A soberania de uma Venezuela farta de petróleo é intolerável aos Estados Unidos
Estive presente na eleição presidencial venezuelana no ano de 2012. Aquela foi a última eleição que teve Hugo Chávez como um dos candidatos. O nome da oposição à época era Henrique Capriles. Para quem não conhece Capriles, quando tentaram dar um golpe em Chávez, em 2002, ele era o prefeito na cidade de Baruta, no estado de Miranda. Ali estava sediada a embaixada cubana, que, mesmo sendo território estrangeiro segundo orientações do direito internacional, foi invadida por Capriles, além de cortada a água e a luz. Isso o levou a prisão por quatro meses. Esse era o tipo de oposição desde o início do século XXI na Venezuela.
Voltando para o ano de 2012, alguns dias antes da eleição, acompanharíamos uma fala de Chávez no teatro Teresa Carreño, mas fomos somos surpreendidos com a sua ausência, em razão de uma explosão na refinaria de Amuay, no estado de Falcón, causando a morte de mais de 40 pessoas e deixando mais de 100 feridos. Pouco depois, o comitê de investigação concluiu que a origem da falha geradora da explosão decorreu de uma sabotagem deliberada da oposição à Chávez na eleição presidencial. Ainda assim, ele saiu vitorioso naquele pleito.
Somam-se a esses dois, tantos outros atos realizados pela oposição chavista depois que perderam o poder de gestão sobre o petróleo e gás venezuelanos, como em 2014, ano em que Capriles e Leopoldo López lideram a queima da sede da produtora e distribuidora de alimentos da Venezuela (DPVAL) e de vários escritórios do partido chavista (PSUV).
Qualquer semelhança com este histórico não é mera coincidência, como a tentativa de atentado à bomba em aeroporto ou invasão de prédios dos poderes da república. Este é o modus operandi da extrema direita na América Latina, a venezuelana com mais experiência que as demais, pois recebe o apoio irrestrito da política externa dos Estados Unidos, inclusive no suporte a estas ações.
Não por acaso, a Venezuela precisou cortar relações com a OEA (Organização dos Estados Americanos) em 2017, visto que havia uma ingerência da organização, sob influência direta dos Estados Unidos, em assuntos internos da Venezuela. Resta lembrar que a mesma OEA expulsou Cuba dos seus quadros em 1962 e legitimou o Golpe de Estado na Bolívia em 2019.
Atentados e tentativas de golpe não são exceções na direita venezuelana. Há muito que esses grupos não apostam suas fichas em pleitos eleitorais, mas em ações diretas voltadas a derrubar o governo. Isso ficou mais nítido, depois que o chavismo garantiu hegemonia política no país, seja na gestão de Forças Armadas nacionalistas e anti-imperialistas, seja através da mobilização popular por meio de eleições diretas (mais de 30 nos últimos 25 anos) e de programas sociais como o Misión Vivienda, que garantiu o direito à moradia construindo mais de 5 milhões de casas ou a Misión Mercal garantindo alimentos de baixo custo e alta qualidade, para ficar em dois exemplos. Boa parte destes programas assegurados com o dinheiro do petróleo. A soberania de uma Venezuela farta de petróleo é intolerável aos Estados Unidos.
Mesmo com problemas econômicos severos, ocasionadores de migração, também gerados pelo embargo externo dos Estados Unidos, a Venezuela, de país mais desigual em 1999, tornou-se o menos desigual, com a redução de 54% do coeficiente Gini devido às políticas sociais.
Todos estes pontos levantados ajudam a ampliar uma análise que não deve se limitar a uma pressão de invalidação eleitoral na Venezuela. As razões da pressão internacional nunca foram sobre democracia, muito menos sobre Maduro, mas sobre seguir a cartilha do fortalecimento de um projeto neoliberal.
Todos aqueles que pedem eleições livres, por coerência, também deveriam respeitar a separação de poderes, além da soberania daquele país. Segundo os preceitos liberais, desde que não se prove o contrário, o voto do povo venezuelano deve ser respeitado e o resultado foi proclamado pelos poderes instituídos.
O discurso de que o Judiciário é controlado por Maduro, além de ignorar que não é competência presidencial a escolha dos juízes da Corte Suprema, mas da Assembleia Nacional (ou seja, outro Poder), é tão frágil quanto aquele que insiste que o Supremo Tribunal Federal (STF) é petista. Talvez seja uma comparação razoável para se compreender o uso de dois pesos e duas medidas quando o contexto venezuelano está em jogo.
Sobre uma eventual fraude eleitoral, qualquer país que estufe o peito para defender os valores liberais, deveria cobrar de quem acusa a fraude, a demonstração do ocorrido. Algo que ainda não aconteceu. Exigir ata de eleição dos poderes instituídos, por mais que pareça um passo importante da diplomacia para arrefecer a temperatura de um conflito iminente, é sem sentido.
Isso cabe aos poderes instituídos venezuelanos, a averiguação do pleito realizado, tanto ao Conselho Nacional Eleitoral quanto ao Poder Judiciário. Imagine a pressão social e conflitiva gerada se a Justiça Eleitoral brasileira fosse constrangida por outros países a apresentar todas as atas eleitorais na eleição de 2022, amparada em uma avalanche de fake news sobre a lisura do processo.
Já pensou em uma sociedade sem que os Estados Unidos pudessem produzir guerras no mundo ou não pudessem embargar nenhuma nação como fazem na Venezuela? Difícil, pois nunca vivenciamos essa situação.
Fato é que a extrema direita que quer invalidar as eleições na Venezuela não tem compromisso nenhum com a democracia liberal. Por lá, invadiram embaixadas, mataram compatriotas em atentados, queimaram prédios públicos. Os fatos históricos estão aí para demonstrar. Acompanham Marina Corina pessoas como Javier Milei, Jair Bolsonaro, Juan Guaidó, José Antonio Kast, que atuam num tom bem diferente do que passam os noticiários brasileiros arrebatando liberais numa narrativa de luta democrática.
Não será possível o exercício da soberania nacional de países economicamente dependentes sem uma ruptura anti-imperialista. Se a Venezuela sucumbir, o risco da América Latina sucumbir é concreto.
Resta saber quais países e em quais noticiários pedirão as atas da eleição americana no final do ano. A ver.
Edição: Martina Medina