As características das culturas das periferias pautadas nos fazeres coletivos, na apropriação do processo formativo, na perspectiva racial, em especial negra, foram destaques da mesa de abertura do segundo dia do Encontro Nacional de Culturas e Periferias, que se iniciou na manhã deste sábado (10). O objetivo do evento é dar centralidade para as culturas das periferias na proposição de políticas públicas em âmbito nacional, através da sintetização de propostas aprovadas na 4° Conferência Nacional de Cultura ocorrida em março deste ano em Brasília.
O evento é uma realização da Promacom - Projeto Mais Comunidade em parceria com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), a Secretaria de Relações Institucionais, a Secretaria Nacional de Juventude da Secretaria-Geral da Presidência da República, a Fundação de Arte de Niterói (FAN) e com o apoio do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável.
Mesmo com chuva intensa, fazedores de cultura, gestores públicos, acadêmicos e representantes de setores culturais ocuparam a Sala Nelson Pereira dos Santos, em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, para ouvir e debater sobre “Territorialidades e Expressões Culturais das Periferias do Brasil”. A mesa foi formada por Jeft Dias, do Festival Psica de Belém (PA), José Carbonel, artista visual de Recife (PE), Fred Maciel, conhecido como Negro F, produtor cultural de Belo Horizonte (MG) e Isabela Sousa, membro do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
Em suas falas, os debatedores destacaram a população periférica como sujeito da produção de cultura, criatividade e inovação no país. Todos os integrantes da mesa também escolheram iniciar as intervenções destacando suas origens, suas relações familiares e a ancestralidade negra - que compartilham em comum.
Isabela Sousa, do Observatório de Favelas, filha de nordestinos que migraram para o Rio de Janeiro fugindo da seca do interior da Paraíba, relembrou o geógrafo Milton Santos que definia o território como o chão e a identidade para destacar a cultura da periferia como tão importante quanto onde se pisa.
“O papel das políticas deve ser se preocupar com as territorialidades, mas também fomentar os fazeres locais, igualmente reconhecer as pessoas que colocam isso em prática. Nesse sentido, quando somos reconhecidos e podemos produzir e distribuir conhecimento, arte e cultura, não tem como voltar atrás. Nada de falar sobre nós sem nós. A ampliação de narrativas é o que nos interessa”, destacou.
Já José Carbonel, designer e artista visual de Recife, ressaltou que a cultura periférica tem como característica o fortalecimento das comunidades de origem e que essa é uma forma de fazer política. “Queremos fazer política, não partidária, mas fazer política. Política é a forma de a gente se movimentar, puxar os outros no agir. Posso dizer que hoje sou referência para uma galera que não tinha a oportunidade de se imaginar pegando numa máquina fotográfica. Isso é política”, disse destacando que desde criança, como menino negro, era identificado como um futuro criminoso muito distante do artístico.
“Desde pequeno, criança preta, falavam que eu ia traficar, roubar, fazer tudo de ruim, mas a gente conseguiu, sou artista, vivo de arte, sustento minha família, dou aula para as minhas filhas. O graffiti me salvou, o hip hop me salvou. Estou na saga de fazer meu primeiro longa. O audiovisual não foi feito para a gente, a arte não foi feita para a gente. Temos que lutar muito para ocupar esses espaços”, afirmou.
Culturas e periferias
Em resposta às colocações de Carborel, o produtor cultural Fred Maciel, conhecido como Negro F, argumentou que para a política ser construída e voltada para a população periférica é preciso que ela própria se insira na sua formulação e nos espaços de tomada de decisão. “Não vamos esperar que isso vai chegar até nós. Temos que nos mobilizar por isso”, disse.
“Sou homem preto gerado por uma mulher preta que morreu por conta das mazelas da escravidão que se estendem até o dia de hoje. Sobrevivemos a vários transatlânticos, a vários genocídios, precisamos cada vez mais falar deles, referenciar. Ser da periferia, da favela, é uma luta constante, não conseguimos nem 1% da reparação que perseguimos. A cultura que está no território é a nossa libertação. Querem nos dar migalhas e manter os privilégios. Por isso, nossa arte é política, é estratégica, é viva”, completou.
Jeft Dias, dj e organizador do Festival Psica de Belém, ainda destacou a necessidade de pensar sobre as culturas periféricas no plural, em sua diversidade. “Quando começamos a organizar pequenos festivais de música, envolvendo artistas locais. Mas vimos que não crescia. Identificamos que as pessoas que assistiam vinham do mesmo lugar, mas com preferências diversas porque a periferia é muito diversa, a cultura é muito diversa. Quando falamos de periférico não é qualquer periférico, não pode ser generalizado”, destacou.
"Viver da arte"
Os participantes da mesa ainda destacaram a importância de discutir a distribuição dos fomentos destinados pelo governo federal para as iniciativas culturais periféricas de modo que seja privilegiada a continuidade e manutenção dos projetos e a não a descontinuidade.
“Temos que ganhar dinheiro, se tivermos uma política que nos reconhece em igual importância com outras iniciativas, conseguimos nos sustentar a partir do que fazemos. Já passamos do tempo do amador, do periférico, do diferente. A gente quer viver da arte. Isso é muito legítimo! Queremos ocupar os mesmos espaços de importância. Queremos fortalecer a nossa economia territorial. Só estaremos seguros quando transformarmos esses propósitos em lei, em garantia”, argumentou Isabela.
A fala antecipou a discussão da primeira mesa da tarde que teve como tema “Economia Criativa, Solidária e Fomentos para as Artes e Culturas nas Periferias”, com a participação de Fernando Ferrari de Souza, Cristina Assunção, do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e Sustentável, Elton Teixeira, Secretário de Assistência Social e Economia Solidária de Niterói, e Cleiton Fofão, do Movimento Cultural das Periferias.
Para Cleiton, a distribuição de recursos é muito desigual e essa é uma característica principal para repensar as políticas públicas. “É pouco recurso para muita gente, além disso, os fazeres vão tropeçando, não tem continuidade. Não queremos edital, queremos uma Bolsa Cultura, como existe o Bolsa Atleta, para garantir a permanência das ações. A arte é construção de direito. A cultura movimenta a economia local, com ela, é possível garantir que as pessoas trabalhem e morem nas suas localidades, não só usem a periferia como lugar de descanso, a proposta é inverter a ordem”, argumentou.
O segundo dia de programação do evento foi encerrado com a mesa “Diálogos Abertos: debatendo as propostas sobre a Cultura e Periferia na 4ª CNC” que teve por objetivo sintetizar as propostas previamente delineadas na conferência de março. Entre os participantes da mesa, estiveram o secretário-executivo do Ministério da Cultura, Márcio Tavares, Micaela da Costa, da Fundação de Arte de Niterói, Caroline Neves, do Ministério da Cultura, e Luci Souza, também do Ministério da Cultura.
Edição: Jaqueline Deister