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Reconhecimento facial nos estádios apresenta riscos para crianças e adolescentes, aponta estudo

Identificações equivocadas podem gerar impedimento de acesso, abordagens violentas e até mesmo uma prisão errônea

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
O uso da biometria facial em crianças e adolescentes fere tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto a diretriz estabelecida na Lei Geral do Esporte (artigo 158) - César Greco / SE Palmeiras

O reconhecimento facial vem sendo implementado com o argumento de aumentar a segurança nos estádios. No entanto, esta tecnologia pode representar riscos principalmente para crianças, adolescentes e grupos minorizados, segundo aponta o relatório "Esporte, Dados e Direitos: O uso de reconhecimento facial nos estádios brasileiros", produzido pelo O Panóptico, monitor de novas tecnologias na segurança pública do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). 

O uso da biometria facial em crianças e adolescentes fere tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto a diretriz estabelecida na Lei Geral do Esporte (artigo 158), que apresenta a necessidade de controle biométrico somente a partir dos 16 anos. Além disso, a prática também desrespeita o próprio Termo de Acordo entre a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e o Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que preveem a coleta e compartilhamento de dados após os 18 anos.

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“Tem clube que está cadastrando criança de colo, que tem catracas pequenas para elas entrarem. Só que as crianças estão sob uma lei específica que, se para os adultos já não tem a referência à LGPD na Lei Geral do Esporte, quem dirá em relação ao ECA. É uma preocupação principalmente com a possibilidade de vazamento e utilização desses dados para, por exemplo, alimentar o banco de dados de inteligência artificial”, destacou Raquel Sousa, mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e uma das autoras do relatório.

O Goiás é um dos clubes que conta com catracas menores para o reconhecimento facial de crianças. O clube informou que dos 210 mil torcedores cadastrados, 30 mil têm entre dois e 14 anos, ou seja, 14,3% do total. Os pesquisadores também entraram em contato com Botafogo, Flamengo, Fluminense, Palmeiras e Vasco da Gama para solicitar o número de crianças cadastradas, mas não receberam resposta.

Um outro ponto de atenção são as identificações equivocadas, que podem gerar impedimento de acesso, abordagens violentas e até mesmo uma prisão errônea. Em setembro de 2023, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) deu início ao Programa Estádio Seguro, uma parceria com o Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) que pretende ampliar o uso de tecnologias biométricas não apenas para a autenticação de identidade, mas também para fins de segurança pública. 

Com a larga implementação das tecnologias de reconhecimento facial, emergiram relatos e estudos críticos sobre suas limitações, que frequentemente resultam em discriminação e impactam desproporcionalmente grupos sociais específicos, baseados em classe, cor e gênero. Um estudo publicado em 2018 apontou que os algoritmos de reconhecimento facial analisados tendem a ter taxas de erros maiores com mulheres negras (34,7%), enquanto o erro máximo para homens brancos foi de 0,8%.

Na pesquisa “Um Rio de câmeras com olhos seletivos: uso do reconhecimento facial pela polícia fluminense”, O Panóptico havia informado que no teste de reconhecimento facial nos arredores do Maracanã em 2019, 7 de 11 pessoas presas foram erroneamente detidas pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Em abril deste ano, o personal trainer João Antônio Trindade Bastos, de 23 anos, foi preso na final do Campeonato Sergipano por conta de um erro no sistema de reconhecimento facial.

Biometria

Atualmente, 20 estádios utilizam a biometria facial no Brasil e outros dois estudam a utilização. Apenas cinco empresas realizam o serviço de controle biométrico: bepass, club system, facepass, imply e tik+. Os dados biométricos dos torcedores são enviados somente uma vez, antes do acesso à página de compra de ingresso, no site do próprio clube. No entanto, o cadastro da face do torcedor é administrado por uma empresa, que nem sempre produz os ingressos. No Maracanã, três empresas distintas trabalham com dados para o acesso do torcedor ao estádio através da biometria. 

Com o intercâmbio dos dados dos torcedores para diferentes empresas e a consequente exposição de dados sensíveis sem a devida regulamentação necessária, os torcedores estão expostos à utilização das suas informações, entre outros, para fins comerciais e com direcionamento de propagandas.

Edição: Mariana Pitasse