Assim como a história do João de Santo Cristo do Renato Russo, a do FMB tem lirismo e violência
*Rogério Viduedo
E João não conseguiu o que queria
Quando veio pra Brasília com o diabo ter
Ele queria era falar com o presidente
Pra ajudar toda essa gente que só faz
Sofrer...
Legião Urbana – Faroeste Caboclo
Estou indo pra Brasília; neste país lugar melhor não há, atesta o boiadeiro que ia perder a viagem que João foi lhe salvar. É a letra de Faroeste Caboclo da Legião Urbana que invade a cabeça enquanto me preparo para entrar num ônibus para o Planalto Central junto com minha bicicleta. É mais um desses momentos inexoráveis de um viajante ciclista. Faltam dois dias para a viagem, escrevo uma lista de afazeres, de coisas necessárias, ou não. Sair de casa é sempre complicado, mas depois que saio, tudo se acalma.
Nesta semana, acontece lá o 13º Fórum Mundial da Bicicleta, a mais importante reunião de ativistas e especialistas da bicicleta – do mundo – e vai encher a cidade de bicicleteires, bicicleteiras e bicicleteiros. Tudo grátis. Vai de quarta-feira, 4, à domingo, 8 de setembro no Centro de Excelência do Turismo Universidade de Brasília (UnB). Já são mais de 350 pessoas confirmadas.
Vêm de longe para conduzir atividades, apresentar estudos, discutir políticas públicas, métodos e objetos que invariavelmente envolvem o uso da bicicleta nas cidades.
Penso e repenso: “desta vez levo isso, não levo aquilo”, que é o argumento de sempre, em referência às experiências passadas. Preciso me informar sobre o clima, de avaliar trajetos, de me proteger dos ares ressecados pelas fumaças das queimadas, de separar as ferramentas básicas, as roupas adequadas, detalhes importantes para quem se desloca em bici. Ao menos não choverá naquele canto do Cerrado nessa primeira semana de setembro.
Prefiro o ônibus ao avião não só por motivos econômicos, mas pela flexibilidade de levar a bicicleta sem custos extras. Com ela é mais fácil me locomover por lá. Mas queria mesmo era ir pedalando como fazem algumas pessoas que vão chegar do Equador, da Colômbia, do Peru e de Pernambuco. São exemplos de que é possível elevar a bicicleta como a principal forma de se transportar pelo planeta. O pedal e o transporte de massa quando bem integrados são muito eficientes.
A organização do fórum é feita por voluntários e voluntárias da associação de ciclistas local, a Rodas da Paz, junto com a União de Ciclistas do Brasil. A programação é diversa, inclusiva e acessível, inclusive para crianças, que possuem um espaço só para elas. Estão programados debates, rodas de conversa, premiações, mostra de artes e acessórios, disputas criativas usando a bicicletas, aulas de mecânica. À noite, todo mundo se desloca da UnB para assistir às exibições de filmes no Cine Brasília.
Assim como a história do João de Santo Cristo cantada pelo Renato Russo, a do FMB tem lirismo e violência, nesse caso devido à velocidade dos carros. Em 25 de janeiro de 2011 houve o atropelamento intencional de 150 ciclistas durante uma Bicicletada Massa Crítica em Porto Alegre (RS). Nove pessoas foram hospitalizadas. A comoção internacional aglutinou pessoas em torno de uma causa: a segurança de quem pedala. E o fórum nasceu.
Nesta edição será tempo de homenagear os espaços com nomes cicloativistas que nos deixaram nos últimos anos. Pedro Davison e Raul Aragão, de Brasília, a Marina Harkot, de São Paulo, mortos por motoristas imprudentes; e a palhaça cicloviajante Julieta Hernandez, vítima de feminicídio em Presidente Figueiredo, no Amazonas, quando pedalava para a Venezuela em janeiro deste ano. Leva o nome dela o espaço infantil.
Esta será minha segunda participação no fórum. A primeira foi em 2021, na edição de Rosário, Argentina. Época da Covid-19, não pude viajar, e fiz uma apresentação remota sobre uma formação em jornalismo de segurança viária que conduzi para repórteres de periferia. Em Brasília, minha contribuição será na rua e vou representar o Comitê Popular de Luta Pedalula conduzindo uma pedalada matinal até o Palácio da Alvorada. A saída será sexta, 6, por volta das 8 da manhã lá no centro de turismo da UnB.
Quem sabe não cruzamos com o Presidente Lula no caminho? Seria a sorte grande. A gente chegando no portão do Alvorada, uma dúzia de pessoas em bicicletas, ele saindo para o trabalho e pede para o motorista parar. Abaixa o vidro, acena, agradece, e vai para o Planalto. Seria a cereja no bolo de um movimento iniciado em abril de 2022 que atraiu ciclistas de esquerda para ir às ruas durante a campanha presidencial, o Pedalula.
Viva a bicicleta!
*Rogério Viduedo é jornalista de São Paulo e integrante do Programa de Jornalismo de Segurança Viária da Organização Mundial da Saúde. Cobre as áreas de segurança viária a mobilidade sustentável desde 2016. Em 2018, criou o site Jornal Bicicleta para cobrar autoridades por soluções eficientes para deslocamento da população. Recebeu o Prêmio Abraciclo em 2021 com a reportagem, "Cultura da bicicleta se aprende na escola".
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca