Coluna

Silvio Santos, o capitalismo e a longa estrada da democratização da comunicação

Esse jogo simbólico em torno da figura de Silvio Santos entre proximidade e distanciamento, entre vida material e ideal, teve papel importante no projeto de dominação capitalista no Brasil - Divulgação/SBT
A subserviência de Sílvio Santos ao projeto de dominação capitalista se expressou em vários momentos

No último sábado, 17 de agosto, a mídia noticiou o falecimento de Senor Abravanel. Morre o homem, vive o mito. Silvio Santos, representação midiática do falecido, vem sendo exaltado há dias, numa onda de comoção que reforça a imagem de “self made man”, de homem de origem humilde que teria trilhado genialmente seu caminho para o sucesso. A ênfase recai também sobre o que seria sua mística capacidade de se comunicar com o povo, fruto direto da suposta origem popular.  

Essa imagem mítica se fundamenta na aparência de proximidade entre Silvio Santos e nós, efeito ampliado pela presença física do aparelho televisor na maioria dos lares brasileiros, ao mesmo tempo em que esse homem da TV exibe características sobre-humanas, como um gênio da lâmpada, capaz de materializar desejos na forma de prêmios. Independente de qualquer suposta origem, porém, sua condição de grande empresário em diversos setores e a fortuna estimada hoje em cerca de R$ 1,6 bilhão colocam-no numa posição material e socialmente muito distante da realidade cotidiana de qualquer trabalhador do país.  

Esse jogo simbólico em torno da figura de Silvio Santos entre proximidade e distanciamento, entre vida material e ideal, teve papel importante no projeto de dominação capitalista no Brasil, que se desenrolou a partir da ditadura. Produziu para parte da população sentimentos de esperança, fé, pertencimento e outras experiências de engajamento ao espetáculo mediadas por um ser fantástico onipotente e provedor, em um universo cada vez mais dominado por mercadorias, contrapondo-se no plano simbólico à experiência de esvaziamento material do dia a dia de uma classe trabalhadora em formação.

É também nesse período em que a acelerada urbanização brasileira supera o predomínio da vida rural e a integração das camadas subalternizadas urbanas aparece como desafio fundamental para as camadas dominantes. 

A referida equação ideológica entre imanência e transcendência encontra um reforço na atual comoção pela morte do apresentador ao conseguir acionar, por meio da imagem mítica de Silvio Santos, nossas experiências afetivas profundas. Vivemos, principalmente no passado, momentos psíquicos e sociais fundamentais mediados pelo televisor junto com pessoas que amamos, sendo que muitas destas se encontram hoje distantes ou mesmo ausentes. Esse vínculo sagrado entre os nossos lares e esse ser sobre-humano, que aparenta falar a nossa língua porque teria supostamente em si também um pouco de nós, dificulta a nossa capacidade de enfrentar o problema.  

Como criticar essa realidade sem ameaçar arruinar a autenticidade das nossas reminiscências mais sagradas de afeto e sem se sentir desleal com aquela figura paternal-divina que nos proporcionou tantos momentos importantes? Como fugir também ao reducionismo moral (“ele foi bom ou mau?”) que ameaça o pensamento crítico com a tentação de confundir problemas históricos com julgamentos sobre condutas individuais, quando o que nos interessa, na verdade, é entender a dimensão prática do fenômeno social. Qual papel o empresário e apresentador Silvio Santos desempenhou no desenvolvimento do capitalismo brasileiro? Isto, sim, nos importa saber. 

Uma função na indústria cultural brasileira 

A consolidação do capitalismo monopolista no Brasil operada pela ditadura teve como uma de suas tarefas a integração do mercado nacional, o que significou também a estruturação de uma indústria cultural nacional alinhada com o projeto de desenvolvimento autoritário. Enquanto o capital demandava um mercado interno capaz de absorver bens de consumo, os militares exigiam dos civis subordinação às medidas de implementação das novas estruturas.

Como resultado dessa aliança, funcionou um filtro ideológico que destruiu o modelo anterior e reconfigurou a radiodifusão no país na virada da década de 70 para a de 80. Nesse período, ruíram, entre outros, os poderosos Emissoras e Diários Associados, do finado Assis Chateaubriand (o Chatô). Estúdios de TV locais existentes em várias capitais do país foram esvaziados e desmontados em benefício da integração vertical nas recém criadas “redes nacionais” sediadas no Rio de Janeiro e São Paulo. 

Foi montada, então, uma divisão do trabalho no novo oligopólio que se formou na televisão brasileira, com a Globo, de Roberto Marinho, se consolidando como líder absoluta graças ao impulso do capital internacional representado pelo grupo Time-Life. Silvio Santos e o seu Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) conquistaram, por outro lado, o segundo lugar ao beijar a mão dos ditadores, o que garantiu a preferência na concorrência pelo espólio de Chatô. O ex-camelô assumia a partir daí o papel de um “office-boy de luxo do governo”, conforme palavras do próprio empresário alguns anos depois, durante a presidência de José Sarney.  

Essa subserviência de Silvio Santos ao projeto autoritário de dominação capitalista se expressou em vários momentos ao longo da sua história, com destaque para o programa “A Semana do Presidente”, no ar entre 1981 e 1996. Apesar do dito “governismo”, porém, não chegou a esconder a preferência por perfis reacionários. Foi filiado ao PFL (atual União Brasil), nome que o partido da situação na ditadura, a Arena, veio a ter após o fim do regime de exceção. Flertou abertamente com o bolsonarismo nos últimos anos e teve seu genro, Fábio Faria, nomeado Ministro das Comunicações por Bolsonaro.  

A Globo passou por um lado a representar, no começo dos anos 80, a modernização do capitalismo monopolista no plano da cultura, a racionalização administrativa necessária à promoção de anúncios que azeitavam a circulação dos bens de consumo. Silvio Santos, por outro, com o SBT, estendia com maestria as relações tradicionais de compadrio, clientelismo e patrimonialismo para dentro do universo midiático, mesclando seu personalismo com um novo universo simbólico emergente dominado pelas mercadorias .  

O Brasil consolidou o seu acelerado processo de concentração urbana ao mesmo tempo em que a sociedade se midiatizou. TVs e rádios passaram a ser produtos eletrônicos onipresentes nos lares nos anos 80, muitas vezes em detrimento de outros itens considerados básicos, como geladeira e fogão. Nesse contexto, os programas de auditório do SBT levavam avatares do telespectador para o centro do espetáculo e Silvio Santos se utilizava de sua feitiçaria para envolver as camadas subalternizadas em um universo de mercadorias fantástico, festivo, cheio de prêmios, de aviões de dinheiro, de portas de esperança e de baús de felicidade. 

O empresário cumpriu esse papel de forma estável por pouco mais de vinte anos, quando então transformações estruturais na sociedade brasileira levaram ao fortalecimento do evangelismo, trazendo para a disputa com o SBT um concorrente. A nova TV Record, adquirida pelo chefe da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Edir Macedo, passa a dividir o segundo lugar da TV aberta a partir dos anos 2000.

Com uma estratégia que oscila entre a laicidade e o proselitismo, porém, o grupo recém-chegado caminhou por uma trilha própria, uma espécie de ecletismo mal-acomodado que encontrou o seu lugar no gosto de uma faixa de audiência. Nesse mesmo período, vários canais passaram a arrendar os seus horários de transmissão menos lucrativos às chamadas igrejas eletrônicas, que têm buscado promover sua fé por meio das concessões públicas. 

Essas transformações ameaçaram o modelo oligopolista de radiodifusão consolidado pela ditadura, mas com a chegada dos serviços digitais uma sombra de dúvidas pousou sobre o futuro da TV aberta. 

E agora? 

Hoje, cerca de quatro décadas depois de consolidado o modelo de TV aberta brasileira, algumas novidades colocam um ponto de interrogação sobre o futuro. A convergência relacionada com o processo de digitalização diversificou o mercado de comunicação, mas, contrariando a ansiedade dos profetas das tecnologias, os velhos Donos da Mídia mantêm a sua hegemonia.  

De acordo com pesquisa do Kantar Ibope Media, em 2023, 64,5% da audiência ainda se concentra na TV aberta, 25,7% em streaming e 9,8% na TV Paga. Esse domínio, porém, que já foi absoluto no mercado de comunicação hoje se sente incomodado com a presença do irmão mais novo digital. A Globo buscou se adaptar ao novo cenário, lançando serviços característicos do mundo digitalizado, como uma plataforma de streaming. O SBT, por outro lado, não acompanha essas transformações e se mantém fiel ao velho padrão.

A experiência atual sugere que é enganoso, contudo, pensar que a chegada das mídias digitais no mercado de comunicação vai simplesmente engolir a radiodifusão. É verdade, porém, que o mercado sofre pressão e agora precisa ser pensado em nova perspectiva.  

De acordo com o Cenp (Fórum de Autorregulação do Mercado Publicitário), a TV aberta, em 2023, concentrou 43,69% dos investimentos de mídia via agências de publicidade, enquanto a internet concentrou 40,75%. Mas o mercado vem crescendo, tendo sido registrados R$ 4,5 bilhões em investimento no primeiro trimestre deste ano contra R$ 3,7 bilhões em 2023. Esse crescimento beneficia a todos os setores capitalistas, ainda que de forma desequilibrada. 

Vemos que as estruturas de concentração, as barreiras a entradas, se mantêm, mas paradoxalmente há também certa diversificação com a convergência dos mercados. Há pouca mobilidade interna nos setores tradicionais alinhada com processos de centralização que colocam em concorrência oligopólios de diferentes origens, fazendo com que mercados até pouco tempo atrás diferentes passem a disputar os mesmo clientes. Todavia, os poderes se perpetuam e os herdeiros continuam recebendo suas heranças. É o caso da esposa e das seis filhas de Silvio Santos, que passam a partir de agora a comandar o patrimônio midiático (e outros) do patriarca. 

Apesar dessa resiliência do setor de radiodifusão, muitos atores progressistas abandonaram cedo demais a frente de lutas pela democratização da comunicação e nesse vácuo político a burguesia radiodifusora tem aproveitado para passar a sua boiada pelos latifúndios do ar. Nesse sentido, o Congresso vem aprovando no último ano “atualizações” da legislação de radiodifusão ao gosto dos empresários e do tele-evangelismo sem praticamente nenhuma manifestação de setores progressistas sobre o assunto. Foram aprovadas mudanças no Decreto-Lei 236/1967 que possibilitam o aumento na concentração de outorgas de rádio e TV por sociedades de qualquer natureza jurídica. O projeto de lei foi apresentado pelo deputado Marcos Pereira (REP-SP), vinculado à IURD, e não repercutiram protestos praticamente em lugar nenhum. 

Apesar da trágica experiência recente na qual vimos vários detentores da mídia aderindo ao golpe contra Dilma e apoiando a ascensão do bolsonarismo, o atual governo Lula não considera as Comunicações como um setor estratégico e, logo, não faz nenhuma sinalização de que tem intenção de mudar o cenário. Pelo contrário, reproduziu a prática tradicional de escolher seu ministro a partir da barganha com partidos fisiológicos para tentar compor uma bancada governista no congresso. Além disso, sob a gestão de Juscelino Filho, do União Brasil, o Ministério das Comunicações acelerou o processo de distribuição de outorgas, 927 no total, quadruplicando o que foi implementado no mesmo período pelo governo Bolsonaro.  

Aqueles que defendem o direito à comunicação precisam fazer um esforço para recompor o movimento em torno de um programa estratégico capaz de mudar o cenário de concentração. É preciso retomar os debates e elaborar um projeto alternativo capaz de se abrir para setores representativos das demandas de trabalhadoras e trabalhadores do país. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) ainda existe, mas necessita ser capaz de se renovar, reaglutinar setores, encher-se se de energia transformadora. Obviamente, a formulação precisa ser atualizada diante da nova conjuntura e frentes de luta devem ser formadas com atores emergentes no cenário de crescimento da digitalização e do desenvolvimento das inteligências artificiais. 

O caminho pela estrada da democratização da comunicação é longo, mas nós pretendemos seguir nele. 

*Bruno Marinoni é integrante do DiraCom, jornalista, doutor em sociologia e autor da tese “Burguesia radiodifusora no Brasil: propriedade privada e direção na produção cultural”. 

** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Nathallia Fonseca