Coluna

Há uma noite apenas para construir fortificações

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The Orange Clouds on the Boundary [As Nuvens Laranja na Fronteira], 2018 - Niniko Morbedadze (Geórgia)
Em tal cenário, várias potências nucleares terão seus dedos no botão nuclear

Queridas amigas e amigos,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Em 13 de setembro, em um conclave em Washington, o presidente dos EUA, Joe Biden, e o primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, indicaram que seria aceitável que a Ucrânia disparasse mísseis, fornecidos pelo Ocidente, contra o território russo. Nenhuma decisão oficial foi anunciada até o momento, mas está claro para onde está indo a conversa entre os países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Depois de Starmer ― cujo índice de aprovação entre os eleitores é de 22% ― retornar a Londres, seu secretário de relações exteriores, David Lammy, disse à imprensa que o governo do Reino Unido está conversando com outros aliados sobre a suspensão das restrições à Ucrânia em relação ao uso dos mísseis Storm Shadow, fornecidos pelo Reino Unido, contra a Rússia. Sir John McColl, um oficial sênior aposentado do exército britânico, foi além, afirmando que esses mísseis acabariam sendo usados contra a Rússia, mas, por si só, não possibilitariam que a Ucrânia vencesse. Em outras palavras, sabendo muito bem que esses mísseis não mudarão o teor da guerra, esses homens (Biden, Starmer e McColl) estão dispostos a correr o risco de aprofundar o conflito.

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, fez do uso de mísseis fornecidos pelo Ocidente um tema central de suas conversas com líderes mundiais, alegando que, se seus militares tiverem permissão para disparar os mísseis Storm Shadow (do Reino Unido), SCALPs (da França) e ATACMS (dos EUA), a Ucrânia poderá atingir bases militares russas em solo russo. Um sinal verde da Otan para o uso desses três sistemas de mísseis, que já foram fornecidos à Ucrânia por países membros da aliança militar, levaria a uma escalada significativa: se a Ucrânia usar esses mísseis para atacar a Rússia e a Rússia retaliar com um ataque aos países que forneceram os mísseis, isso acionaria o Artigo 5 da Otan (1949), atraindo todos os países membros da bloco diretamente para a guerra. Em tal cenário, várias potências nucleares (EUA, Reino Unido, França e Rússia) terão seus dedos no botão nuclear e poderão muito bem levar o planeta para o caminho da destruição ardente.

Em dezembro de 2021, a Rússia e os Estados Unidos realizaram uma série de consultas que, mesmo em cima da hora, poderiam ter evitado o início das hostilidades na Ucrânia. Um resumo dessas discussões é vital para destacar as principais questões subjacentes ao conflito:

1.7 de dezembro de 2021. O presidente dos EUA, Joe Biden, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin, realizaram uma videoconferência de duas horas. O relatório da Casa Branca, que tem apenas um parágrafo, concentrou-se nos movimentos das tropas russas na fronteira com a Ucrânia. O resumo do Kremlin é um pouco mais longo e apresenta um ponto que os Estados Unidos ignoraram: “Vladimir Putin alertou contra a transferência de responsabilidade para a Rússia, uma vez que era a Otan que estava realizando tentativas perigosas de se firmar no território ucraniano e construindo suas capacidades militares ao longo da fronteira russa. É por esse motivo que a Rússia está ansiosa para obter garantias confiáveis e juridicamente vinculantes que excluam a eventualidade da expansão da Otan para o leste e a implantação de sistemas de armas ofensivas nos países vizinhos da Rússia”.

2. 15 de dezembro de 2021. O vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Ryabkov, reuniu-se com a secretária de Estado adjunta dos EUA para Assuntos Europeus e Eurasiáticos, Karen Donfried, em Moscou. O comunicado de imprensa russo publicado após a reunião afirmou que “eles tiveram uma discussão detalhada sobre garantias de segurança no contexto das tentativas persistentes dos EUA e da Otan de mudar a situação política e militar europeia a seu favor”.

Maria Khan (Paquistão), Craving for Love [Desejoso de amor], 2012.

3. 17 de dezembro de 2021. A Rússia divulgou uma minuta de um tratado entre ela e os Estados Unidos, bem como uma minuta de acordo com a Otan. Ambos os textos deixaram claro que a Rússia estava buscando garantias de segurança firmes contra qualquer desestabilização do status quo a oeste. Nesses textos, há declarações explícitas e importantes sobre mísseis e armas nucleares. O projeto de tratado diz que nem os EUA nem a Rússia devem “instalar mísseis terrestres de alcance intermediário e de curto alcance fora de seus territórios nacionais, bem como nas áreas de seus territórios nacionais, a partir das quais essas armas podem atacar alvos no território nacional da outra parte” (artigo 6) e que ambos os lados devem “abster-se de instalar armas nucleares fora de seus territórios nacionais” (artigo 7). O projeto de acordo com a Otan diz que nenhum dos países que a integram deve “instalar mísseis terrestres de alcance intermediário e curto em áreas que lhes permitam alcançar o território das outras Partes” (artigo 5).

4. 23 de dezembro de 2021. Em sua coletiva de imprensa anual, Putin mais uma vez transmitiu a ansiedade da Rússia sobre o movimento da Otan para o leste e sobre as ameaças de sistemas de armas sendo implantados nas fronteiras russas: “Lembramos, como já mencionei muitas vezes antes e como o senhor sabe muito bem, que nos prometeu nos anos 1990 que [a Otan] não se moveria um centímetro para o leste. Você nos enganou descaradamente: houve cinco ondas de expansão da Otan, e agora os sistemas de armas que mencionei foram implantados na Romênia, e a implantação começou recentemente na Polônia. É disso que estamos falando, não consegue ver? Não estamos ameaçando ninguém. Já nos aproximamos das fronteiras dos EUA? Ou das fronteiras da Grã-Bretanha ou de qualquer outro país? Foram vocês que vieram até a nossa fronteira e agora dizem que a Ucrânia também se tornará membro da Otan. Ou, mesmo que não se junte à Otan, que bases militares e sistemas de ataque sejam colocados em seu território por meio de acordos bilaterais”.

5. 30 de dezembro de 2021. Biden e Putin tiveram uma conversa telefônica sobre a deterioração da situação. O resumo do Kremlin é mais detalhado do que o relatório da Casa Branca e, por isso, mais útil. Putin, segundo nos disseram, “enfatizou que as negociações precisavam produzir garantias sólidas e juridicamente vinculantes, excluindo a expansão da Otan para o leste e o uso de armas que ameaçam a Rússia nas imediações de suas fronteiras”.

Em 24 de fevereiro de 2022, as tropas russas entraram na Ucrânia.

Louay Kayyali (Síria), Then What? [Depois o quê?], 1965.

A Rússia está preocupada com suas garantias de segurança desde que os Estados Unidos começaram a se retirar unilateralmente do delicado sistema de controle de armas. Os pontos principais dessa rejeição são a saída dos EUA em 2001 do Tratado de Mísseis Antibalísticos de 1972 e a revogação, em 2019, do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário de 1987. A rejeição a esses tratados e a falta de reconhecimento dos pedidos russos por garantias de segurança, juntamente com as agressões da Otan na Iugoslávia, no Afeganistão e na Líbia, fizeram com que crescesse a ansiedade em Moscou sobre a possibilidade de o Ocidente colocar mísseis nucleares de curto alcance na Ucrânia ou nos países bálticos e poder atacar grandes cidades russas no oeste sem nenhuma esperança de defesa. Esse tem sido o principal argumento da Rússia com o Ocidente. Se o Ocidente tivesse levado a sério os tratados que a Rússia propôs em dezembro de 2021, talvez não estivéssemos em uma situação em que os países ocidentais discutem o uso de mísseis da Otan contra a Rússia.

Um novo estudo da empresa de consultoria Accuracy mostra que as empresas de armamentos dos Estados Unidos e da Europa se beneficiaram enormemente com essa guerra, com a capitalização do mercado de ações destas empresas tendo aumentado 59,7% desde fevereiro de 2022. Os maiores ganhos foram obtidos pela Honeywell (EUA), Rheinmetall (Alemanha), Leonardo (Itália), BAE Systems (Reino Unido), Dassault Aviation (França), Thales (França), Konsberg Gruppen (Noruega) e Safran (França). As empresas estadunidenses Huntington Ingalls, Lockheed Martin, General Dynamics e Northrup Grumman também tiveram ganhos, embora seus aumentos percentuais tenham sido menores porque seus lucros absolutos já estavam em níveis obscenos. Enquanto esses mercadores da morte da Otan lucram enormemente, suas populações continuam a lutar com preços mais altos devido à inflação dos combustíveis e dos alimentos.

Askhat Akhmedyarov (Cazaquistão), Geopolitical Soldier [Soldado Geopolítico], 2014.

Talvez a parte mais cruel e irônica de todo esse debate seja o fato de que permitir que a Ucrânia ataque a Rússia não resultaria necessariamente em nenhum benefício militar. Em primeiro lugar, as bases aéreas russas já saíram do alcance dos mísseis em discussão e, em segundo lugar, os suprimentos ucranianos desses mísseis são baixos. Além da ameaça iminente de uma guerra nuclear, há duas declarações recentes dos EUA. Em agosto, a imprensa estadunidense noticiou que o governo Biden havia produzido um memorando secreto sobre a preparação do arsenal nuclear dos EUA para combater a China, a Coreia do Norte e a Rússia. Isso veio na esteira de outro relatório em junho, de que os EUA estão considerando expandir suas forças nucleares.

Tudo isso faz parte do pano de fundo da 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas que acontece este mês, em que os Estados membros discutirão um novo Pacto Global. O rascunho compacto usa a palavra “paz” mais de cem vezes, mas o verdadeiro ruído que ouvimos é guerra, guerra, guerra.

Tuvshoo (Mongólia), Tears of Joy [Lágrimas de alegria], 2013.

Quando eu era adolescente em Calcutá, na Índia, ia com frequência ao teatro Gorky Sadan para assistir aos filmes do diretor soviético Andrei Tarkovsky, que refletiam sobre a vida e o desejo humano de ser melhor. Um desses filmes, Mirror (1975), sobre o ultraje da guerra, está ancorado nos poemas do pai do cineasta, Arseny Tarkovsky. À medida que as tensões aumentam na Ucrânia, o poema do velho Tarkovsky “Sábado, 21 de junho” (referindo-se ao dia anterior ao ataque da União Soviética pela Alemanha nazista em 1941) nos adverte contra a crescente ameaça de guerra:

Há uma noite apenas para construir fortificações.
Está em minhas mãos, a esperança de nossa salvação.

Anseio pelo passado; então eu conseguiria avisar
àqueles que estavam condenados a morrer nessa guerra.

Um homem do outro lado da rua me ouviria chorar,
“Venha aqui, agora, e a morte passará por você”.

Eu saberia a hora em que a guerra começaria
Quem sobreviverá aos campos de concentração e quem morrerá.

Quem serão os heróis homenageados com prêmios,
E quem morrerá fuzilado pelos pelotões de fuzilamento.

Vejo a neve em Stalingrado, toda espalhada
Com os cadáveres dos pelotões inimigos.

Sob os ataques aéreos, vejo Berlim
A infantaria russa está marchando.

Posso prever todas as tramas do inimigo
Mais do que qualquer tipo de inteligência.

E eu continuo implorando, mas ninguém me ouve.
Os transeuntes estão respirando ar fresco,

Apreciando as flores de verão em junho,
Todos sem saber da desgraça que se aproxima.

Mais um momento – e minha visão desaparece.
Não sei quando ou como cheguei até aqui.

Minha mente está em branco. Estou olhando para o céu claro,
Minha janela ainda não está coberta por listras cruzadas.

Cordialmente,

Vijay.

Edição: Nathallia Fonseca