Há exatas cinco décadas, em um 10 de agosto que caiu num sábado como este de 2024, Frei Tito de Alencar Lima foi encontrado enforcado durante seu exílio na França. O suicídio em 1974 foi consequência da tortura que sofreu por agentes da ditadura civil-militar brasileira. O terror que o ativismo do jovem dominicano provocava no regime, avalia Frei Xavier Plassat, é porque ele “representava a aliança entre a fé e a revolução”.
A fala de Frei Xavier, francês residente no Brasil há décadas e a última pessoa a ver Tito antes de sua morte, aconteceu durante o evento "Frei Tito Vive, 50 anos do martírio (1974-2024)", realizado neste sábado (10) na Escola Nacional Paulo Freire, no bairro do Ipiranga em São Paulo.
O dia de atividades, organizado por 16 entidades e mandatos parlamentares, lotou o auditório apesar do frio e da chuva com que amanheceu a capital paulista neste sábado. Entre os que compõem o coletivo em memória a Frei Tito, está o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Central de Movimentos Populares (CMP), o Levante Popular da Juventude, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Unidade Popular (UP) e a Frente Brasil Popular.
Trajetória de luta
Frei Tito começou seu ativismo na Juventude Estudantil Católica (JEC) no início dos anos 1960, atuando na Favela do Dendê em Fortaleza, sua cidade natal. Pouco depois, se mudou para Recife, já como dirigente da regional nordeste da JEC. Preso em 1969 junto com outros religiosos acusados de apoiar a resistência à ditadura civil-militar, sofreu sangrentas torturas comandadas pelo delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Sérgio Paranhos Fleury.
Foi no exílio na França, na comunidade dominicana de L'Arbresle, que se tornou amigo de Frei Xavier. Muito por influência desta relação, o francês se mudou depois para o Brasil, onde atua na Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Até a hora de sua morte, durante todos os anos do exílio, não se calava a voz de Fleury em Tito”, conta dominicano francês. A convivência entre os dois religiosos durou 15 meses. Tito com 27 anos, Xavier com 23.
“Sob a fúria de seus algozes, Tito descobriu algo que o separou radicalmente de seus companheiros. Uma imagem monstruosa do homem. Esse torturador que o perseguia, apesar de ser carne da sua carne, mostrava uma face louca da humanidade, movida por tamanho ódio”, avalia Plassat.
“Tito, a seu modo, diferente dos demais refugiados, deu testemunho contra a opressão. O último esforço das forças reacionárias consistia justamente em fazê-lo parecer louco”, conta Xavier. “Ao afirmar a autenticidade deste testemunho, os amigos de Tito também resistiram à opressão”, diz.
Durante o tempo em que estiveram próximos, Xavier descreve ter presenciado “um ser atormentado”: “Oscilando, sem trégua, entre resistência e desistência”.
O sociólogo Ivo Lesbaupin, que foi dominicano entre 1965 e 1977 e compartilhou a cela da prisão com Tito, também compareceu ao evento deste sábado, assim como Frei Betto e Lúcia Alencar, da Coalizão Nacional Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia e sobrinha de Tito.
Entre outros presentes, estavam a pesquisadora do Instituto Tricontinental Ana Penido, o ouvidor das Polícias de São Paulo, Cláudio da Silva e políticos como Vivian Mendes (UP), Toninho Vespoli (Psol) e Adriano Diogo (PT).
Lesbaupin recordou a resposta de Tito a uma jornalista, quando já se exilava na França, sobre os motivos que o levaram a tentar o suicídio em fevereiro de 1970. "Apagar a falácia de que os dominicanos teriam traído a revolução, tornar pública a existência da tortura e denunciá-la, incluindo os bispos que a escondiam", relata Lesbaupin, se baseando na entrevista.
Ilustrando o que considera a inabalável posição de Frei Tito em defesa da justiça social, Ivo menciona uma carta escrita por ele em 1971. Nela, Tito afirma que “gostaria de não repetir o espírito pusilânime de que foram vítimas alguns de minha geração que também tinham os mesmos ideais, mas muito cedo sucumbiram. Os que combateram a Igreja comprometida com o sistema estão hoje comprometidos com o mesmo sistema que tanto atacaram”.
“Precisamos falar, falar de novo - sem fim - da tortura. Para resgatar a língua em sua plenitude. Essa tarefa nos reúne”, defendeu Frei Xavier, ao definir que, para ele, Frei Tito é “estandarte da resistência contra o regime militar, as ditaduras, a tortura. Guardamos dele a imagem de quem não se dobrou aos algozes”.
Edição: Raquel Setz