Lula fala sobre preservação da Amazônia, mas projetos de infraestrutura continuam violando direitos
*por Bruna Balbi, Carlos Alves e Brent Millikan
Nos últimos meses, o Brasil tem vivenciado um caso após o outro de episódios climáticos extremos. As enchentes no Rio Grande do Sul, que deixaram milhares de pessoas fora de suas casas por conta das inundações, foram sucedidas pelas queimadas simultâneas em várias cidades. O que presenciamos foi um país em chamas. Segundo o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), 60% do território brasileiro esteve respirando fumaça nas últimas semanas e em alguns estados a situação continua.
Na Amazônia, além das queimadas e fumaça cobrindo as cidades, a estiagem e a seca isola populações ribeirinhas, que são atingidas com a falta de água, escassez de alimentos e impactos na atividade pesqueira, que muitas vezes é a garantia de renda das famílias amazônicas. Essas são algumas das formas que a Amazônia vivencia os efeitos das mudanças climáticas globais que ainda se intensificam em atividade predatória desenvolvidas historicamente na região, como a pecuária extensiva, o desmatamento e a monocultura de soja, que substituem a economia baseada nas florestas ou extrativismo pela infraestrutura voltada para comodities agrointensivistas. Este modelo cria um cenário de crise causado pelas mudanças climáticas, que também vêm sendo chamadas pela sociedade de emergência e, até mesmo, catástrofe do clima.
O governo Lula tem adotado algumas ações para tentar minimizar as consequências disso para a população. Estados e municípios também. Porém, paralelo a isso, instâncias do governo federal seguem dando encaminhamentos no planejamento de projetos e obras de infraestrutura Brasil a fora baseado em um modelo de exportações. Para a Amazônia, o que temos acompanhado são projetos que vão na contramão do discurso de salvaguardar a floresta amazônica, considerada central nas soluções para frear o superaquecimento do planeta e atingir metas de redução de emissões de CO2 definidas mundialmente.
No início do mês de setembro, o Presidente Lula anunciou que irá retomar as negociações para a reconstrução da BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO). Há anos a obra, que trata da pavimentação do trecho do meio da rodovia, é criticada por pesquisadores e ambientalistas por conta dos danos socioambientais atrelados e violação de direitos humanos, em especial o acirramento de conflitos territoriais, aumento do desmatamento e falta de consulta prévia aos povos tradicionais. Uma das reivindicações é sobre a garantia de medidas de fortalecimento da governança e monitoramento territorial para a mitigação dos impactos socioambientais. A licença ambiental da obra está atualmente suspensa, mas permanece no discurso baseado na infraestrutura de um modelo agroexportador.
Outro caso de exemplo do controverso discurso governamental de preservação da floresta é a Ferrovia EF-170, chamada de Ferrogrão. Movimentos e organizações de direitos humanos e socioambientais têm articulado diversas incidências contrárias a construção da ferrovia, que possui problemáticas comuns a BR-319. Os dois projetos situam-se no contexto de ausência de governança de territorial na Amazônia, onde predominam terras públicas não destinadas, alvo de grilagem e porta de entrada do crime organizado, que agrava a possibilidade de governança do território. No entanto, até o momento a postura do governo é de prosseguir com as negociações. Mesmo com a criação de um GT entre a sociedade civil e ministérios, o projeto foi incluído para ser leiloado em 2025 no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
O que isso diz sobre o modo com que o governo tem desenvolvido projetos ditos de desenvolvimento e preservação na Amazônia? Qual a prioridade dentro dos projetos é dada a questão ambiental e aos direitos dos povos? Há verdadeira transparência e participação social e compromisso com um futuro sustentável para a Amazônia?
Essas reflexões estiveram presentes na fala de lideranças, ambientalistas, movimentos e organizações sociais que participaram no dia 12 de setembro, em Brasília (DF) do workshop "Planejamento Estratégico no Setor de Transportes: Caminhos para a Sustentabilidade com Transparência e Participação Social”"
O evento foi organizado pela Controladoria Geral da União, Ministério dos Transportes, GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental, Instituto de Energia e Meio Ambiente, Instituto Socioambiental, Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas e Transparência Internacional - Brasil. O objetivo da atividade foi promover, no âmbito do 6º Plano de Ação Nacional da Parceria de Governo Aberto (Compromisso #1 - Transparência e Participação Social em grandes obras de infraestrutura), o diálogo entre representantes do setor público e da sociedade civil sobre o fortalecimento de instrumentos e processos decisórios no planejamento estratégico no setor de transportes, sob a ótica da sustentabilidade, da transparência e da participação social, considerando suas dimensões socioambiental, econômica e política, com destaque para a região amazônica.
Para quem são planejados projetos de infraestrutura na Amazônia?
Quando se fala sobre o desenvolvimento de projetos ou empreendimentos para a Amazônia, a questão ambiental é atualmente um tópico de sensibilidade, que demanda investigação e discussão. No entanto, muitas vezes há uma lacuna nesse debate: a ausência de reconhecimento dos povos e comunidades que são parte intrínseca ao "ambiental" e meio ambiente. Qualquer impacto que um projeto de infraestrutura cause ao meio ambiente é também um impacto a vida de todas as pessoas.
É importante mencionar que, hoje, carteiras de projeto são decididas de forma segregada, sem considerar alternativas de corredores logísticos, que possuem impactos sinérgicos e cumulados. Além disso, o lobby de setores como, por exemplo, agronegócio oferece grande pressão política e financeira para a implementação de certos projetos.
Ou seja, há uma linha tênue e difícil entre desenvolvimento, lucro, direitos e preservação da floresta.
Para a implementação de projetos a etapa de planejamento é prévia à de licenciamento ambiental – quando já há decisão de construção da obra ou empreendimento. E é neste momento inicial que devem ser ouvidas as populações locais e consultados os povos e comunidades tradicionais potencialmente impactados.
Representantes das três principais bacias amazônicas estiveram presentes no evento em Brasília: Madeira, Tapajós-Xingu e Tocantins. As lideranças e organizações presentes questionaram por quem e para quem é feito o planejamento estratégico de transportes atualmente no Brasil. Quem participa da elaboração do planejamento estratégico? Quem são os beneficiados com os empreendimentos previstos no planejamento estratégico? Quais as justificativas para as hidrovias do Rio Madeira, do Rio Tapajós, do Rio Tocantins?
A devolutiva que receberam não é novidade e traz receios. Ao tratar sobre participação social, representantes do Ministério dos Transportes falaram sobre a participação das pessoas que utilizam a infraestrutura, considerados por eles apenas os grandes produtores. Ao comentarem sobre a participação das comunidades locais, estas foram mencionadas somente como as impactadas pela infraestrutura.
Para repensar o planejamento estratégico, é importante que estas comunidades saiam do lugar de vítimas das obras planejadas pelo governo. Os povos e comunidades da Amazônia, assim como a população urbana dos municípios, devem ser os destinatários deste planejamento, destes projetos. Além disso, as populações possuem soluções sustentáveis que são desenvolvidas por eles muito antes de grandes projetos se instalarem em seus territórios. Não seriam interessante os planejadores do ministérios de transportes incorporarem e poencializarem estas iniciativas?
O que se espera do governo é uma virada paradigmática, que considere os interesses das pessoas que vivem na Amazônia, como se organizam socialmente, como realizam o transporte de pessoas e das mercadorias que produzem. E que questão efetivamente essenciais a vida dos povos da região sejam colocadas em pauta: Como escoar a produção da agricultura familiar e de populações tradicionais? como estimular a sociobioeconomia? Como efetivar e acelerar a regularização fundiária de territórios indígenas, quilombolas, povos tradicionais, grupos de agricultores familiares e agroextrativistas? Como garantir a adaptação para que os impactos da crise do clima sejam diminuídos? Estes são questionamentos que devem estar na mesa dos Ministérios.
Os danos socioambientais de obras de desenvolvimento e mesmo da crise climática não são distribuídos igualmente: aqueles mesmos povos e comunidades que nos ensinam a lição de preservação são também os que mais sofrem as consequências da destruição da natureza. É hora de repensar esse planejamento. De construí-lo em diálogo com a sociedade civil e, principalmente, com as coletividades integradas com a natureza.
*Bruna Balbi é assessora jurídica popular e coordenadora do Programa Amazônia da Terra de Direitos.
**Carlos Alves é arqueólogo, educador popular, artista plástico e militante do Movimento Tapajós Vivo.
***Brent Millikan é membro da Secretaria Executiva do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental.
****Este é um artigo de opinião e não reflete necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires