03 de setembro de 2024, o dia que jamais esqueceremos na mídia pública brasileira. Isso porque o programa Sem Censura, exibido na TV Brasil pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), recebeu o ex-diretor da Globo, José Bonifácio Oliveira Sobrinho, o Boni. Não só o recebeu como o ovacionou em uma roda laudatória de entrevistadores sem qualquer capacidade crítica e jornalística, revelando que comunicação não se faz por click bait ou por influencers.
As declarações dadas por ele ao programa demonstram a necessidade urgente da retomada do projeto de mídia pública, com participação popular, como o único capaz de se contrapor, justamente, às teses do todo-poderoso e a fomentar a cidadania nas telas, fundamento constitucional que Boni trabalhou para prejudicar.
Relembremos alguns fatos para evidenciar tal estratégia. Afinal, trabalhamos com fatos. Em 15 de setembro de 2020, durante uma entrevista no programa Roda Viva, Boni tergiversou sobre a ditadura civil-militar e a influência dos meios de comunicação: “ficaram com medo do João Goulart estatizar toda a comunicação no Brasil e todos eles começaram apoiar a chamada 'revolução' e isso foi unânime, a imprensa inteira brasileira. A Globo naquele momento não tinha ido ao ar, mas O Globo apoiou bastante”.
Em 26 de novembro de 2011, no programa Dossiê da Globo News, Boni admitiu a manipulação em favor de Collor durante o debate presidencial com Lula em 1989: "conseguimos tirar a gravata de Collor, botar um pouco de suor e colocamos pastas com supostas denúncias contra Lula em pastas vazias”. Em novembro de 2017, Boni assumiu que não afastaria William Waack, após o vazamento de um vídeo com comportamento racista. E não voltou atrás.
Essas são situações e frases do próprio Boni que, por anos, dirigiu uma das principais emissoras do país, a Rede Globo e que alicerçou as bases para a operação Lava Jato, para o golpe ao mandato da presidente Dilma Rousseff, para as reformas trabalhista e previdenciária e até hoje faz campanhas em favor do agronegócio que dizima as nossas florestas, rios, fauna e flora (o agro não é nada pop) e em favor do empreendedorismo que precariza e não oferece direitos trabalhistas.
Boni é responsável por construir um imaginário racista, colonizado, heterocisnormativo do povo brasileiro, no qual o próprio povo não se vê representado.
É importante lembrar que a missão da EBC é “criar e difundir conteúdos que contribuam para o desenvolvimento da consciência crítica das pessoas”. No entanto, o que vimos no Sem Censura foi o contrário disso. E foi também uma violação ao Código de Ética dos Jornalistas, que versa: “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Em um dos momentos do programa, a apresentadora questiona Boni sobre o “politicamente correto” e ele diz que “seria preso” hoje em dia. Todos da banca riem diante de uma resposta que atenta contra os direitos humanos. Afinal, o chamado “politicamente correto” é a luta contra o racismo, contra o machismo, contra a LGBTQIAPfobia.
Boni chega a afirmar que a comunicação pública é “dispensável” e nenhum entrevistador é capaz de indagar ou apresentar os princípios da EBC que é de afirmar a comunicação como um direito de todas as pessoas, e não como lucro e mercadoria como a Globo faz.
Como sociedade, precisamos reunir os movimentos sociais, sindicatos, universidades, parlamentares e intelectuais para pressionar pela retomada do Conselho Curador da EBC, como instância de participação popular e também de zelo pelos princípios da empresa. O Sem Censura tem refletido a tônica do que não queremos na TV pública. Não foi para isso que a sociedade civil está organizada desde a Constituinte.
Iniciamos o texto marcando a cronologia deste fato, e é fundamental assinalar que essa entrevista com Boni aconteceu no mesmo dia de uma paralisação de jornalistas da EBC por um Plano de Cargos e Remuneração com isonomia. Na proposta da empresa enviada ao governo, os jornalistas, entre todas as categorias de nível superior, são os que vão ganhar menos Na porta da empresa, uma faixa reivindica “valorização de todas as categorias”.
Como se observa, a empresa precisa mesmo respeitar seus jornalistas e retomar seu rumo. A subserviência ao modelo de comunicação privada, traduzido na figura de Boni, não pode prosperar.
A abertura do Sem Censura, um programa criado logo depois da ditadura civil-militar para discutir os principais temas do país, irrompe: "está começando o programa mais democrático da televisão brasileira. Aliás, televisão que hoje existe graças a um paulista de Osasco (...) até virar o todo-poderoso do padrão Globo de qualidade". Encerramos esse texto proclamando que este programa infringiu todos os princípios da comunicação pública brasileira e precisa ser revisto.
*Camila Marins é jornalista, mestre em políticas públicas em direitos humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro e Isabela Vieira é jornalista, mestranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro e empregada da EBC. Integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-Rio) do SJPMRJ.
**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Jaqueline Deister