Mulheres em privação de liberdade têm penas que não consideram as condições particulares de cuidado
Letícia Gil*, Letícia Sales** e Milena Novais***
O próximo domingo (11) é a data reservada no calendário brasileiro para lembrar das pessoas privadas de liberdade. Hoje, o Brasil encontra-se em terceiro lugar no ranking de países que mais encarceram no mundo. Até o ano de 2023, foram registradas mais de 849 mil pessoas presas. Esse número é resultado de um aumento de 275% da população carcerária que houve nos últimos 20 anos.
No mesmo período, se fizermos um recorte para a população encarcerada feminina, partimos de um número de 9.900 mulheres presas em 2003, considerando apenas as prisões em cela física, para um número de 52.476 mulheres presas em cela física e prisão domiciliar em 2023, apontando um aumento de 530% na taxa de aprisionamento feminino. Tendo em vista que mais de 80% das mulheres presas são mães, temos aqui que o encarceramento feminino em massa é um problema que afeta as maternidades de forma direta.
Nós, pesquisadoras da Rede Transnacional de Pesquisas sobre Maternidades Destituídas, Violadas e Violentadas (REMA) que trabalhamos com a temática das maternidades no e do cárcere, queremos partir deste cenário para esboçar neste artigo elementos que circulam ao redor do aprisionamento feminino.
Buscaremos argumentar que o sistema penal é inimigo da maternidade em todas as suas formas e possibilidades, trazendo perspectivas sobre o maternar em três situações típicas de encarceramento: o gestar, parir e amamentar dentro da prisão; a seletividade do poder judiciário para conceder o direito à prisão domiciliar para mulheres que são mães; e como a prisão domiciliar é igualmente limitadora e acaba impedindo, de outras formas, o exercício pleno das maternidades. Queremos mostrar que o sistema penal é frequentemente incoerente nas suas tentativas de garantir direitos básicos e fundamentais para as mulheres presas.
A grande maioria das mulheres encarceradas no Brasil é mãe.
E essa relação entre ser mulher e ser mãe não é automática, mas no cárcere ela é uma realidade insistente e frequentemente apagada. Mulheres encarceradas têm filhos pequenos e adultos, são avós responsáveis pelo cuidado dos seus netos, gestam, parem e amamentam durante seus períodos de encarceramento. Mas qual é o espaço que essas maternidades têm dentro do sistema prisional?
Desde o aspecto legal, existem algumas instâncias de regulação dessas maternidades encarceradas, como a Constituição de 1988, o Código Penal e a Lei de Execução Penal, além de políticas públicas que regulam questões como o acesso à saúde e a alternativas penais que viabilizam o cuidado dos filhos e filhas.
Por exemplo, o artigo 318 do Código Penal indica que mulheres gestantes e mães de filhos menores de 12 anos devem responder em liberdade ou ter a prisão preventiva substituída pela domiciliar, a menos que sejam acusadas de cometer "crime com violência ou grave ameaça" ou de ter "cometido o crime contra seu filho ou dependente".
No entanto, não são poucas as mulheres que não conseguem acesso a esse direito, e vivem suas gestações, os partos e puerpérios dentro dos estabelecimentos prisionais, aguardando julgamento ou já cumprindo a pena. Para essas mulheres, a Constituição e a Lei de Execução Penal garantem, a princípio, tanto o acesso à assistência à saúde em todo o período gravídico-puerperal quanto uma estrutura de berçário para a convivência das mães com os bebês. Mas como essa assistência e essa estrutura são oferecidas?
Em primeiro lugar, por mais que o acesso à saúde seja um direito, nem sempre ele é facilitado.
As dificuldades podem se colocar por questões estruturais, como o sucateamento e precarização do SUS. Isto porque é o SUS que fornece a assistência às pessoas privadas de liberdade através da PNAISP (Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade), uma política que, desde 2014, preconiza que as unidades penitenciárias sejam equipadas com dependências de atendimento completas. No entanto, essa política nem sempre é executada de forma adequada, o que faz com que as mulheres precisem ser transferidas a unidades de saúde dos territórios, enfrentando maus tratos durante as transferências e uma grande estigmatização por parte dos profissionais de saúde.
Os entraves podem decorrer também de negligências de profissionais que atuam tanto na assistência quanto como funcionários dos presídios. Essa negligência pode estar na demora em atender e encaminhar uma queixa, em uma avaliação incompleta e diagnóstico equivocado.
E, no caso de mulheres gestantes, isso frequentemente resulta em um início tardio de pré-natal e um acompanhamento ineficiente a eventuais complicações da gestação. Já na assistência ao parto, especificamente, é só a partir de 2017 que temos uma lei que proíbe o uso de algemas em mulheres em trabalho de parto, mas mesmo essa lei efetivada não garante que elas não sejam algemadas durante o translado, sejam deixadas sozinhas ou constrangidas por agentes penitenciários e tenham seu direito ao acompanhante negado com justificativas de priorização da segurança.
Uma vez que o bebê nasce, um novo problema se apresenta, pois a forma como o sistema penal regula esse momento de início da vida e de uma nova maternidade provoca rupturas que inviabilizam que as mães possam, de fato, desempenhar o seu papel fundamental de cuidado. Isso ocorre, em grande medida, porque, às mulheres encarceradas, só é permitido ficar com os seus bebês até que eles completem seis meses de idade, sempre alegando que não existe uma estrutura adequada para a permanência destes. Essas condições afetam diretamente a amamentação e o vínculo entre mãe e bebê, tão importantes para o bom desenvolvimento das crianças e a saúde física e mental das próprias mães. Isso acaba instaurando um ciclo de fragilizações estruturais que têm impactos muito duradouros ao longo das vidas das crianças, suas mães e suas famílias.
Diante deste contexto de produção de sofrimento, mulheres em privação de liberdade, quando alvos da justiça criminal, se deparam com penas ou medidas que não consideram as condições particulares que vivenciam tanto como cuidadoras principais, quanto como responsáveis pelo sustento da família. Nesses casos, é previsto que as autoridades judiciárias apliquem uma medida cautelar diversa da prisão, seja ela preventiva ou com sentença definida. Ou seja, uma medida que garanta que a mulher não fique presa em estrutura prisional, como a liberdade provisória e/ou a prisão domiciliar, também conhecida como PAD (Prisão Albergue Domiciliar).
A PAD é uma medida judicial que coloca a pessoa privada de liberdade, em regime aberto ou semiaberto, em sua própria residência ou em abrigos públicos, a depender da vulnerabilidade de cada caso. As pessoas que cumprem suas penas ou estão aguardando pelo julgamento em PAD podem estar sob monitoramento eletrônico, que é feito pelo uso das chamadas “tornozeleiras” ou “pulseirinhas”, mas essa não é uma obrigatoriedade. Em alguns casos em que é realizado o monitoramento eletrônico, pode ser estipulado um perímetro que limita a mobilidade da pessoa presa à sua residência.
Para ter direito à prisão domiciliar, a mulher detida precisa cumprir com os requisitos exigidos no artigo 318 que já mencionamos, que são não ter cometido crime mediante violência ou grave ameaça e não ter cometido crimes contra seus filhos ou descendentes. Para as mulheres com sentença definida, além dos dois primeiros requisitos, elas também precisam ser ré primárias, ter bom comportamento comprovado pela unidade e ter cumprido 1/8 de pena.
No entanto, a pesquisa “Implementação da prisão domiciliar para mulheres no Brasil à luz da Lei de Acesso à Informação”, realizada em 2021 pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), revela que 30% das mulheres que deveriam ter a prisão preventiva substituída pela domiciliar tiveram esse direito negado, e 43% daquelas em prisão definitiva, também. Levando em consideração esses números, afinal, o que impede que o direito à PAD seja aplicado?
Nós identificamos, através de nossas pesquisas, que as moralidades dos atores judiciais influenciam as concessões das medidas decisórias quanto ao direito à prisão domiciliar. As interpretações e decisões são baseadas nos valores subjetivos das pessoas que compõem as instâncias de poder judicial, e são pautadas, em sua grande maioria, na punição pelo gênero e, em boa medida, pela raça e pelo território. Por punição pelo gênero nos referimos ao fato de que essas mulheres são descreditadas por romperem com os ideais de feminilidade hegemônicos ao praticar condutas que tradicionalmente são interpretadas como não pertencentes ao exercício da "maternidade ideal". Já por punição pela raça e território, nos referimos à sistemática criminalização de populações pretas e pardas e de territórios periféricos como herança do processo histórico de escravização em nosso país.
No fim das contas, o direito à prisão domiciliar é dependente de uma estrutura judicial que mais parece afastar direitos do que garanti-los.
Ou, ainda mais, que trata direitos como se privilégios fossem, tornando a regra uma exceção para aquelas que menos "se desviem" dos ideais de performance de gênero e raça. Enquanto um direito, a PAD garante que mulheres não fiquem presas provisoriamente ou indevidamente na prisão; enquanto uma alternativa, as mulheres enfrentam outras problemáticas apresentadas ao estarem presas em suas próprias casas.
De acordo com os dados do SISDEPEN (Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional) referentes a dezembro de 2023, existem 19.611 mulheres em prisão domiciliar no Brasil, destas, 55,3% estão sob monitoramento eletrônico. Apesar da prisão domiciliar representar um horizonte para mães aprisionadas, este tipo de prisão repercute de forma bastante negativa em suas vidas.
Para aquelas que não estão sob o monitoramento eletrônico, existe uma exigência de comparecer mensalmente a fóruns para comprovar sua responsabilidade em juízo com esse tipo de prisão. A ameaça, caso não compareçam, é de receber multas, agravamento de pena e até mesmo retornar ao regime fechado. Essas restrições são, muitas vezes, incompatíveis com a natureza das demandas da maternidade.
Já para aquelas que fazem o uso da tornozeleira, além do comparecimento obrigatório ao fórum, podemos levantar ao menos três problemáticas resultantes deste monitoramento ostensivo, principalmente para as mulheres que estão proibidas de circular livremente fora do perímetro demarcado de sua residência: a impossibilidade de exercer um trabalho remunerado fora de casa; de desempenhar funções cotidianas como, por exemplo, os cuidados com os filhos; e o estigma causado pelo uso da tornozeleira eletrônica quando estão em locais públicos.
Em relação ao desenvolvimento de atividades remuneradas, muitas delas vivenciam uma situação de insegurança financeira e geralmente dependem de sua própria força de trabalho para manter a si e à sua família, o que é muito prejudicado ao serem monitoradas de forma ostensiva e, em alguns casos, proibidas de sair. Do mesmo modo, os cuidados com os filhos exigem que saiam de casa para desempenhar funções imprescindíveis, como levá-los para a escola, para consultas em unidades de saúde, ou programas de lazer.
Ora, se boa parte das decisões judiciais para concessão de prisão domiciliar leva em consideração a insalubridade dos ambientes prisionais para que possam vivenciar a gestação ou exercer a maternidade de forma digna, por que essas mulheres continuam sob um controle repressivo e são impedidas de desenvolver atividades que garantem a própria manutenção da gestação e da maternidade?
Além das dificuldades descritas acima, as tornozeleiras geram constrangimento e as deixam mais vulneráveis às violências decorrentes da estigmatização. O uso da tornozeleira eletrônica simboliza a subjugação de corpos tidos como perigosos e indesejáveis. É uma marca que define a forma como serão tratadas nos espaços que circulam. As unidades de saúde, por exemplo, são espaços comumente frequentados por mulheres em prisão domiciliar, especialmente gestantes e puérperas que buscam assistência pré-natal e consultas pediátricas.
Ao terem sua tornozeleira percebida, estas mulheres deixam de ser pacientes e passam a ser consideradas criminosas com potencial periculosidade, indesejadas naquele espaço. O local que buscam para receber cuidado se transforma em um espaço de julgamento e reprodução de violências, que se configura como mais um braço da máquina carcerária do Estado que vigia e pune.
Mesmo que, para boa parte das mulheres, estar em um ambiente domiciliar seja melhor do que estar na prisão, o poder judiciário não deve se eximir da responsabilidade de pensar nas repercussões que se estabelecem posteriormente à concessão da PAD. Pois, quando é concedida, outros entraves se tecem nessa rede de sanções que se atualizam extra muros. Apesar de estarem em prisão domiciliar, a máquina carcerária punitivista não se encerra fora dos presídios. Suas casas tornam-se prisões.
Por mais que tenha havido, ao longo da história do nosso sistema penal, mudanças na legislação e nas políticas que visavam beneficiar as maternidades privadas de liberdade, o que observamos é que, apesar dos esforços, essas atualizações não conseguem, de fato, garantir condições para um exercício da maternidade integral. Todos os entraves e dificuldades colocadas a esse exercício não deixam de ser violências que se manifestam tanto na execução das legislações e políticas prisionais, quanto nas práticas da assistência à saúde.
Em nenhum dos cenários que apresentamos a mulher que perde a sua liberdade para o Estado consegue exercer a sua maternidade de forma plena e digna. A vida e os direitos dessa mulher e da sua família são invariavelmente, em maior ou menor medida, violados em nome de uma lógica punitivista que se traveste de justiça e segurança pública para se legitimar, mas que só vulnerabiliza as populações que o cárcere atravessa.
*Letícia Gil é mestranda em antropologia pela Unicamp e pesquisadora associada da REMA e do projeto de pesquisa Cosmopolíticas do Cuidado no Fim do Mundo (FSP/USP);
**Letícia Sales é cientista social (DCS/PPGCS/UFRRJ) e doutora em Antropologia (PPGA/UFF). Pesquisadora associada da REMA e integrante do Grupo de Etnografias e Pesquisa em Antropologia do Direito e das Moralidades (GEPADIM/UFF).
***Milena Novais é obstetriz e mestranda em Saúde Pública pela USP, pesquisadora associada da REMA e do projeto de pesquisa Cosmopolíticas do Cuidado no Fim do Mundo (FSP/USP), estuda maternidades afetadas pelo cárcere.
****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Mariana Pitasse