Rio de Janeiro

Coluna

Prevenção de desastres ambientais: por uma gestão metropolitana das bacias hidrográficas

A abordagem integrada e colaborativa que essa perspectiva proporciona é essencial para o enfrentamento dos desafios ambientais e urbanísticos das grandes cidades contemporâneas - Comdema/ Prefeitura de Duque de Caxias
É necessário um esforço coordenado para garantia da qualidade e quantidade de água para a população

Thêmis Amorim Aragão*

Atualmente, falar de transição ecológica não significa mais construir cidades com vistas a um futuro que considere os eventos naturais. Hoje, tratamos de um contexto caracterizado como emergência climática, em que os limiares relativos às priorizações de medidas de mitigação já foram ultrapassados. Isso significa que as políticas públicas estão mais propensas a lidar com um percentual mais expressivo de custos para reparação de danos por desastres ambientais do que com a sua prevenção.

Embora as perdas sejam volumosas e em alguns casos irreparáveis, ainda nos deparamos com governos que insistem em não priorizar as questões ambientais quando se trata de planejar o futuro das cidades. Os planos de desenvolvimento e as grandes intervenções imobiliárias, dos quais, geralmente, apenas uma parcela da elite econômica se beneficia, ainda ocupam um lugar de destaque no uso dos recursos públicos em detrimento de projetos realmente relevantes para a população. 

Um exemplo de um corpo de governantes que não consegue aprender com a experiência pregressa é o da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que testemunha anualmente enchentes e riscos de desabamentos, mas que continua a tratar a questão como “fatalidade” ou algo desconexo de propostas de governo. 

Na última década, o Rio de Janeiro tem vivido disputas por importantes áreas verdes e vazios urbanos do território metropolitano para implantação de projetos que em pouco aderiram às reais necessidades da população. Um autódromo, um estádio de futebol, a expansão da ocupação urbana ao longo do Arco Metropolitano, a supressão de áreas de preservação ambiental para dar espaço a usos “econômicos” e outros projetos têm sido exemplos constantes de políticas que vão na contramão da governança climática.

Embora os projetos de “desenvolvimento” propostos por parte dos governantes sejam muitos, comunidades de base possuem uma agenda de políticas urbanas que se distanciam desse modelo de desenvolvimento tradicional e se aproximam efetivamente do que poderia ser um verdadeiro plano de ação climática. Em Duque de Caxias, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a comunidade do bairro de São Bento vem se mobilizando para pautar um Parque Ecológico para o Campo do Bomba, uma área que foi retirada da APA (Área de Preservação Ambiental) de São Bento pela Prefeitura de Duque de Caxias.

O Campo do Bomba é uma área de 315,42 ha que até 2006 fazia parte da APA São Bento. A APA de São Bento foi a primeira área de proteção ambiental da Baixada, criada por decreto em 1997. As terras são de propriedade da União. A área, que fazia parte da antiga Fazenda São Bento, foi transferida pelo Ministério da Agricultura ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, quando de sua criação, em 1970.

A APA possui um trecho de baixio que absorve as enchentes dos rios Iguaçu e Sarapuí e terras que abrigam vegetação remanescente de Mata Atlântica. A APA São Bento também tem sítios arqueológicos cadastrados no Instituto Brasileiro de Arqueologia.

Em 2006, por meio de uma lei municipal, a área do Campo do Bomba foi retirada da APA de São Bento e o município solicitou a doação da terra ao INCRA. O objetivo da prefeitura era levar para a área a CEARJ, Central de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro. Mesmo tendo obtido a doação, na época não houve interesse do Governo do Estado no projeto. O documento de doação do INCRA estipulava critérios para o uso da terra que não foram cumpridos e a doação foi anulada em 2019. Vale lembrar que em 2018, reconhecendo a importância ambiental da área, o Ministério Público Federal recomendou ao INCRA que suspendesse qualquer tentativa de transferência de posse das terras ao município de Duque de Caxias. Mas a proposta de ocupação da área se manteve, sendo retomada em 2021 para o projeto de instalação de um condomínio logístico. 

A determinação da prefeitura em promover o aterramento da área para criação de terra para uso industrial mobilizou a comunidade local que defende a preservação e recuperação da área para que ela cumpra suas funções ambientais. Essa mobilização se articulou no âmbito do FORAS, uma articulação da sociedade civil de Duque de Caxias que reúne associações de moradores, movimento ambientalista e outras entidades, como o Museu Vivo de São Bento. 

No âmbito da mobilização, foram realizadas três audiências públicas para discutir as preocupações levantadas pela população em relação às intervenções realizadas no Campo do Bomba. Durante audiência realizada em 11/03/2021, convocada pelo então deputado estadual Waldeck Carneiro, apontou-se a falta de estudos técnicos socioambientais para a área, considerando a implantação do empreendimento em região frágil, em zona de amortecimento de enchentes.

Em 26/04/2021, o FORAS Caxias apresentou representação ao MPF (Ministério Público Federal) contra o andamento das obras de instalação da Central de Abastecimento do Rio de Janeiro (CEARJ) e outros empreendimentos associados. Isso porque o município iniciou obras de supressão de vegetação e terraplanagem, mesmo não tendo posse da terra.

Essa mobilização obteve, junto ao Ministério Público, uma ACP (Ação Civil Pública), em 23 de junho de 2021, que determinou a suspensão pelo município de quaisquer intervenções em andamento, diretamente ou por intermédio de concessionárias. Em 31/08/2021 foi apresentado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) por um conjunto de deputados o Projeto de Lei Estadual nº 4773/2021, que cria o Parque Estadual Quilombo do Bomba. 

A partir desse projeto, o FORAS procurou apoio junto a professores do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio (UFRJ), com a demanda de um projeto de parque. A proposta de parceria entre comunidade e universidade possibilitou a organização de um Ateliê de Projeto para alunos de mestrado. A disciplina foi organizada no primeiro semestre de 2022 e contou com aulas teóricas e práticas para a elaboração do projeto.

Em todas as aulas houve participação de representantes do FORAS, dentro da perspectiva de construir um projeto junto com os moradores da área. O nome “Parque Quilombo do Bomba” foi uma exigência da população local, já que a área abrigou quilombos no século XIX. Foram feitas visitas de campo com os alunos e convidados especialistas em modelagem hidrológica para discussão sobre a questão das inundações na área e os impactos da impermeabilização do Campo do Bomba. 

O projeto prevê a ampliação da capacidade de armazenamento de água da vazão de ambos os rios da região, aumentando seu papel de bacia de detenção natural e diminuindo o perímetro de inundação de quatro municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Com a implantação do projeto, estima-se a redução dos impactos das enchentes que anualmente ameaçam cerca de 15 mil moradores da Baixada Fluminense. Além disso, o parque estipula a utilização de vegetação fito-remediadora para tratar a qualidade da água dos rios antes do deságue na Baía de Guanabara. O sistema de ciclovias ao longo de 15Km de diques também envolve a recuperação da mata ciliar dos rios. Faz parte do programa de necessidades do projeto uma sede administrativa do parque, uma estação de trem metropolitano, uma creche e vários espaços de lazer.

Amplitude metropolitana

O debate sobre a importância da implantação do Parque Ecológico Quilombo do Bomba assume uma amplitude metropolitana quando serve de ponto focal para dispersão de corredores verdes que podem integrar toda a RMRJ. O atravessamento do eixo de alta tensão do linhão de Furnas que atravessa a APA abre uma grande galeria urbana de espaço que pode abrigar hortas urbanas, ciclovias, áreas de lazer e, principalmente, árvores de pequeno porte para abrigo e movimentação da fauna.

Os diques, como já comentado, também oferecem potencialidades para reflorestamento da mata ciliar e compõem, junto com os eixos de infraestrutura energética, uma malha verde e contínua de mobilidade limpa, além de espaços permeáveis de absorção da chuva e de controle das temperaturas, em caso de ondas de calor. Contudo, é preciso a articulação de diferentes políticas urbanas para que a proposta consiga ser implementada. Além das políticas de mobilidade, de parques urbanos, de saneamento e de drenagem urbana, a política habitacional também transpassa de maneira fundamental a problemática ambiental na Baixada Fluminense.

Com o relançamento do programa Minha Casa Minha vida, é importante que os governos municipais da Baixada Fluminense priorizem projetos que abriguem a população em áreas de risco ao longo dos rios Iguaçu e Sarapuí. Boa parte dos diques está ocupada por habitações precárias, que são as primeiras a serem atingidas pelas águas em período de cheia.

Para que projetos desse tipo sejam implementados, os governantes devem priorizar a gestão metropolitana, que desempenha um papel crucial na administração das bacias hidrográficas, na criação de sistemas de áreas verdes, na implementação de um urbanismo sensível à água e na pactuação da agenda climática. É no âmbito municipal que as parcerias conseguem se constituir. A interconexão entre diferentes municípios dentro de uma metrópole requer uma abordagem integrada e colaborativa para enfrentamento dos desafios ambientais e urbanísticos. Nesse contexto, a gestão metropolitana se destaca como uma ferramenta essencial para promover a sustentabilidade e o bem-estar nas grandes cidades.

Fator essencial desse processo político é a sensibilização dos candidatos para abertura de canais de comunicação com as bases populares para que projetos como o Parque Ecológico Quilombo do Bomba possam tomar relevo. O caso mostra que a parceria entre academia e comunidades fortalece propostas viáveis e sustentáveis das quais os governos deveriam se apropriar.

Considerando que os rios não estão restritos aos limites administrativos dos municípios, a gestão metropolitana das bacias hidrográficas é vital para preservação e utilização sustentável dos recursos naturais.

É necessário um esforço coordenado de prefeitos e vereadores para garantia da qualidade e quantidade necessária de água para a população. Políticas integradas de gestão de bacias hidrográficas podem prevenir a poluição por meio de políticas de saneamento, controlar enchentes e promover o uso racional da água. A criação de consórcios intermunicipais permite a implementação de ações conjuntas, como a construção de estações de tratamento de esgoto, a recuperação de áreas degradadas e a educação ambiental. Além disso, a gestão metropolitana pode facilitar a captação de recursos financeiros e técnicos para que projetos como o do Parque Ecológico do Campo do Bomba possam ser implementados, beneficiando toda a região metropolitana.

Áreas verdes

A criação de sistemas de áreas verdes deve ainda entrar como prioridade no programa de governo dos candidatos no próximo pleito. É fundamental entender que as políticas de asfaltamento e impermeabilização do solo tanto representam políticas do atraso como se colocam como um dos fatores de agravamento dos impactos ambientais.

Áreas verdes urbanas desempenham funções ecológicas essenciais, como a regulação do microclima, a melhoria da qualidade do ar e a preservação da biodiversidade. No entanto, a fragmentação administrativa pode dificultar a criação de corredores ecológicos e a manutenção de grandes parques. A gestão metropolitana permite a integração de políticas de uso do solo que favoreçam a conectividade entre territórios fragmentados, promovendo uma rede de espaços naturais interligados. Isso é particularmente importante em regiões densamente urbanizadas. A cooperação entre municípios pode resultar na criação de parques metropolitanos, ciclovias e trilhas ecológicas que atravessam fronteiras administrativas, proporcionando benefícios recreativos e de saúde pública para toda a população.

O urbanismo sensível à água enfatiza a integração dos sistemas naturais de água na infraestrutura urbana, promovendo soluções baseadas na natureza para o manejo de águas pluviais e a resiliência climática. Essas ações contribuem para a despoluição da Baía de Guanabara e envolvem um microplanejamento de jardins de chuva, telhados verdes e pavimentos permeáveis. A gestão integrada permite que essas práticas sejam adotadas de maneira consistente em toda a região metropolitana, maximizando seu impacto positivo. Além disso, políticas metropolitanas podem promover a conscientização pública e incentivar o engajamento comunitário para conservação da água e prevenção de enchentes. 

Em resumo, a gestão metropolitana é fundamental para administração eficiente das bacias hidrográficas, criação de sistemas de áreas verdes e promoção de um urbanismo sensível à água. A abordagem integrada e colaborativa que essa perspectiva proporciona é essencial para o enfrentamento dos desafios ambientais e urbanísticos das grandes cidades contemporâneas. Ao promover a cooperação entre municípios, a gestão metropolitana pode garantir que as políticas e ações ambientais sejam mais eficazes e abrangentes, contribuindo para a sustentabilidade e a qualidade de vida nas regiões metropolitanas.

*Thêmis Amorim Aragão é arquiteta e urbanista. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Rio de Janeiro. Professora em estágio pós-doutoral no Programa de Pós- graduação em Urbanismo PROURB/UFRJ.

**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Revisão: Renata Melo.

Edição: Mariana Pitasse