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'Hiato de produto': economistas ortodoxos e o tamanho das asas dos anjos

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O “hiato de produto” é a diferença entre o produto potencial e o que a economia de fato está produzindo agora - Marcello Casal JrAgência Brasil
Hiato de produto é uma medida de quão aquecida está a economia

Semana passada, o Banco Central decidiu aumentar a taxa Selic em 0,25 pontos percentuais, para 10,75%. Os economistas do mercado ficaram frustrados com o aumento “pequeno”. Dentre outros argumentos mais esdrúxulos, apareceu um que vamos ver cada vez mais: o tal “hiato de produto positivo”.

Hiato de produto é uma medida de quão aquecida está a economia, utilizada por economistas mais ortodoxos ou liberais. Eles calculam o “produto potencial”, uma medida de quanto a economia pode produzir no longo-prazo. O “hiato de produto” é a diferença entre o produto potencial e o que a economia de fato está produzindo agora. Quando temos um “hiato positivo”, as pessoas, empresas e o governo estão demandando mais do que é possível produzir e, por isso, uma parte dessa demanda vai gerar inflação. “Hiato negativo” quer dizer que a economia está demandando menos do que é possível produzir e, por isso, a inflação tende a cair.

De fato, quando a economia está realmente no limite da sua capacidade produtiva, a tendência é que mais gastos, seja do governo ou das famílias, e mais investimentos gerem inflação. Mas aqui há uma primeira questão: o tal “hiato de produto” não é uma medida de um fato da economia. Não são uma verificação de quantas pessoas ainda querem trabalhar mais horas e quantas fábricas, caminhões e navios estão parados. As medidas mais comuns de produto potencial são cálculos estatísticos que tomam a trajetória passada da economia como referência. Isso já gera um debate mesmo entre economistas que se preocupam com o hiato de produto, pois cada um tem sua medida e não há consenso sobre como calcular.

O outro problema é a tendência a reproduzir o passado. Os cálculos não partem da situação real da economia e de projeções de quem de fato conhece a capacidade produtiva (os donos das indústrias e os representantes dos trabalhadores). Por isso, um período longo de baixo crescimento, como vivemos entre 2015 e 2021, vai diminuir as medidas de produto potencial. Esse debate se tornou especialmente ativo na Europa: a crise constante do continente nos anos 2010 fez com que muitos países registrassem “hiatos de produto positivo” apesar de não crescerem e conviverem com desemprego alto. Não foi a capacidade produtiva da economia que mudou, foi a medida dos economistas. E os ortodoxos mais radicais passaram a exigir mais austeridade para limitar um crescimento já baixo.

No caso do Brasil, temos outro problema: nossa economia é vulnerável a choques externos e choques de oferta. Eventos como a interrupção da produção na pandemia e a guerra na Ucrânia afetam a nossa inflação porque aumentam os custos de produtos importantes como os combustíveis e fertilizantes ou porque valorizam o dólar, que define o preço das nossas importações.

Essa realidade tende a causar inflação justamente quando a economia vai mal, o inverso do que preveem os economistas ortodoxos, que acham que inflação sempre é sinal de hiato de produto positivo Como a medida de produto potencial é incerta, os economistas assumem que se há fogo, há fumaça. Se há inflação, deve ser porque o hiato de produto está positivo e a economia está aquecida.

Aqui, há um oportunismo por parte dos economistas mais ortodoxos. É de se esperar que estes economistas gostem de mais gastos do governo e juros baixos quando o “hiato de produto” é negativo, afinal, a economia está produzindo abaixo da sua capacidade. Diante de uma inflação alta causada por uma guerra ou seca, ou seja, um problema de oferta temporário, eles deveriam pedir que o governo aproveitasse a oportunidade para fazer investimentos e “fechar” o hiato de produto.

Mas quem já viu Samuel Pessôa e seus amigos pedindo mais gastos e investimentos? Estes economistas estão sempre querendo cortes de gastos e investimentos. A estratégia é esperta: quando a economia está com inflação alta causada por choques de oferta, eles pedem corte de gastos para não permitir que esse choque se propague. Se o preço da comida está alto porque a safra foi ruim, temos que fazer o povo passar fome e comprar menos comida. Isso ocorreu em 2002-2003, 2015-2016 e em 2020-2022, quando a inflação estava alta e o hiato de produto negativo.

Quando a economia de fato está aquecida, como estamos vendo agora, eles também querem cortes de gastos e investimentos e o fim de aumentos do salário-mínimo. Ou seja, quando eles veem a fumaça (a inflação), assumem que há fogo na economia e jogam água para apagar. Quando veem o fogo, mas não veem a fumaça, também querem apagar o fogo. Fica parecendo que o objetivo é jogar água no fogo de qualquer jeito: reduzir o tamanho do governo e os investimentos, independente da realidade econômica. 

E, lembremos, mesmo quando a economia está aquecida, é importante que o governo a mantenha aquecida para que aconteçam os efeitos de longo-prazo, como eu escrevi na última coluna: é com a economia aquecida que trabalhadoras e trabalhadores se qualificam e ganham mais aumentos e capitalistas investem em máquinas novas.

Talvez seja por isso que esses economistas não querem que a economia se mantenha aquecida: não querem uma economia com desemprego baixo, trabalhadores empoderados e capitalistas que são obrigados a se esforçar para manter a taxa de lucro. Preferem viver em uma economia que apenas reproduza a estrutura "fazendão + cassino" que sempre prevaleceu por aqui, com uma indústria ociosa e trabalhadores mal empregados ou desempregados e facilmente controláveis.

* Pedro Faria é petroleiro. É economista (UFMG) e doutor em história (Universidade de Cambridge).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Nathallia Fonseca