Rio de Janeiro

Coluna

A saga das mães de pessoas privadas de liberdade no Brasil

Há uma carência de ações estatais que promovam assistência financeira, suporte psicológico, transporte gratuito e informações básicas aos familiares - Marcelo Camargo/ Agência Brasil
O Estado joga sobre os ombros dessas mães os encargos de prover o mínimo de dignidade aos filhos

Marilha Gabriela Garau*, Isabella Mesquita Martins**, Kellyn Gaiki Menegat*** e Rebeca de Souza Vieira****

Junho de 2020. Era o início do inverno, embora fizesse 30 graus no Rio de Janeiro. Apesar da situação de isolamento social, o trânsito estava caótico. As buzinas gritavam em seus ouvidos enquanto o sol que invadia as janelas do ônibus queimava o lado esquerdo de seu corpo.

O transporte coletivo retornava gradualmente. Faziam três meses da decisão de suspensão das visitas no sistema prisional do estado. Três meses de saudade e de preocupação. Nenhuma notícia, nenhuma informação. Todos os dias, ela ligava para o ramal da Defensoria Pública, mas ninguém atendia. Já o número de telefone da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária nem completava a ligação.

Rezava todos os dias pela saúde do seu caçula, ficou angustiada quando ouviu na televisão que o vírus era mais letal entre aqueles com doenças respiratórias. O filho que havia sido preso em outubro de 2018 nunca teve uma saúde muito boa. Desde a infância passou por períodos de internação por conta da asma e da bronquite, mas foi no presídio que desenvolveu problemas pulmonares mais graves e, desde então, vivia na enfermaria.

Todos os meses a família fazia um esforço para juntar o dinheiro e ela levava remédios e mantimentos. Apesar de o trajeto exigir horas de trânsito e um dia a menos de trabalho, só ela podia fazê-lo, já que era a única da casa que tinha conseguido fazer a carteirinha de visitante.

Devido à pandemia, estava há meses sem fazer uma diária. Viver de faxina sem ter carteira assinada ficou mais difícil em tempos de excepcionalidade. Ainda mais porque o auxílio emergencial continuava com o status: “em análise”. Na semana anterior deu “sorte”, pois uma antiga cliente, cansada da pandemia, a chamou para limpar a casa. Recebeu R$180 e, com esse dinheiro, conseguiu comprar mantimentos básicos para duas semanas. Como de costume, separou uma parte para levar ao filho no presídio.

Ela estava eufórica.

Acordou às 5h para conseguir estar na fila antes das 9h, horário em que poderia entregar a sacola para a galeria B. Desceu da última condução a uns 600 metros do destino, cada passo era motivo de emoção. Finalmente, ela podia levar remédios e comida para o seu garoto. Carregava as duas bolsas, mas o peso não a incomodava, era como se fossem troféus.

Preparou com carinho o molho de cachorro quente, colocou no recipiente adequado, acomodou o pão de forma no saco transparente, assim como o biscoito da vaquinha e a pipoca doce sem casca que ele adora. Do jeitinho que era permitido. Fez o suco de pozinho na véspera. Deixou dormir no congelador para chegar lá geladinho. Tudo preparado com muito carinho. Ainda acrescentou uma caixa de sabão em pó e detergente.

“Nesses tempos as coisas têm que ficar bem limpinhas”. Entregou as sacolas para o funcionário que a olhou com desdém, mas recebeu os produtos. Ela perguntou se eles tinham previsão de retorno das visitas. O homem a respondeu ironicamente: “A senhora não está vendo as notícias não?”. Não ligou, já estava acostumada a esse tratamento peculiar.

Na volta, quando estava indo para o ponto de ônibus, viu um bar com uma porta meio aberta e uma pessoa limpando; se ofereceu para terminar a faxina por qualquer quantia. O senhor de meia idade gentilmente aceitou, ainda lhe deu uma quentinha na hora do almoço! Lá pelas quatro horas da tarde, já tinha acabado a limpeza e estava voltando para casa. Ficou por algum tempo aguardando o ônibus quando descobriu que o ponto final havia mudado de lugar por conta da pandemia. Precisou refazer o caminho, passando outra vez pela frente do Presídio Ary Franco.

Foi então que ela desabou, pois para seu desespero e desgosto, se deparou com sacolas pretas lotadas de alimentos sendo reviradas por cachorros de rua. Eram as comidas entregues horas antes.

Se arrastou pelo asfalto até o outro lado da rua, sentou-se no meio fio e chorou. Chorou muito. Pensou sobre os últimos anos, sobre os tempos atuais. Sobre a luta para alimentar seu filho e os filhos de outras mulheres que, como ela, nem sempre tinham algo para compartilhar. Rezou baixinho pela saúde do caçula. Enxugou as lágrimas e seguiu seu rumo. Essa narrativa foi adaptada a partir de entrevista feita por uma das pesquisadoras que assinam este texto. 

Péssimas condições

O sistema prisional brasileiro é conhecido por suas péssimas condições. Somando mais de 850 mil pessoas encarceradas, de acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país possui a terceira maior população carcerária do mundo. As prisões estão cronicamente superlotadas, com infraestrutura inadequada e serviços de saúde limitados, condições adversas que afetam não apenas os presos, mas também suas famílias que precisam lidar com as consequências da pena, dividindo o ônus do encarceramento, sobretudo no que se refere ao fornecimento de insumos materiais, passando para o particular a responsabilidade de manter a pessoa privada de liberdade. 

A visita dos familiares é parte crucial nesse processo.

Sobre esse público, no Rio de Janeiro, por exemplo, cerca de 86% das pessoas que visitam presídios são mulheres, e aproximadamente 30% delas são mães das pessoas privadas de liberdade, como mostra a pesquisadora Isabella Martins em sua dissertação de mestrado intitulada “'A SEAP não tem que comunicar nada pra ninguém' - Fluxos de comunicação e de informação na gestão penitenciária do Rio de Janeiro". 

As mais diversas pesquisas sobre os visitantes no sistema prisional tendem a destacar que "o mundo social que se estrutura em função da visita, se constitui como um universo absolutamente feminino", como afirma Rafael Godoi em "Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos”. A presença massiva de mulheres nas filas é justificada por uma forte "associação entre masculinidade e crime, ou sobre o fato de que as prisões são fundamentalmente lugares para homens heterossexuais" segundo o texto “Políticas sexuais e afetivas da prisão: gênero e sexualidade em tempos de encarceramento em massa”, de Natália Lago e  Marcio Zamboni. Nesse contexto, as mães, tal qual as parceiras afetivas, se tornam figuras centrais nesse circuito, reforçando o caráter feminino desse ambiente.

É certo, porém, que as mães de pessoas encarceradas enfrentam um desafio duplo: além de lidar com a questão emocional, muitas vezes assumem a responsabilidade de fornecer o suporte financeiro e material, aspecto apontado no texto “Visitação nas unidades prisionais do Rio de Janeiro: uma análise do papel do familiar no sistema prisional a partir da pandemia”, de Marilha Garau e Isabella Martins. O que inclui agregar ao orçamento familiar também o pagamento de honorários advocatícios para reduzir e até mesmo fazer findar o tempo de pena de seus filhos encarcerados.

O papel das mães e a suspeição constante 

As mães de pessoas privadas de liberdade enfrentam suspeição constante por parte das instituições e de seus atores, exclusivamente por seus filhos estarem encarcerados. Segundo relatos, o ato de visitar produz uma espécie de suspensão temporária de direitos, autorizando, inclusive, tratamento degradante, desconsideração de direitos e, em alguns contextos, manutenção da prática da revista íntima, ainda que constitucionalmente vedada. 

Assim, experimentam as mais diversas formas de violências físicas, psicológicas, financeiras e simbólicas, de modo que seus corpos se tornam passíveis de punição secundária, conforme relatos extraídos da pesquisa “Eu me sinto presa junto com ele”: ser visitante e mulher negra nos presídios de Salvador e Região Metropolitana”, de Rebeca Vieira.

O estigma é fomentado pela presunção de que essas mães são, de alguma forma, cúmplices ou coniventes com atos criminosos. Além disso, reforçam estereótipos de gênero e a desconfiança em torno dessas mulheres, especialmente em um contexto estruturalmente machista, na qual o papel do feminino que é permeado pela noção do cuidado passa a ser colocado em questionamento quando do exercício ao direito de visitar.

Para além disso, muitas vezes relatam uma culpa oculta pelo encarceramento de seus filhos, reforçada por um discurso que tende a responsabilizá-las pela situação de sua prole, colocando-as como agentes centrais de uma possível prática criminosa, ante uma suposta negligência do dever de cuidado. Em um contexto no qual o papel da mulher é frequentemente reduzido ao de cuidadora e responsável “pela moral e bons costumes” familiares, a prisão de um filho é tomada como uma confissão de fracasso como mãe.

A junção dessas pressões sociais, transformam a experiência das mães de apenados em uma saga de resistência e resiliência, reforçada pela luta diária contra julgamentos, condições adversas das visitas e a dor emocional de verem seus filhos privados de liberdade. No entanto, continuam a ser uma fonte vital de apoio e esperança, bem como o alicerce que mantém as instituições prisionais em funcionamento regular.

Desafios e adversidades

Além de todo o peso emocional da ausência, da preocupação com a saúde e a segurança de seus filhos e da ciência da insalubridade e estrutura do ambiente da prisão, outro grande desafio enfrentado pelas mães é o financeiro. Muitas dessas mulheres, já em situação de vulnerabilidade antes do encarceramento, veem a situação se agravar. Os custos das visitas são altos: o deslocamento até os presídios, alimentação durante as longas esperas, a necessidade de levar mantimentos e itens básicos, muitas vezes abrindo mão da remuneração de um dia de trabalho dedicado a visitar.

As sacolas com os itens que levam para os presídios são essenciais à sobrevivência das pessoas presas que dependem desses insumos para alçar o mínimo de dignidade alimentar, saúde e higiene. Tal responsabilidade representa um fardo financeiro significativo no orçamento doméstico, com relatos de custos mensais próximos a R$ 500, o que representa mais que um terço do salário mínimo atual.

Assim, essas mulheres enfrentam a perda de renda, já que muitas precisam reduzir suas horas de trabalho ou até abandonar seus empregos para visitar regularmente. O deslocamento é outro grande desafio enfrentado. Em São Paulo, por exemplo, muitas prisões estão em áreas periféricas, distantes dos centros urbanos, ou seja, de difícil acesso, exigindo viagens que duram horas. Os riscos, os custos, a qualidade do transporte e a logística necessária se somam às dificuldades para as visitas.

A falta de políticas públicas que forneçam apoio às visitantes é evidente.

Há uma carência de ações estatais que promovam assistência financeira, suporte psicológico, transporte gratuito e informações básicas. As organizações não governamentais e redes de apoio informal, não raramente, figuram como as únicas bases de assistência, mas que não conseguem suprir todas as demandas.

A forma como as mães experimentam a imposição do contexto prisional sobre suas vidas tem particularidades que não podem ser invisibilizadas. A culpa, a saudade e o julgamento sobre o exercício de sua maternidade acompanham essas mães e se intensificam enquanto elas permanecem presentes na vida de seus filhos durante a execução da pena. Paralelamente, as instituições, os servidores da administração penitenciária e a sociedade como um todo operam juntos para a construção de um ambiente hostil contra elas que, efetivamente, não respondem por crime algum.

O Estado, responsável pela manutenção digna da vida de seus filhos aprisionados, joga sobre os ombros dessas mães o encargo financeiro e logístico de prover-lhes o mínimo de dignidade. Prática estatal chancelada por uma visão social de que os apenados merecem estar em vulnerabilidade e carência material. 

A seu turno, a sociedade, mobilizada por discursos políticos inflamados, mantém vivo o imaginário de que essas mulheres são culpadas por um crime não disposto no Código Penal: o de serem familiares de preso, agindo como se houvesse um poder de contaminação pelo apenado, capaz de justificar a exclusão e o tratamento degradante dispensado a elas. Portanto, durante todo esse processo, têm suas maternidades violentadas de diversas formas, seja pela ausência forçada de seus filhos, pela ciência da situação à qual eles estão submetidos no interior das prisões e, mais diretamente, pela forma como o contexto prisional se impõe sobre elas.

Apesar de um imaginário social dominante que produz significados sobre o que é ser mãe no Brasil, se faz necessário problematizar sobre quais mães são representadas como sujeitos de direitos, compreendendo que o exercício da maternidade precisa ser respeitado e balizado por mandamentos legais, não por estigmas sociais que autorizam uma espécie de justiçamento paralelo por um ato abstrato, moralmente direcionado, sobre uma conduta que essa mãe jamais cometeu.

*Marilha Gabriela Garau é pesquisadora de pós-doutorado (PDR10-Faperj). Doutora em ciências jurídicas e sociais (UFF). Membro da REMA. Desenvolve pesquisas sobre justiça criminal e segurança pública.

**Isabella Mesquita Martins é doutoranda em Sociologia e Direito (UFF). Pesquisadora do IPEA. Desenvolve pesquisas sobre administração penitenciária, sistema de justiça criminal e segurança pública.

***Kellyn Gaiki Menegat é doutoranda em Antropologia Social (PPGAS/UFSC). Desenvolve pesquisas sobre violência de Estado, interseccionalidade e aprisionamento de mulheres trans e travestis.

****Rebeca de Souza Vieira é doutoranda em Antropologia Social (UFSC). Desenvolve pesquisas sobre relações familiares, violências e resistências no sistema prisional.

****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Edição: Mariana Pitasse