica candidaturas que não dispõem da mesma estrutura e recursos que candidatos já em mandato.
Candidatas ao cargo de vereadora ou prefeita em Santa Catarina que responderam à convocatória do Catarinas também apontaram o atraso no repasse de verbas como uma das principais dificuldades em suas campanhas. Elas são filiadas aos partidos PT, PSOL, PSB, PCdoB, PSD, Unidade Popular pelo Socialismo e Progressistas.
O Catarinas entrevistou candidatas impactadas pelo subfinanciamento para entender como isso limita suas chances de competir em igualdade. Também consultou organizações que promovem a equidade de gênero na política para conhecer as estratégias para superar esses desafios.
Verba eleitoral concentra-se em candidatos brancos
Dados do boletim “As Chances de Ser Eleito: Branquitude e Representação Política”, do Observatório da Branquitude, revelam que 70% da verba pública eleitoral nas últimas eleições foi destinada a candidatos brancos, ampliando em 6,6 vezes suas chances de eleição. Portanto, quem recebe mais financiamento tem mais chance de vitória.
A pesquisa analisou a distribuição de verba eleitoral considerando raça/cor e gênero dos deputados federais eleitos em 2018 e 2022. Apesar da Lei Nº 13.195 que determina a distribuição proporcional de recursos com base no número de candidatos, a regra foi descumprida.
“Se alguém ainda tem dúvidas sobre como a branquitude estabelece pactos para manter o poder, esse boletim é uma boa ilustração”, afirma Carol Canegal, coordenadora de pesquisa do Observatório. Ela chama a atenção para a aprovação da PEC da Anistia em agosto no Senado – em um acordo que envolveu partidos normalmente antagonistas, como PT e PL.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) perdoa dívidas de partidos que não cumpriram a aplicação mínima de recursos em candidaturas de pretos e pardos em eleições passadas e permite a renegociação de suas dívidas tributárias.
“Trata-se de uma medida bastante ameaçadora. Além do retrocesso, essa PEC reflete uma aliança suprapartidária. Seja de direita ou de esquerda, houve um amplo consenso dos partidos na rápida aprovação dessa medida”, analisa Canegal.
Falta de recursos impacta realização das campanhas
Evelin Moreira (PT), candidata à vereadora de Curitiba (PR), é uma das impactadas pela prorrogação denunciada pelo MND. A campanha eleitoral começou em 16 de agosto, mas ela só recebeu recursos uma semana depois, e, mesmo assim, o valor foi bem abaixo do esperado.
Segundo a candidata, não houve uma definição transparente sobre o valor que ela receberia nem sobre como seria feita a distribuição entre os candidatos, algo que impactou o planejamento de sua campanha.
“Diversas candidaturas de mulheres, especialmente mulheres negras e indígenas, receberam apenas R$16 mil. Quem faz campanha sabe que esse valor não chega nem perto do que é necessário para custear uma campanha eleitoral competitiva”, ressalta.
Jovina Renhga, do povo Kaingang, também candidata à vereadora pelo PT em Curitiba, recebeu o mesmo valor e conta com apoio voluntário e doações para continuar na disputa. Os recursos escassos lhe impedem de realizar atividades básicas de campanha, como imprimir materiais de divulgação e se deslocar para regiões mais distantes da aldeia Kakané Porã, onde mora.
Renhga relata que a situação a deixou abalada física e emocionalmente: “Tudo o que estou passando é muito doloroso e está acontecendo com outras pessoas. Desde 1.500 sofremos com o racismo. Estou aqui para lutar por igualdade; não sou melhor que ninguém, sou apenas uma mulher indígena, falante da minha língua, que vive seu costume e tradição. Se você estiver passando pelo mesmo problema, fale. Denuncie a discriminação e o racismo porque precisamos acabar com isso”, desabafa.
Moreira buscou explicações junto ao partido, mas não obteve respostas. “A única coisa que eu sei é que a minha candidatura e a candidatura de outras mulheres pretas e indígenas foram tratadas como candidaturas sem potencial de eleição”, afirma.
Jovina Renhga, por sua vez, inicialmente não buscou diálogo com o partido, mas pretendia fazê-lo, pois, segundo ela, “se nada for feito, a situação não vai mudar”.
Movimento pressiona partidos
A equipe executiva do Mulheres Negras Decidem (MND) enviou dois ofícios, um para o PT Curitiba e outro para o PT Paraná, mencionando Evelin Moreira e Giorgia Prates, que atualmente está concorrendo à reeleição e atua como articuladora política do MND. A solicitação ao partido foi que compartilhasse informações sobre o andamento da distribuição de recursos, de acordo com os critérios estabelecidos pelo partido e em conformidade com a Emenda Constitucional 133. Esse movimento gerou desconforto entre os membros do partido, segundo a candidata, por deixar em evidência o racismo institucional.
Após a ação das advogadas do MND, ela recebeu um depósito adicional de R$ 36 mil. De acordo com Tainah Pereira, coordenadora política do movimento, a organização também enviou ofício ao PSOL do Rio de Janeiro sobre casos públicos de violência política de gênero e raça envolvendo as candidatas Ariane Magalhães, Janilce Magalhães e Thais Ferreira que também são da Comunidade MND.
“O partido respondeu que está atento às denúncias e prestando os apoios necessários. Ainda assim, contribuímos para a formalização de denúncias junto ao TRE-RJ”, afirma Pereira.
Atualmente, a organização está com a campanha #MulheresNegrasEleitas, que aborda temas como subfinanciamento, violência política de gênero e raça, comunicação política, agendas setoriais como clima, segurança e mobilidade, e a importância do engajamento cívico no processo eleitoral.
Atrasos tornam a disputa desigual
Bia Vargas, candidata à vereadora em Florianópolis (SC) pelo PT, também buscou explicações. No início de setembro, ela tinha recebido apenas um terço do fundo eleitoral, valor definido internamente pelo partido com base em critérios de prioridade.
Mas as justificativas para a demora foram variadas e contraditórias: “Alguns candidatos não receberam por pendências ou por terem conta na Caixa, mas a minha é no Banco do Brasil, por exemplo, e também não houve repasse. Enquanto isso, candidaturas não negras e não indígenas já receberam”.
Mesmo sendo uma candidata com visibilidade por já ter concorrido a vice-governadora, ela enfrenta dificuldades, o que, segundo ela, é ainda mais desafiador para quem está disputando uma eleição pela primeira vez e não possui o mesmo reconhecimento ou experiência. “Um dia perdido de campanha são 50, 100 votos que não conseguimos alcançar”, destaca.
Vargas alerta que essa falta de transparência reforça as desigualdades que o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) pretende combater. Criado em 2017, o FEFC é um recurso público destinado a financiar campanhas eleitorais no Brasil, distribuído entre os partidos conforme critérios como representação no Congresso e a presença de mulheres e candidatos negros. Para o pleito de 2014, o fundo alcançou um dos valores mais expressivos da sua história, com quase R$ 5 bilhões.
“O objetivo [do fundo] é garantir uma disputa digna para essas candidaturas, mas o atraso impede isso. Este ano temos o maior número de candidaturas negras no país e a falta de repasse afeta a chance de uma disputa mais justa”, diz.
Boas campanhas também não garantem apoio
Fazer uma boa campanha não garante apoio e valorização por parte dos partidos em que as candidatas estão filiadas. A cientista social Luciana Freitas vivenciou isso na prática ao se candidatar a vereadora em Florianópolis (SC) em 2020 e a codeputada em 2022, na chapa com Vanda Pinedo, pelo PT.
Apesar de reconhecer a limitação dos recursos financeiros para sua campanha, ela aceitou a candidatura. Durante a trajetória, percebeu que, mesmo sendo uma candidata forte, com debates sólidos sobre questões raciais e de gênero, o partido não deu o apoio necessário à sua candidatura, preferindo investir em outros candidatos.
“Como mulher negra da periferia, que já tinha construído um debate significativo, senti falta do suporte que outros candidatos receberam e expressei essa decepção em reunião. Minha crítica foi recebida com surpresa, e isso diminuiu meu entusiasmo em continuar no partido, já não sentia o mesmo brilho nos olhos”, conta.
Freitas também foi preterida em um acordo de rodízio parlamentar que lhe permitiria ocupar uma cadeira na Câmara Municipal por um mês. A expectativa era que ela assumisse a vaga após a saída do titular, já que devido a quantidade de votos que ela alcançou, ela seria a próxima no rodízio. No entanto, um homem branco que já havia ocupado a posição foi escolhido.
O rodízio de suplentes em uma câmara municipal é uma prática adotada por alguns partidos políticos, especialmente quando há coligações ou acordos internos. A ideia é dividir o tempo do mandato entre aqueles que ficaram próximos de se eleger para que mais pessoas tenham a experiência parlamentar e a oportunidade de representar suas bases.
“Os partidos promovem a questão das cotas e a diversidade em suas estruturas, mas, na hora de realmente fomentar, apoiar, encorajar e dar visibilidade a mulheres e homens negros, o pacto da branquitude permanece intacto”, diz Freitas.
A falta de suporte do partido e as dificuldades financeiras durante e após a campanha contribuíram para sua desilusão, levando-a a se desfiliar.
Regras de paridade deveriam ser respeitadas pelos partidos
Desde sua fundação em 2019, o Instituto Marielle Franco recebe relatos semelhantes aos apresentados na matéria, segundo a diretora executiva, Lígia Batista. A organização tem atuado em prol da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7706, no Supremo Tribunal Federal (STF), que busca derrubar a PEC da Anistia, sustentando que as normas propostas ameaçam as políticas afirmativas que promovem a participação política de mulheres e pessoas negras.
Para Batista, uma das medidas essenciais para valorizar e apoiar essas mulheres é o “respeito às regras do jogo”, uma vez que já existem normas que estabelecem paridade.
“É essencial que os partidos sigam as normas e que haja fiscalização rigorosa por parte da justiça eleitoral e do Ministério Público, garantindo que as autoridades imponham o constrangimento institucional necessário e responsabilizem os partidos que não cumprem essas regras”, afirma.
A diretora executiva acrescenta que as eleições municipais trazem outros desafios devido ao grande número de candidaturas em mais de 5 mil municípios, principalmente para aqueles fora dos grandes centros urbanos onde as disputas recebem menos visibilidade.
Para dar conta dessa capilarização, o instituto está com três frentes de trabalho: a campanha “Não Seremos Interrompidas”, que conscientiza sobre a violência política contra mulheres negras e pressiona por mecanismos de proteção; o projeto “Ocupa Marielle Franco”, que apoia a eleição de mulheres negras defensoras dos direitos humanos, fortalecendo redes em diversas cidades do Brasil; e a “Agenda Marielle Franco”, um conjunto de propostas de políticas públicas focado em combater desigualdades e promover mudanças sociais.
“A sociedade civil deve apoiar e celebrar essas mulheres, que muitas vezes representam nossas lutas no espaço político. Nosso objetivo não é apenas aumentar a representação, mas garantir que elas ocupem e permaneçam de forma segura e sustentável nesses ambientes”, afirma.