Correspondência entre Machado de Assis e Carolina Augusta ilumina uma relação complexa de amor
Nos últimos anos, tenho me dedicado a uma missão no mínimo desafiadora: escrever a primeira biografia de Machado de Assis que aborda sua identidade como autor negro. Aqueles que acompanham meus artigos no Brasil de Fato ou minhas redes sociais já sabem que essa jornada tem revelado inúmeras novidades sobre o escritor, proporcionando um olhar inédito e detalhado sobre sua trajetória.
Uma descoberta particularmente reveladora foi a troca de correspondências poéticas entre Machado e sua esposa, Carolina Augusta, que lança nova luz sobre a vida íntima do autor. Ao longo da pesquisa, tenho analisado centenas de livros e milhares de artigos — todos catalogados e organizados em softwares especializados. No entanto, mesmo com uma biografia planejada de 1500 páginas divididas em dois volumes, como será a minha, é evidente que será impossível capturar todas as nuances e dimensões que constituem o legado deste gênio literário.
A relação entre Machado de Assis e sua esposa, Carolina Augusta, é frequentemente mal interpretada. No entanto, ao aprofundar minha pesquisa sobre suas vidas, uma realidade mais complexa e fascinante se revelou. Carolina (1835-1904) jamais foi uma figura secundária na trajetória do autor; ela se destacava como uma mulher independente e à frente de seu tempo, desafiando as convenções de gênero e incentivando o lado inquieto e aventureiro de Machado. Sua coragem e ousadia deixavam uma marca inspiradora e dominante.
Enquanto alguns amigos escritores de Machado a viam como autoritária, o próprio autor reconhecia nela uma essência única e extraordinária.
Uma força que o acompanhou por quase 35 anos até sua morte, em 1904. A história de amor e parceria do casal, uma narrativa rara e comovente, foi revelada em detalhes a mim por João Francisco Sombra, neto de dona Laura Leão de Carvalho, sobrinha-neta de Carolina e única herdeira de Machado de Assis, trazendo à tona uma dimensão surpreendente da vida do maior nome da literatura brasileira.
Há muitos anos, ainda um adolescente, Sombra fez uma descoberta surpreendente ao encontrar um bilhete amoroso escrito por Machado de Assis em forma de poema, delicadamente guardado entre as páginas de um exemplar de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que pertenceu ao próprio autor. A revelação ocorreu na antiga biblioteca da casa de sua avó, dona Laura Leão de Carvalho, no bairro carioca da Tijuca.
Com versos simples e sinceros, o bilhete trouxe à tona um lado mais íntimo do célebre escritor, conhecido por clássicos como “Dom Casmurro”, “Quincas Borba” e “Helena”, mostrando um Machado que se comunicava com sua esposa, Carolina, por meio de mensagens poéticas escondidas nos próprios livros. “Vovó, encontramos um bilhete do Tio Machado!”, exclamou Sombra. A avó, conhecedora das histórias familiares, orientou: “Leia e devolva o bilhete à mesma página, do mesmo livro. Veja a referência ao final, e você entenderá”.
O bilhete encontrado era parte de um diálogo literário contínuo e íntimo entre Machado de Assis e sua esposa, Carolina. Nas páginas de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado deixava versos para ela, e Carolina respondia, sugerindo outra página de um livro diferente, mantendo assim a troca ativa e envolvente. Um exemplo desse jogo literário: se o bilhete terminava com uma referência como “Dom Casmurro/73”, Carolina sabia onde procurar a próxima resposta. O bilhete era então respondido por ela, referenciando a página de um outro livro. Esse sistema engenhoso, quase um hipertexto analógico, antecipa práticas modernas de interatividade textual que o autor argentino Julio Cortázar, conhecido por seu inovador “O Jogo da Amarelinha”, certamente teria apreciado.
É intrigante como a correspondência entre Machado de Assis e sua esposa Carolina, escondida nas páginas de seus livros, antecipa de forma surpreendente o dinamismo das mensagens breves que hoje trocamos por WhatsApp, Telegram ou X/Twitter. Assim como utilizamos as plataformas digitais para expressar pensamentos, emoções e afeto em poucas palavras, Machado demonstrava uma agilidade e concisão notáveis em sua escrita, características que se tornaram mais evidentes em suas obras da segunda fase. Sempre em sintonia com as tecnologias do seu tempo, é fácil imaginar que Machado, com seu olhar atento e inovador, encontraria nas atuais plataformas digitais uma nova forma de perpetuar suas mensagens, criando um diálogo atemporal que poderia transcender a literatura.
Assim como os bilhetes de Machado de Assis, cuidadosamente escondidos nas páginas de seus livros, formavam um hipertexto rudimentar, as mensagens digitais de hoje continuam a expandir as narrativas de nossas vidas em fragmentos espalhados por diferentes plataformas digitais. A questão que permanece (ao menos para mim) é se esse vasto emaranhado de informações facilitará o trabalho dos biógrafos do futuro ou se, ao contrário, complicará a reconstrução dessas histórias pessoais.
João Francisco Sombra, que há muitas décadas perdeu contato com os livros da biblioteca na antiga casa de sua avó (falecida em 1988), ainda acredita que muitos bilhetes de Machado de Assis possam estar guardados nas páginas da edição da Garnier de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e em outros volumes da biblioteca do autor — “se não foram (ao longo do tempo) perdidos, escafedidos, gatunados ou defenestrados”, como ele pondera. Enquanto os livros permaneceram na velha casa da Rua Uruguai, Tijuca, Sombra assegura que os bilhetes ficaram intocados, exatamente como Machado os deixou ao falecer em 1908. O que aconteceu depois é incerto.
Ainda há muito a ser revelado sobre Machado de Assis. A história dos bilhetes trocados entre ele e sua esposa, Carolina, revela um lado íntimo e quase secreto da vida do escritor, destacando “o mínimo e o escondido” em sua trajetória. Esses documentos são um lembrete poderoso de que, mesmo no auge de sua genialidade literária, Machado era, acima de tudo, um homem que amou profundamente. Ao explorarmos esses singelos bilhetes, entendemos que o amor, assim como a literatura, sempre encontra um caminho para resistir ao tempo.
*Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Mariana Pitasse