Foi hegemônica, até aqui, uma ideia de que o Estado nada deveria fazer em relação a esse setor
Uma carta assinada por mais de 50 estudiosos das plataformas digitais e de seus impactos na economia foi lançada nesta terça-feira, 17, exigindo respeito à soberania digital brasileira. O documento, intitulado Carta Pública Contra o Ataque das Big Techs à Soberania Digital, parte da crítica ao posicionamento do X no país e apela que “todos aqueles que defendem os valores democráticos devem apoiar o Brasil em sua busca pela soberania. Exigimos que as Big Techs cessem suas tentativas de sabotar as iniciativas do Brasil voltadas para a construção de capacidades independentes em inteligência artificial, infraestrutura pública digital, governança de dados e serviços de nuvem”.
O texto é assinado por Thomas Piketty, Mariana Mazzucato, Nick Srniceck, José Van Dijck, Evgeny Morozov, Anita Gurumurthy, Shoshana Zuboff, Cecília Rikap e outros. O grupo reclama ainda que a ONU e os governos apoiem esforços em torno da soberania digital.
A carta vem em um momento que parece consolidar uma mudança na abordagem sobre as plataformas digitais. Neste mês, uma série de movimentações judiciais na União Europeia e nos Estados Unidos mostraram o que já há tempos deveria ser óbvio: é preciso enfrentar e limitar o poder das grandes corporações de tecnologia, conhecidas como big tech.
O Tribunal de Justiça da União Europeia confirmou uma multa de 2,4 bilhões de euros imposta ao Google, em 2017, pela Comissão Europeia, que avaliou que a empresa abusou de sua posição dominante ao favorecer seu serviço de comparação de preços, o Google Shopping, em detrimento de concorrentes. No mesmo dia, o Tribunal também determinou à Apple que pagasse uma dívida de 13 bilhões de euros em impostos atrasados à Irlanda, após compreender que a companhia se beneficiou de vantagens fiscais indevidas, em caso aberto em 2016. Nos Estados Unidos, o Departamento de Justiça acusa o Google de monopolizar ilegalmente o setor de publicidade digital.
Resultados de processos como a mundialização do capital, a financeirização e o desenvolvimento das tecnologias digitais nos marcos da reestruturação produtiva, essas empresas cresceram valendo-se do ideário neoliberal, que justificou uma postura não de ausência estatal, mas de uma inflexão programada para facilitar a intervenção privada no setor, postura apresentada como fundamental à promoção da inovação e da concorrência. Nada mais ilusório. Seguindo a própria dinâmica capitalista, sempre afeita à concentração e à centralização de capital, o que se viu nas últimas duas décadas foi a ascensão de poucas corporações norte-americanas que se expandiram para diversos setores, nos quais obtêm não apenas clientes, mas também dados fundamentais à compreensão e mesmo antecipação do funcionamento dos mercados. Restou, com isso, um cenário concentrado em âmbito transnacional, fragilizando as economias locais e a própria organização social.
Isso porque, por um lado, a chamada plataformização leva a uma enorme concentração de riqueza, alcançada muitas vezes por meio da participação das plataformas no jogo especulativo do mercado financeiro e por meio da apropriação da riqueza produzida nos países em que operam, como no Brasil, praticamente sem pagar impostos ou gerar empregos.
Os resultados são apresentados todos os anos nas listas das corporações mais valiosas. Em termos de valor de mercado, a Microsoft está em primeiro lugar, seguida da Apple, Nvidia, Alphabet e Amazon, de acordo com dados do site Companies Market Cap de junho de 20242. Por outro lado, essas empresas atuam em setores bastante sensíveis para a autonomia das populações, com destaque para as comunicações. Nessa operação, não há neutralidade. As práticas de manipulação, muitas vezes disfarçadas por meio de mecanismos de recomendação ou moderação de conteúdos, são bastante comuns.
Mesmo que sutilmente, suas definições de funcionamento impactam até mesmo a estética (e, portanto, a política) do que circula nas redes. Além disso, as plataformas conferem visibilidade para quem pagar pelos chamados impulsionamentos – o que ajuda a dar destaque para absurdos como Brasil Paralelo ou Pablo Marçal. Economia e cultura estão, nas plataformas, evidentemente integradas a serviço de um projeto de poder que nada tem de democrático, muito menos de popular. O caso Elon Musk é um exemplo claro disso e não deve ser visto como exceção.
Apesar dos impactos negativos dessa situação, foi hegemônica, até aqui, uma ideia de que o Estado nada deveria fazer em relação a esse setor. O projeto neoliberal que favoreceu a ascensão das plataformas também levou ao rebaixamento da visão sobre a regulação, antes vista como um conjunto de definições sobre o funcionamento da sociedade e de cada setor específico.
Seguindo a ideia de retirar o Estado de seu papel de definição e de proposição de políticas, foi promovida uma abordagem que gira em torno da ideia de autorregulação e de governança, esta pautada por uma suposta horizontalidade entre os diferentes agentes e por definições consensuais, o que acaba amenizando as enormes desigualdades de poder e os diferentes interesses que mobilizam cada “stakeholder”. Na prática, a ausência de regras definidas em cada local tem permitido a expansão e a remodelagem desse setor, seguindo a trilha da posição norte-americana que pautou e segue dominando essa re-regulação.
Esse conjunto de mudanças tem permitido a expansão e a remodelagem não só de um setor, mas do próprio capitalismo, o que está evidente no papel central que as tecnologias têm na concorrência entre os países hoje, com Estados Unidos e China na linha de frente da disputa. É claro que esse processo é permeado por contradições, muitas das quais intensificadas pelas lutas da sociedade civil, em sua busca pela ampliação do espaço de resistência frente ao poder dos agentes privados. É parte desse quadro a afirmação de novos direitos, como o direito à proteção de dados pessoais, e tentativas de regulação das plataformas – iniciativas que têm contínua oposição das big tech, como visto no Brasil, tanto na formulação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) quanto, recentemente, no debate sobre o Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, que busca instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, e sobre o PL 2.338/2023, que dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial. Não obstante, esses movimentos têm se mostrado insuficientes.
Diante do crescente poder econômico das plataformas, uma nova série de iniciativas legislativas está em curso, agora com foco na chamada regulação econômica. Até o primeiro semestre de 2024, expressam esse movimento, para citar alguns casos: Estados Unidos (American Innovation and Choice Online Act, Ending Platform Monopolies Act e Competition and Antitrust Law Enforcement Reform Act of 2021); Alemanha (Act amending the Act against Restraints of Competition for a focused, proactive and digital competition law 4.0 and other provisions); Japão (Act on Improving Transparency and Fairness of Digital Platforms); Austrália (Treasury Laws Amendment (News Media and Digital Platforms Mandatory Bargaining Code) Bill 2021); Reino Unido (Digital Markets Unit); e União Europeia (Digital Market Act, Media Freedom Act e Artificial intelligence act).
Além disso, na Coreia do Sul foi aprovada emenda ao Telecommunications Business Act, proibindo lojas de aplicativos de grandes empresas de tecnologia de forçar os desenvolvedores a usar seus sistemas de pagamento. No Canadá, o governo tem alterado diversas legislações sobre concorrência para incluir medidas em relação ao ambiente digital. Outros países discutem regras no mesmo sentido, entre eles a Índia, a Turquia e o Brasil.
A lista evidencia a crescente demanda pela atuação imperativa dos estados nacionais. Em geral, as iniciativas mencionadas propõem medidas como a reserva de mercado para as empresas locais (dinâmica que pauta bastante a abordagem da União Europeia) e mecanismos de proteção de setores afetados pela presença das plataformas, especialmente a imprensa (o que gerou um movimento agressivo do Facebook contra regras estabelecidas no Canadá e na Austrália). Configuram, assim, um movimento que pode contribuir para se impor um freio de contenção ao poder das grandes plataformas norte-americanas. Por outro lado, está claro que as regras propostas não têm o objetivo de transformar o cenário. Sem isso, podem legar uma diversidade aparente, mas que reproduz a mesma promoção de desigualdade, exploração, opressão e vigilância dos países e das populações.
É preciso, ao contrário, questionar o processo mesmo de concentração da produção social (e não só do mercado) em torno das plataformas e a lógica de funcionamento delas – isto é, disputar a regulação social em sentido amplo. O problema pode ser atacado em mais dois caminhos, além da proposição de regras. Primeiro, a partir da mobilização do Estado como indutor de políticas. As plataformas avançam na aquisição de cabos submarinos, na comercialização de serviços de armazenamento de dados e de computação em nuvem, entre outras dinâmicas que aprofundam a dependência em relação a elas.
É preciso, para fazer frente a isso, construir infraestruturas e aplicações próprias, atentas tanto à dinâmica econômica e dos direitos, como à proteção de dados, quanto ao diálogo com as necessidades locais. No Brasil, há passos dissonantes nesse sentido. Por um lado, foi retomado o importante projeto de “nuvem” soberana, sob liderança do Serpro. Também foi lançado um plano sobre inteligência artificial intitulado IA para o Bem de Todos. Por outro lado, toda a política de acesso à internet é pautada pelo favorecimento de empresas privadas (inclusive a Starlink) e não há nenhum sinal de retomada de políticas de softwares livres – ao contrário, a adoção das plataformas digitais corporativas avança no setor público, na educação etc.
Isso leva a um segundo movimento, que a meu ver é fundamental para qualificar o que tem sido chamado de soberania digital: a afirmação de um projeto político alternativo, do qual faça parte também um projeto tecnológico. Não se trata, portanto, de fazer mais do mesmo, mas de definir, com autonomia, para quê queremos as tais novas tecnologias, mobilizando, para isso, o conjunto da socidade e nossas melhores capacidades. Como diz a carta lançada hoje, “o caso brasileiro tornou-se o principal front no conflito global em evolução entre as corporações digitais e aqueles que buscam construir um cenário digital democrático e centrado nas pessoas, focado no desenvolvimento social e econômico.”. O Brasil pode contribuir com a articulação de países do chamado Sul global para o enfrentamento ao poder das plataformas e para a busca coletiva de soluções alternativas. Ainda há tempo de puxar o “freio de emergência”, mas é preciso decisão e ação.
*Helena Martins é professora da Universidade Federal do Ceará, pós-doutoranda em Economia pela Universidade Federal de Sergipe (com financiamento da Fapesp) e integrante do DiraCom – Direito à Comunicação e Democracia
Edição: Nathallia Fonseca