Glenda Nicácio e Ary Rosa saíram de Minas Gerais sem se conhecerem, mas compartilhando um mesmo sonho de fazer cinema no Brasil. Por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) os dois se encontraram em Cachoeira (BA), quando começaram a estudar na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).
O que era para ser apenas um curso superior e uma nova cidade longe de casa se tornou em referência e inspiração para toda a produção que a dupla viria a exercer na sequência.
Após se conhecerem na Universidade e compartilharem desejos, a dupla fundou a Rosa Filmes e não demoraram a lançar Café com Canela, uma "uma verdadeira carta de amor para a cidade", como descreve Glenda Nicácio em entrevista ao programa Bem Viver desta segunda-feira (12).
Neste mês, cidades brasileiras receberam a mostra Cinema é Cachoeira, com filmes produzidos pela dupla. Até quarta-feira (14), Rio de Janeiro, São Paulo e Poço de Caldas (MG) têm programação gratuita dos filmes Café com Canela, Ilha, Voltei!, Mugunzá e Até o Fim.
"Cachoeira foi uma grande revolução na nossa vida [...] É uma das cidades mais negras do país e isso foi muito determinante para a nossa produção", comenta Nicácio sobre a influência que cidade do Recôncavo baiano representou para produção da dupla.
Glenda Nicácio compartilha também os desafios de ser uma mulher negra à frente de grandes produções cinematográficas no Brasil.
"As pessoas até perguntam, acho que elas não se filtram, então às vezes até sai um 'nossa, como que você trabalha aqui?’ ou ‘nossa, como que você fez para ser diretora?' Várias vezes você ouve esse tipo de pergunta", comenta a cineasta.
"As pessoas não estavam esperando que fosse eu... pena delas. Eu acho que é um acontecimento que tem se realizado no audiovisual brasileiro."
A partir da inspiração de Cachoeira, a dupla de diretores vem realizando um feito no cinema nacional de lançar filmes com protagonistas negros e negras, representando aspectos do cotidiano dessa parcela da população e se distanciando dos estereótipos de violência tão presentes nas produções brasileiras mais conhecidas.
"O fato de a gente produzir no Recôncavo fez também a gente criar linguagens ancorada nas coisas, nos valores, nos pactos de lá. Então, isso faz com que a gente integre muito à paisagem, não só enquanto cenário, mas a paisagem sonora, a paisagem visual, a paisagem do cotidiano nos nossos filmes", explica.
"Antes do Café com Canela, eu acho que poucas vezes no cinema a gente tinha parado para escutar, de fato, os nossos corpos, os sons que nós emitimos".
Nicácio foi "apadrinhada" pela atriz Elisa Lucinda, que esteve em Cachoeira para participar de um festival e conheceu a diretora. O encontro foi o início de uma amizade que está rendendo um documentário.
Ainda sem previsões concretas sobre data, Nicácio explica que se sentiu provocada a realizar um filme que retratasse a vida da atriz e poetisa brasileira.
"É uma intelectual da mais fina praça. Falar sobre a vida dela é olhar para a nossa história enquanto sociedade brasileira. É você entender, nossa, quem somos? Olha o que uma mulher pode ser na sua potencialidade", comenta Nicácio que revela o nome do documentário: Por Elisa.
Confira a entrevista na íntegra
Como foi esse processo de sair de Minas Gerais, ir para Cachoeira e estabelecer a cidade como cenário da maioria das produções dos filmes de vocês?
São vários processos, né? Acho que tudo se inicia com o nosso encontro na cidade de Cachoeira, justamente na turma de 2010 do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB. Era a terceira turma e a primeira vez que se podia entrar na universidade com a nota do Enem.
Eu sempre fui aluna de escola pública, sou a primeira pessoa da minha família a cusar uma universidade federal, enfim. Então tinham várias questões ali que me motivaram a agarrar essa chance.
Já o Ary é de Pouso Alegre, a gente se encontra, viramos amigos e abrimos a nossa produtora Rosa Filmes.
Cachoeira foi uma grande revolução na nossa vida. Hoje, com um pouco mais de distância, eu consigo ver que o nosso primeiro filme longa Metragem, que foi o "Café com Canela", foi uma verdadeira carta de amor para a cidade. Na época, eu não entendia isso.
Cachoeira é uma das cidades mais negras do país e isso foi muito determinante para a nossa produção. Porque aprender cinema nessa cidade é uma experiência única, a gente costuma falar que se a gente tivesse aprendido cinema em outro lugar, o que a gente produz seria totalmente diferente.
É o lugar que a gente escolheu como casa, então também é a minha comunidade, e é o lugar que eu me identifico no mundo. Eu acho que sempre os nossos filmes têm essa vontade de se comunicar com aquela paisagem, com aquelas pessoas, com aquele cotidiano, e depois disso expandir.
Mas é com aqueles corpos que a gente está falando.
Cachoeira é uma cidade extremamente marcada pela escravidão e pela violência contra a população negra. Produzir cinema lá é uma maneira de mostrar, também, as potencialidades e ressignificações que a população construir neste local?
Com certeza, a região do Recôncavo tem uma história, uma trajetória muito bruta. Então eu acho que estar lá é uma escolha também. A gente entendeu isso muito pensando especificamente no fazer cinema, na produção. A gente entendeu muito cedo isso.
Querendo ou não, ninguém imagina que quando você fala em produzir cinema, ninguém imagina que você vai produzir numa cidade com menos de 50 mil habitantes, numa cidade interiorana, numa cidade que tem outras dinâmicas.
Inclusive tem um desafio, que [é o fato de que] não necessariamente a cidade tem todos os serviços especializados para cinema. Então, eu sinto que estando lá, a gente também tem que pensar muitas vezes em uma organização e uma reorganização desses serviços do cotidiano.
Por exemplo, eu não tenho uma empresa de figurinos para cinema, mas eu tenho uma cooperativa de costureiras, que são especializadas. Elas não produzem para vídeo, mas elas podem produzir para vídeo também. Eu sinto que é sempre uma produção que está sempre muito colada com a economia criativa.
O cineasta Joel Zito Araújo classifica o cinema como o setor mais discriminatório para população negra no Brasil. Você sente que faz parte de uma revolução ao ser uma mulher negra no audiovisual brasileiro?
É muito caótico, porque eu acho que a gente não foi preparada, não foi idealizada para estar aqui.
Quando eu saio para fazer produções fora desse lugar da Rosa Filmes, eu falo "caramba, é muito ostensivo". Porque as pessoas não estão preparadas para te ver ali também, né?
Então, parece que você ali é sempre um susto. Tipo, "nossa, o que você está fazendo aqui?" É uma pergunta muito comum a gente ouvir tanto pelas pessoas que vão assistir os nossos filmes, quanto pelas pessoas que estão trabalhando nessa equipe, quando descobrem. "Nossa, você é diretora?" "Nossa, como?"
As pessoas até perguntam, acho que elas não se filtram, então às vezes até sai um "nossa, como que você trabalha aqui?" ou um "nossa, como que você fez para ser diretora?" Várias vezes você ouve esse tipo de pergunta.
As pessoas não estavam esperando que fosse eu... pena delas. Eu acho que é um acontecimento que tem se realizado no audiovisual brasileiro.
E, sem dúvida, eu acho que a potencialidade da produção negra no audiovisual tem sido incomparável. É um lugar onde nós não podemos contar as nossas histórias por muito tempo. Então, tem muita coisa muito fresca, muito nova, com outros padrões.
As nossas opções estéticas são diferentes, são outras, são diferentes, não tem como a gente querer colocar tudo num mesmo tipo de cinema. Assim como dentro da própria produção negra, eles são produções diferentes, você pode esperar qualquer coisa de uma produção negra e de uma diretora negra.
Essa liberdade está cada vez mais em voga. Sinto que nós estamos ocupando esses lugares, mas não só estamos ocupando esses lugares, como nós estamos reestruturando esses lugares. Porque estamos ocupando esses lugares, sendo quem somos, reconstruindo a partir de outro conceito de brasilidade, que não seja da branquitude, que não seja de uma herança escravocrata.
Elisa Lucinda é uma grande admiradora do seu trabalho. Ela comentou em entrevista ao Brasil de Fato ter se emocionado com a cena de Café com Canela que uma personagem negra penteia seu cabelo crespo com um pente de garfo, algo que a atriz considerou inédito no cinema nacional. Esse tipo de cena e detalhe foi pensando com essa intencionalidade?
O fato de a gente produzir no Recôncavo fez também a gente criar linguagens ancorada nas coisas, nos valores, nos pactos de lá. Então, isso faz com que a gente integre muito à paisagem, não só enquanto cenário, mas a paisagem sonora, a paisagem visual, a paisagem do cotidiano nos nossos filmes.
Essa relação com o corpo, por exemplo. A nossa construção, tanto de som quanto de fotografia também, é uma construção que olha diretamente para isso. É uma câmera que está ali, quase que à mercê daqueles corpos, uma câmera que é meio que apaixonada por aqueles corpos, por aqueles corpos negros, por aquelas mulheres negras.
Um ponto de escuta que quer saber quem são essas pessoas, quer parar para ouvir. Antes do Café com Canela, eu acho que poucas vezes no cinema a gente tinha parado para escutar, de fato, os nossos, os sons que nós emitimos, as nossas palas.
E o que você pode falar sobre o documentário que está em produção sobre Elisa Lucinda?
Se chama Por Elisa. Nós estamos em processo de captação.
A Elisa foi uma... enfim, eu sempre fui uma grande fã, uma grande leitora da poesia dela. Eu gosto muito de poesia, pra mim, eu gosto mais de poesia do que eu gosto de cinema, muito mais.
Então assim, eu sempre fui uma grande, uma grande fã dos livros da Elisa. E quando a gente se conheceu teve um apaixonamento, uma sinergia, um olhar de reconhecer uma pessoa que também fala a sua língua, né?
Pra mim, a Elisa é extremamente inspiradora. E cada vez mais convivendo, estando próximo, eu pensava, “gente, que absurdo, a Elisa não tem um filme dela, não tem um produto dela, não tem um...”
Porque Elisa, pra mim, ela é um acontecimento. Ela traz toda uma trajetória, uma história. E ela produz muito no agora. Muito. Você acompanha ela no Instagram e vê que numa semana, ela fez uma festa, escreveu um livro, lançou um filme e tá finalizando a noite com um espetáculo de música.
Você fala assim, “gente, o que tá acontecendo? Eu só consegui tomar café da manhã até agora, ele já fez tudo isso”.
Então, eu acho que ela é uma intelectual da mais fina praça. Falar sobre a vida dela é olhar para a nossa história enquanto sociedade brasileira. É você entender, nossa, quem somos? Olha o que uma mulher pode ser na sua potencialidade.
Olha que lindo, que deslumbre. Só me vem palavras de muito encantamento quando eu penso na Elisa, e eu espero fazer um filme que vá para esse lugar também.
Eu espero gravar ano que vem, e aí no final de 2025, começo de 2026, talvez estar lançando.
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Edição: Nathallia Fonseca