O show da cantora Madonna, em maio deste ano, na Praia de Copacabana, foi um verdadeiro espetáculo que abalou conservadorismos e revelou a expectativa que parcela da população carioca tem de viver em uma cidade democrática e diversa. Mas a política cultural carioca precisa ser muito mais ampla do que a promoção de espetáculos voltados ao turismo.
Em sua história, a cidade do Rio de Janeiro teve dois grandes momentos em que iniciativas originais de políticas culturais foram implementadas. A primeira vez foi sob a direção do ator Antônio Pedro, o primeiro secretário de Cultura do município do Rio de Janeiro entre 1986 e 1988, na gestão de Roberto Saturnino Braga.
Antônio Pedro estabeleceu uma relação forte entre a secretaria e os movimentos sociais, uma marca que não era só da cultura, mas de toda a gestão de Saturnino. O segundo grande momento aconteceu em 2009, com a gestão de Jandira Feghali como Secretária Municipal de Cultura. Essa gestão foi marcada pela popularização das políticas culturais da cidade: a zona sul deixou de ser o centro privilegiado das atenções, enquanto a zona norte e a zona oeste ganharam novos equipamentos públicos.
É preciso construir o novo, mas sem ignorar as boas experiências que já tivemos no passado. O repertório de políticas culturais que a prefeitura do Rio deveria valorizar é amplo, mas podemos listar algumas delas como a criação de uma rede carioca de Pontos de Cultura, o fortalecimento do Conselho Municipal de Cultura, a realização anual da Conferência Municipal de Cultura, a formação cultural nas escolas, a criação de um Museu da Memória e da Verdade e o fim do modelo neoliberal de gestão dos equipamentos culturais.
Em 2004, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou uma das mais inovadoras políticas culturais do país: o Programa Cultura Viva. Em vez de investir milhões de reais em grandes eventos ou em novos equipamentos, o governo federal decidiu identificar as iniciativas culturais já existentes em todo o país e investir nelas. Por meio de editais, pequenas iniciativas já existentes nas cinco regiões do Brasil foram cadastradas como Pontos de Cultura e receberam investimentos para suas atividades. A ideia era fomentar, de baixo para cima, tudo o que já existia de diversidade cultural sendo produzida no país.
Em 2014, com a sanção da Lei Cultura Viva (Lei nº 13.018/2014), de autoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB - RJ), o Programa Cultura Viva e os Pontos e Pontões de Cultura tornaram-se Política de Estado. A cidade do Rio chegou a ter naquele momento uma ampla Rede Carioca de Pontos de Cultura. O programa, no entanto, foi descontinuado.
Em vez do retorno da lógica dos grandes espetáculos de cima para baixo, melhor faria a prefeitura do Rio se voltasse a investir numa ampla rede carioca de Pontos de Cultura, investindo em iniciativas já existentes como o Centro Afro Carioca de Cinema Zózimo Bulbul, a Revista Traços, o Leão Etíope do Méier ou o Sarau do Calango na zona oeste, entre tantos outros.
A prefeitura do Rio de Janeiro tem adotado, nas últimas décadas, um modelo neoliberal de gestão baseado nas chamadas Organizações Sociais (OSs). São essas entidades privadas as responsáveis pela gestão de diversos equipamentos municipais de cultura como o Museu de Arte do Rio, o Museu do Amanhã, as Lonas Culturais e as Areninhas, entre outros. O que move essa lógica é o típico projeto de austeridade neoliberal: reduzir custos e supor que o mundo privado possui maior capacidade de gestão que o público. A consequência é a privatização do que deveria ser público, ainda que seus gestores prefiram termos “técnicos” como concessão ou parceria para escamotear o fato de que há um dono para aquele determinado equipamento que deveria ser de todos.
Na prática, as denúncias de clientelismo ou de desvio de interesse na gestão desses equipamentos são corriqueiras.
Falar em cultura é também falar em história, ou melhor, é falar em memória, em como construímos as narrativas sobre nosso passado. Na história recente, a cidade do Rio foi palco de cenas tristes promovidas pela ditadura militar. Aqui estavam centros de tortura como o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) no Centro e o Departamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), na Tijuca. No entanto, poucos conhecem essa história, pois o Brasil nunca teve uma justiça de transição como outros países. O Chile, por exemplo, possui um Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Santiago onde essa história é contada em detalhes. Mas no Brasil ainda não há nada parecido, em que pese o Projeto de Lei 90/2023 de autoria da deputada estadual Dani Balbi (PCdoB) que propõe a transformação do antigo prédio do DOPS em um Museu da Memória e da Verdade.
É, certamente, uma exigência histórica que a prefeitura do Rio de Janeiro construa um Museu da Memória e da Verdade para que o valor da democracia nunca seja esquecido.
Para que tudo o que foi dito até aqui seja possível, faz-se necessário também uma educação para a cidadania cultural. E esse tipo de educação só é possível com uma escola universal em tempo integral. Por essa razão, é uma exigência que a política cultural esteja em acordo com a política educacional da cidade. As escolas podem e devem ser espaços privilegiados para o estímulo da formação, produção e fruição cultural.
Tudo o que foi dito até aqui precisa ser acompanhado pela sociedade civil. Como bem registra a literatura especializada, o Brasil tem sido inovador na criação de mecanismos que articulam representação, participação e deliberação, como os Conselhos e as Conferências de políticas públicas. No caso do Rio, o Conselho Municipal de Política Cultural é a instância de representação da sociedade civil na Gestão Pública da Cultura no Município do Rio de Janeiro. A sua manutenção com reuniões frequentes é fundamental. Conselhos, no entanto, por mais importantes que sejam, têm tradicionalmente uma participação de poucos atores. É com as conferências de políticas públicas que a participação ganha em escala. Em 2023, a cidade do Rio realizou a sua 4ª. Conferência Municipal de Cultura. Antes dela, a 3ª Conferência Municipal de Cultura havia sido realizada em 2018. Esse longo espaço de cinco anos entre uma e outra aconteceu na medida em que essas conferências, em geral, seguem a lógica de uma convocação nacional. Mas não é preciso que seja assim. A prefeitura do Rio de Janeiro poderia institucionalizar a realização anual da Conferência Municipal de Cultura independentemente das convocatórias nacionais.
Há muito que possa ser feito pela diversidade cultural em nossa cidade. Mas, para isso, precisamos inverter a lógica da cidade-espetáculo imposta de cima para baixo e promover uma lógica da cidade-diversidade construída de baixo para cima.
*Rafaela Albergaria é assistente social, idealizadora do Observatório dos Trens e articuladora do Mulheres Negras Decidem.
**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Jaqueline Deister