Jovem, discreto e judeu. Esse era o perfil que o veículo catari Al Jazeera buscava para um trabalho de investigação jornalística nos Estados Unidos. A tarefa era se disfarçar de voluntário pró-Israel, se infiltrar em organizações do lobby israelense e expor a campanha de influência que ocorre entre os dois países.
A série documental The Lobby USA é o resultado dessa investigação, que mostra os esforços de Israel e dos seus lobistas para espionar, difamar e intimidar estadunidenses que apoiam os direitos humanos palestinos, especialmente o BDS – o movimento de boicote, desinvestimento e sanções.
Aos 23 anos, o britânico James Anthony Kleinfeld era a pessoa certa para a missão. Crescido no norte de Londres, em uma comunidade judaica, ele conhecia bem a cultura sionista e transitava por ela desde cedo.
Sionismo é um movimento político que, em seu surgimento, no final do século XIX, defendia a criação de um estado judeu em território palestino e que hoje dá sustentação ideológica, política e material ao Estado de Israel.
Quando criança, James estudou na maior escola judaica de Londres: a Jews Free School. "Todo ano, para o dia da independência israelense, a gente tinha que vestir azul e branco [as cores da bandeira de Israel]. Era um dia de festa, com dança. No meu último ano na escola eu fui vestido com cores palestinas e isso realmente irritou as pessoas", disse em entrevista ao Brasil de Fato DF.
Após o episódio, ele se mudou para outra escola, onde iniciou seu ativismo e se juntou ao grupo de judeus antissionistas "Jewdas". Na faculdade tornou-se co-presidente da Sociedade Palestina da Universidade de Oxford. O ativismo, misturado com o interesse em jornalismo estudantil, forneceu a ele uma útil bagagem para o trabalho de espionagem. "Eu nunca fui uma importante liderança, mas era envolvido de forma modesta."
Sem páginas ou registros fotográficos nas redes sociais, não havia rastros da existência de James no ambiente virtual quando ele topou o trabalho com a Al Jazeera – e segue sendo assim até hoje. Em suas atividades públicas, ele pede para que a audiência não tire fotos.
Foi assim na palestra "Gaza revelada: desafios e complexidades na cobertura jornalística internacional", realizada por ele no Congresso de Jornalismo Investigativo da Abraji, em 12 de julho e na atividade realizada no bar Al Janiah em que exibiu o documentário, ambas em São Paulo. De passagem pelo Brasil, ele também participou de atividades em Brasília (DF), na UnB e no Armazém do Campo, e no Recife (PE).
Lobby
Na história inventada para o disfarce, Tony Kleinfeld é um franco-britânico defensor de Israel. Em agosto de 2016, ele se materializou no mundo – ou melhor, em Washington DC, nos Estados Unidos. "Três meses antes de chegar, criei contas nas redes sociais e publiquei artigos em sites de notícias pró-Israel", conta James.
Dividido em quatro episódios, o documentário mostra imagens da câmera que o jornalista carregava escondida em seu corpo. Ele filmou conversas de bar, entrevistas de emprego e cursos de formação junto a organizações israelenses.
Nas imagens, o diretor executivo da Israel on Campus Coalition (ICC) desde 2013 Jacob Baime admite que sua organização usava "software de inteligência de mídia social de nível corporativo e empresarial" para reunir listas de eventos estudantis relacionados à Palestina, "dentro de 30 segundos ou menos" após serem postados.
Baime diz ainda que seu grupo se "orienta" com o Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel.
Já a então funcionária da embaixada israelense nos Estados Unidos Julia Reifkind é gravada descrevendo um dia típico no seu trabalho: "[é] principalmente coletar informações, reportar a Israel… para reportar ao Ministério das Relações Exteriores, ao Ministério de Assuntos Estratégicos".
Ela também admitiu na ocasião que usava perfis falsos no Facebook para se infiltrar nos círculos de ativistas solidários com a Palestina.
Questionado se sentiu medo ao se infiltrar nesse círculo, James Kleinfeld respondeu: "medo de quê? As pessoas com quem eu lidava não eram valentões, eram pessoas 'respeitáveis', de terno. O que me deixava com receio era receber o mesmo tipo de tratamento dado ao lado palestino: difamação, mentira, destruição de reputação. Essa era a ameaça. Mas isso não aconteceu porque eles querem que esse documentário se mantenha silencioso. É embaraçoso para eles."
Vazamento
O documentário da Al Jazeera foi concluído em outubro de 2017, mas nunca foi publicado pela emissora catari. De acordo com o veículo Electronic Intifada (EI), especializado na cobertura de Israel e Palestina, o material foi censurado pelo Qatar "após [o governo] ter sido alvo de intensa pressão do lobby de Israel para não transmitir o filme".
"Embora o diretor-geral da Al Jazeera tenha afirmado no mês passado que havia questões legais pendentes com o filme, as suas afirmações foram categoricamente contraditas pelos seus próprios jornalistas", afirmou a EI, em novembro de 2018, quando vazou o documentário.
Para James, o lançamento não foi feito no "timing" perfeito. "Nos meses antes do vazamento completo, já havia cenas na internet. Então quando saiu, foi bem 'anticlímax'. E foi lançado no meio das eleições dos EUA, em 2018. As notícias estavam em outro lugar, não tinha cobertura de mídia", comenta.
No Brasil, o material completo foi legendado em português e publicado pelo The Intercept em 17 de outubro de 2023, dez dias após o ataque do grupo político Hamas contra Israel, que desencadeou o novo episódio do massacre contra o povo palestino. Assista aqui.
De 7 de outubro pra cá, cerca de 40 mil pessoas foram mortas em Gaza, e mais de 90 mil ficaram feridas. Na Cisjordânia ocupada, 592 foram mortas, enquanto mais de 5 mil ficaram feridas. No lado israelense, foram 1.139 pessoas mortas e 8.730 feridas.
Brasil
James Kleinfeld afirma que não conhece muito da realidade brasileira, mas que nos encontros com ativistas pró-Palestina pelo país entendeu que o povo brasileiro se sente muito distante da situação que ocorre no Oriente Médio, "mesmo que aqui também tenha história de colonização, e uma grande comunidade negra e indígena".
Para ele, ainda que o genocídio em Gaza esteja acontecendo há milhares de quilômetros de distância, a situação afeta o Brasil.
"O que eu posso dizer é que Israel está aqui, vendendo armas para o exército, vendendo spywares para serviços de inteligência, e grupos lobistas de Israel também estão aqui", conclui.
Em abril de 2024, o Brasil de Fato noticiou que o Exército brasileiro decidiu comprar 36 viaturas blindadas de combate, conhecidas como obuseiros, da israelense Elbit Systems, uma das maiores fabricantes de armas e sistemas militares de Israel.
A relação comercial entre Brasil e Israel não é de agora. Em 18 de outubro de 2023, quando o mundo assistia há 11 dias o massacre contra o povo palestino, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 554/21, que fala sobre o acordo entre Brasil e Israel por "cooperação em segurança pública, prevenção e combate ao crime organizado". A proposta, enviada ao Senado, teve apenas um voto contrário, do Psol.
Organizações pró-Israel no Brasil organizam viagens ao país sionista com jornalistas, magistrados e autoridades brasileiras. Em janeiro deste ano, sete magistrados fizeram uma viagem à convite da Conib (Confederação Israelita do Brasil) e da StandWithUs Brasil. Entre as autoridades, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) André Mendonça, cinco juízes do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e um do TRF-RJ (Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro).
Já em 6 de junho, a Conib divulgou em sua página que, junto com a Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp) e StandWithUs Brasil, levou uma delegação de oito jornalistas brasileiros dos seguintes veículos: CBN, TV Cultura, Canal Meio, Metrópoles, RedeTV, Valor Econômico e SBT.
Por outro lado, figuras públicas que se posicionam contra as ações de Israel vêm sendo alvo de processos judiciais movido por organizações lobistas, como é o caso do jornalista Breno Altman e do ex-deputado petista José Genoino.
Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino