Racismo e violência obstétricos são fatores decisivos para a iniquidade da assistência em saúde
Débora Allebrandt*, Raquel Lustosa** e Stephania Klujsza***
Em abril de 2024 um caso de morte materna circulou entre veículos de notícias do estado do Maranhão: Juliana Vieira dos Santos, de 30 anos, gestante com 7 meses de gravidez morreu oito horas após buscar atendimento em uma maternidade municipal. A informação veio a público através de denúncias e protestos da família de Juliana que aponta negligência da equipe de saúde. Segundo entrevistas cedidas por familiares de Juliana aos portais de notícias, ela chegou na unidade de saúde buscando cuidados, foi medicada, não recebeu atenção da médica, teve complicações no quadro de saúde e morreu após uma parada cardíaca.
O caso de Juliana descortina uma realidade devastadora, embora comum na vida reprodutiva de meninas, mulheres e pessoas que gestam, quando o assunto é assistência a gestação, parto, puerpério e ao aborto. Em 2002, no Rio de Janeiro, Alyne Pimentel, mulher negra de 28 anos, também foi vítima das inúmeras falhas em saúde sexual e reprodutiva que tornam o Brasil recordista em morte materna por causas evitáveis. Grávida de cinco meses, Alyne buscou assistência em uma maternidade após sentir dores abdominais intensas, mas enfrentou atraso no atendimento, peregrinação na rede de saúde e negligência na assistência, falecendo cinco dias após buscar ajuda pela primeira vez.
Em 2011, o Brasil foi condenado pela morte da jovem, sendo obrigado a indenizar a família de Alyne. Foi a primeira vez em que o Comitê para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Mulheres (CEDAW) tratou o tema da mortalidade materna como violação dos direitos humanos em âmbito internacional, o que tornou a morte de Alyne um caso emblemático.
O Comitê CEDAW cobrou do governo brasileiro uma série de ações visando a melhoria do serviço ofertado, que instituiu a Rede Cegonha como resposta. Atualmente, ao lançar a reestruturação da Rede Cegonha e anunciar novos investimentos, o governo federal rebatizou a rede que passa a se chamar agora Rede Alyne, cujo objetivo é a redução da mortalidade materna.
Ambos os casos retratam a “evitabilidade” do óbito materno no Brasil, que perpassa questões como qualidade da assistência ao ciclo gravídico puerperal e ao aborto, falta de vinculação dos equipamentos de saúde, falhas na formação e atualização profissional, rotatividade e sobrecarga dos profissionais de saúde, intensa medicalização da atenção ao parto, peregrinação na rota de parturição, violência e racismo obstétrico e a criminalização do aborto. Vale ressaltar um levantamento recente do DataSUS que indicou que entre 2018 e 2023, 407 meninas e adolescentes de 10 a 19 anos entraram para a cifra da morte materna devido a complicações na gestação. Deste número, 17 tinham menos de 14 anos e levaram a diante uma gestação de risco, devido a faixa etárea, e sem acesso aos serviços de aborto legal, tendo em vista que a relação com menores de 14 anos é considerada violência sexual e se enquadra nos permissivos legais para o aborto no Brasil.
Entre as principais causas da mortalidade materna estão: hemorragias (principalmente sangramento após o parto); infecções (geralmente após o parto); hipertensão arterial durante a gravidez (pré-eclâmpsia e eclâmpsia); complicações do parto; e situações decorrentes do aborto inseguro. Por esses motivos, a mortalidade materna compõe o quadro de "Óbitos por causas evitáveis" - documento produzido pelo Ministério da Saúde (2011) e ecoado por especialistas nesta temática. Isto significa dizer que pode ser prevenível e evitável com “ações adequadas de prevenção, controle e atenção às causas de morte materna” no ciclo gravídico puerperal e na atenção ao aborto, já que se conta com tecnologia efetiva para evitá-las e com o conhecimento de que tais mortes são atravessadas por regimes de desigualdades sociais marcados pelo gênero e suas interseccionalidades, como a raça.
Diante deste cenário, o Brasil parece estar cada vez mais distante do compromisso firmado junto a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre as metas de desenvolvimento sustentável, de reduzir as taxas de mortalidade materna para até 2030, para 30 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos. Em 2022 essa taxa foi de 55,7 óbitos para 100 mil nascidos vivos.
No DATASUS os dados mais atuais de iniquidade em saúde reprodutiva apresentam que, somente em 2022, foram notificados 1.370 óbitos maternos no Brasil, sendo 430 no nordeste. Ao analisarmos esses índices a partir da cor/raça, identificamos que: I) 397 dos óbitos maternos foram de mulheres brancas - 77 no nordeste; II) 926 foram referentes a mulheres negras (188 pretas e 738 pardas), sendo 341 no nordeste, 26 das 30 mulheres eram negras (3 pretas e 23 pardas); III) 23 dos óbitos tiveram a cor/raça ignorada, sendo 8 no nordeste - maior número entre todas as regiões do país. O que esses números revelam é o quanto o impacto da raça e da cor impactam com desfechos fatais mulheres negras e pardas e uma desproporcionalidade de óbitos no nordeste do país.
De acordo com estudos realizados pelas autoras que assinam este texto e vinculadas ao eixo maternidades violadas da Rede Transnacional de Pesquisa sobre Maternidades Destituídas, Violadas e Violentadas (REMA), a morte materna não é apenas uma estatística. Uma entrevista cedida à Débora Allebrandt, uma das autoras deste texto, com uma profissional de saúde que atua num hospital maternidade de Maceió revela a dor de se deparar com a evitável perda de uma vida. Flor (nome fictício) é uma enfermeira obstetra e narrou a situação de uma gestante, Lis (nome fictício), de 28 anos, que estava gestando sua terceira filha e apresentou um quadro de placenta prévia, que causa hemorragia. Conforme relatou, a paciente tinha chegado à maternidade em uma situação crítica, com “pouquíssimo nível de hemácias no sangue” e com “risco de morte”. Ademais, Lis “não podia ser tocada” já que, por conta do diagnóstico da placenta prévia, o toque vaginal poderia incidir em sangramento potencialmente fatal:
Eu estava cuidando dessa paciente vários dias já, cuidando dela com muito vínculo com ela. E ela estava melhorando. O prognóstico dela, quando ela chegou no hospital, era muito ruim, mas aí ela melhorou muito então a gente ficou bem feliz com a situação de saúde dela. E um belo dia eu fui pra casa, né? Porque a gente ficava 12 horas por dia. Fiquei de 7h às 19h cuidando dessa paciente e de outras e fui pra casa. E no outro dia eu cheguei e essa paciente tinha falecido. (Entrevista realizada para pesquisa Desafios e Estratégias da educação permanente na Saúde Materno-Infantil de Alagoas - 2022)
A surpresa de Flor foi ainda maior ao saber que durante a troca de turnos, outra profissional realizou o toque vaginal que resultou no sangramento de Lis e a levou à morte. Mesmo com sinais de alerta importantes no histórico clínico de Lis, o diagnóstico da placenta prévia e todas as informações do atendimento foram desconsideradas e não receberam atenção como deveriam. Como continuou a enfermeira, a morte de Lis foi consequência desse erro:
Por conta de um erro profissional. Um erro assim foi fatal, né? Ela estava bem e tudo o mais e ela começou a sangrar. Não conseguiram estabilizar, ela foi para o centro cirúrgico, fez é.. tirou o útero, né? Tirou bebê, tirou tudo, mas mesmo assim ela teve choque hipovolêmico e aí ela veio a óbito, né? Por conta de um procedimento que não poderia ter sido feito. Então assim, nesse dia eu não consegui continuar no plantão, né? Eu fiquei muito, muito, muito mal, sabe? Ainda vi o esposo chegando e recebendo a notícia. Então assim, pra mim aquilo foi uma morte materna por uma coisa tão, tão insignificante que poderia não ter acontecido por uma profissional que… O toque não foi registrado no prontuário. Eu fiquei muito mal com aquela situação, eu tinha vontade de desistir…porque eu achava que aquele ambiente eu não ia conseguir trabalhar naquele ambiente. As coisas ficaram por isso mesmo, o hospital não fez nada (...). (Entrevista realizada para pesquisa Desafios e Estratégias da educação permanente na Saúde Materno-Infantil de Alagoas - 2022)
“Ela não podia ser tocada” e “Eu estava cuidando dessa paciente” são frases que ecoam da narrativa de Flor com a descrença de um desfecho trágico e devastador. A morte de Lis poderia ter sido evitada, assim como a de Juliana Vieira, de Alyne Pimentel e de tantas outras que são vitimadas diariamente pela morte materna. A realização recorrente e rotineira de toques vaginais em parturientes pode ser considerada violência obstétrica, sobretudo quando esses toques são repetidos, invasivos e violentos. Ademais, a falta de registro no prontuário - uma peça valiosa para a investigação do óbito materno - e a consequente histerectomia são fatores agravantes das falhas no atendimento. O exame realizado em Lis, além de ser desnecessário, oferecia um risco a sua vida. Mesmo assim ele foi realizado e sua vida ceifada, sem que houvesse responsabilização da equipe de saúde e da instituição.
É importante destacar que a morte materna é a “ponta do iceberg”. Um evento muito mais comum e que não leva à morte materna, mas que pode causar danos, às vezes permanentes, e prejuízos, é o near miss materno que, traduzido para o português, significa “quase erro” ou “quase falha” . Segundo a OMS, o near miss materno é caracterizado como “uma mulher que quase morreu, mas sobreviveu à complicação que ocorreu durante a gravidez, parto ou até 42 dias após o fim da gestação” e vem sendo considerado mundialmente como indicador importante para combater a mortalidade materna, pois as mulheres que sobrevivem a complicações graves têm muito em comum com as que morrem no ciclo gravídico-puerperal.
Um estudo realizado a partir de dados da Pesquisa Nascer no Brasil, apresenta a incidência de 10,2 por mil nascidos vivos, dados que podem ser ainda maiores, já que não foram incluídos no estudo os dados de abortamento, complicações ocorridas no puerpério após a alta hospitalar, em hospitais de pequeno porte, por exemplo. As incidências mais elevadas de near miss materno foram identificadas, neste levantamento, em mulheres com 35 anos ou mais de idade, com maior número de cesarianas anteriores, gestação de risco e com situações de internação durante a gestação, que tiveram o parto com financiamento público e parto a fórceps ou cesárea. Além disso, cabe destacar que a peregrinação para conseguir atendimento no momento do parto é um fator de risco identificado no estudo, o que pode aumentar o risco de transfusão sanguínea e histerectomia, por exemplo.
Nesse panorama, é preciso compreender que as mortes maternas e as situações de near miss materno caminham juntas com a noção de violência e racismo obstétrico, já que as primeiras englobam uma série de situações que podem ser consideradas como violência. Violência obstétrica é um termo cunhado para denotar práticas de desassistência, discriminação, negligência e violação que vem em forma de práticas e condutas clínicas não baseadas em evidências, realização de procedimentos sem orientação e sem consentimento e desrespeito durante o atendimento.
Em 3 de maio de 2019, a então gestão do Ministério da Saúde (MS) se posicionou afirmando que não reconhecia o termo violência obstétrica e que ele não seria utilizado em nenhum documento do governo, pois entendia que o termo seria uma conotação inadequada, já que, para eles não é intenção do médico prejudicar ou causar dano à mulher. Nessa ocasião, a FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), o CFM (Conselho Federal de Medicina) e o CREMERJ (Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro) se posicionaram a favor do despacho do MS. A tentativa de desqualificar a discussão, que reivindica uma assistência de melhor qualidade para mulheres, meninas e pessoas que gestam, está pautada no objetivo de excluir a pauta, a retirando inclusive do vocabulário.
Um recente levantamento de estudos realizado por Tatiana Leite e outras pesquisadoras do campo da saúde mostrou algumas das práticas mais mencionadas por mulheres que passaram por situação de violência durante a gestação, parto, puerpério e abortamento: negação de analgesia, procedimentos invasivos e não consentidos, tratamento com suspeição e negativa de cuidado e impossibilidade de comunicação com a equipe de saúde para informação e pedido de cuidado. Nesse sentido, vale ressaltar que as mulheres negras são as mais afetadas com os efeitos da violência obstétrica, tendo em vista que são elas que recebem um pré-natal inadequado - com menos número de exames e consultas; as que mais peregrinam para parir; as que têm menos acesso à analgesia e a intervenções necessárias como a cirurgia cesariana quando há necessidade.
Daná-Ain Davis define como “racismo obstétrico” a fusão da violência contra as mulheres durante o ciclo gravídico-puerperal. A autora entende que o racismo obstétrico é uma extensão da estratificação racial sinalizando a importância de explicitar que mulheres negras vivenciam historicamente uma realidade de negação de direitos sexuais e reprodutivos, o que significa que elas não vivenciam a violência obstétrica da mesma forma que mulheres brancas. Segundo a Dána-Ain, o racismo obstétrico se encontra na intersecção entre a violência obstétrica e o racismo médico. Este último é compreendido quando a raça do paciente influencia no tratamento que recebe, colocando-o em risco.
Este conceito é especialmente importante quando destacamos as estatísticas, as histórias e o cenário mais amplo da mortalidade materna: preenchido de forma majoritária por mulheres negras que são vítimas do abandono e do racismo institucional que permeia as práticas de saúde. Retomamos os dados que trouxemos no início do texto e como a mortalidade materna incide de forma contundente entre gestantes e puérperas pretas e pardas. Ao avaliarmos os óbitos por causas obstétricas diretas e indiretas, fruto de complicações existentes no ciclo gravídico-puerperal e no aborto e que apontam também para a qualidade da assistência recebida, precisamos encarar que a violência obstétrica e o racismo obstétrico são fatores decisivos para a reincidente iniquidade da assistência em saúde. Para a socióloga estadunidense, Ruha Benjamin, examinar a incidência da mortalidade materna sobre a população negra é compreender que raça não é um fator de risco, mas o racismo é.
*Débora Allebrandt é mãe de Olívia e Íris, antropóloga, professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas e membro do Mandacaru – Núcleo de Pesquisa em Gênero, Saúde e Direitos Humanos, Rede Anthera e REMA.
**Raquel Lustosa é pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética e Direitos Humanos e da REMA/CNPq. Integra o núcleo de pesquisa em Família, Gênero e Sexualidade (FAGES) e é doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
***Stephania Klujsza é pesquisadora da REMA/CNPq e do INCT - InEAC, doutora em Antropologia pela UFF e pós-doutoranda em Saúde Coletiva pelo IESC/UFRJ.
***Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Mariana Pitasse