Coluna

Como a imprensa conservadora latino-americana se articulou e cobriu a eleição na Venezuela

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Segundo o CNE, 21,4 milhões de venezuelanos estão aptos a votar neste domingo (28) - Federico PARRA / AFP
Enquanto as forças do capital avançam na mídia, os veículos populares engatinham

Neste domingo (28/7), enquanto os venezuelanos iam às urnas para reeleger Nicolás Maduro, outro fato de vulto histórico aconteceu, embora menos notado: pelo menos 50 veículos jornalísticos da América Latina e da Espanha montaram um pool de cobertura para acompanhar as eleições que opuseram o presidente chavista a Edmundo González. Sob o nome “Operativo Venezuela Vota”, o consórcio de imprensa ibero-americano transmitiu 36 horas contínuas de programação ao vivo pelo YouTube, abrindo o streaming para que qualquer outro canal pudesse retransmitir.

A iniciativa partiu do website de notícias El Pitazo, do jornalista venezuelano César Batiz, há anos incensado pela grande imprensa brasileira. Em 2016, esteve no Brasil como convidado do “Festival Piauí GloboNews de jornalismo” e desde então colabora com a revista mensal. O site, que Batiz fundou em 2014 com o cineasta Javier Melero e o fotógrafo Gustavo Alemán, é financiado pela Google News Initiative desde 2022.

Na divulgação do pool, feita de última hora, El Pitazo garantiu que haveria “70 jornalistas independentes” e 20 comunicadores cidadãos em 96 municípios da Venezuela e mais “18 correspondentes em diferentes cidades do mundo”. De fato, ao longo do domingo, a transmissão teve links ao vivo de repórteres em Madri, Buenos Aires, Lima, Cidade do Panamá e Miami, todas cidades com expressivas comunidades de venezuelanos emigrados.

A apresentação foi revezada pelo próprio Batiz com colegas como as jornalistas Lina Vanorio (da Unión Radio, emissora porta-voz da direita), Ronna Rísquez (ex-El Nacional e atual Runrunes) e Mari Montes (especializada em beisebol, o esporte favorito do país) e o humorista Melanio Escobar, uma espécie de “Danilo Gentilli venezuelano”. Todos trabalharam sob a direção de María Fernanda Flores, ex-vice-presidente da Globovisión, uma das emissoras mais ativas na articulação do golpe de 2002 na Venezuela.

Entrando no ar na noite de sábado e prometendo continuar até o fim da apuração, o Venezuela Vota realmente fez jornalismo e exibiu as coletivas do PSUV e da campanha de Maduro, mas deu tempo de tela desproporcional à candidatura de Edmundo González e sua mentora, a extremista de direita María Corina Machado. Embora tivesse equipes de reportagem em Caracas, o pool não transmitiu a marcha e concentração de chavistas no entorno do Palácio Miraflores, sede da presidência. À medida que o dia avançava, os apresentadores tinham mais dificuldade em conter o tom celebratório pelo que parecia ser uma vitória da oposição, que depois tornou-se apreensão e indignação com a demora da divulgação dos resultados oficiais. 

A torcida ficou evidente em momentos como quando Escobar tentou ridicularizar Maduro por mostrar o relógio que ganhou “de um jogador de futebol estrangeiro, que nem venezuelano é”, como se fosse um qualquer, e não Diego Armando Maradona. A normalização do fascismo foi mantida em toda a programação, evitando associar González e Machado aos seus aliados Milei, Bolsonaro e Trump, um tanto constrangedores.

Participantes

O streaming do Venezuela Vota foi retransmitido por vários canais e websites da América Latina, como o Infobae (um dos maiores portais da Argentina), Noticias Caracol, El Heraldo e La Silla Vacía (três dos principais veículos da Colômbia), adn40 (México) e Voces (Uruguai), além dos jornais La Prensa (Honduras), La Prensa (Nicarágua), La Estrella de Panamá e El Sol de México, todos porta-vozes da direita tradicional em seus países. Do Brasil, o único participante foi o site Correio Sabiá, fundado em Brasília em 2018 por Maurício Ferro, outro alumnus da Google e orgulhosamente treinado pelo Departamento de Estado norte-americano.

Dentro da própria Venezuela, a adesão foi geral por parte de veículos antichavistas, como o jornal Tal Cual (do falecido Teodoro Petkoff, um dos mais estridentes oposicionistas a Chávez e Maduro), os sites Efecto Cocuyo, Runrunes, Crónica Uno, EsPaja, El Guachimán Electoral, Sin Mordaza, Hispano Post e o Instituto Prensa y Sociedad. Ao mesmo tempo, o pool de cobertura era alimentado por imagens do VPItv, um canal fundado por venezuelanos em Miami, assim como a empresa Miravisión, da Espanha, especializada em SEO e “marketing digital” - eufemismo para propaganda política e guerra psicológica nas redes.

À meia-noite e quinze de segunda-feira (pelo horário de Brasília), o Venezuela Vota entrou ao vivo do comitê-sede de campanha da coligação Con Vzla, de González e Machado. Quinze minutos depois, transmitiu a íntegra do discurso de Omar Barboza, secretário-executivo da coligação de extrema direita, em que pediu intervenção dos militares e da “comunidade internacional” para impor Edmundo González como presidente eleito, antes de sair qualquer resultado da apuração.

Instigado, o convidado Luís Carlos Díaz, ex-repórter do jornal golpista El Nacional e que se apresenta como fã do anime One Piece, afirmou que, se os governistas tivessem certeza da vitória, já teriam publicado boletins de urna até “em braille e em chinês”. Naquele momento, a oposição afirmava ter acesso a apenas 30% das atas de seções eleitorais.

À 1h06 de segunda-feira (horário de Brasília), o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela anunciou o primeiro boletim oficial de apuração, com 80% de seções apuradas, atribuindo 51,2% a Maduro e 44,2% a González, em “tendência irreversível”. O anúncio, que justificou o atraso por um problema no sistema de transmissão de dados, foi transmitido pelo Venezuela Vota com imagens da VPItv. A frustração de Batiz, Escobar e seus colegas foi visível.

Histórico

A articulação internacional da imprensa conservadora latino-americana não é novidade. Existe pelo menos desde 1969, quando jornais da região fundaram a Latin, um consórcio que funcionaria como uma agência de notícias sob os auspícios da Reuters. A iniciativa reuniu 13 diários conservadores, como El Mercurio (Chile), El Tiempo (Colômbia), El Comercio (Peru), o próprio El Nacional venezuelano e, daqui, o Estadão, O Globo e o então importante Jornal do Brasil. Durou até 1981, quando naufragou. Dez anos depois, alguns desses mesmos jornais fundaram o GDA (Grupo de Diarios América), existente até hoje para captar publicidade em dólar (tanto que tem sede em Miami) e, secundariamente, coordenar pautas conjuntas, especialmente de linha pró-mercado e pró-EUA. Em moldes semelhantes, existe o PAL (Periódicos Asociados Latinoamericanos), fundado em 2008, também em Miami, mas sem fazer intercâmbio jornalístico.

Mais recentemente, poucos jornais do Mercosul têm investido em tradução de matérias para atrair os respectivos públicos vizinhos, como faz a Folha de S.Paulo com suas páginas online em inglês e espanhol, assim como a versão digital do Clarín em português.

Enquanto as forças do capital avançam na cooperação de mídia, os veículos populares, alternativos e públicos ainda engatinham. De fato, houve iniciativas históricas, mas que alcançaram pouco sucesso. Foi esse o caso da ASIN (Acción de Sistemas Informativos Nacionales), consórcio de agências estatais fundada ainda na era das ditaduras latino-americanas,  em 1979, com apoio da Unesco; a ALASEI (Agencia Latinoamericana de Servicios Especiales de Información), cooperativa organizada pela agência terceiro-mundista IPS de 1984 à década de 2000; e a ULAN (Unión Latinoamericana de Agencias de Noticias), articulada no auge da guinada à esquerda, em 2011, mas boicotada após a eleição de Mauricio Macri na Argentina, em 2015.

O mais longevo e mais exitoso veículo de comunicação derivado de cooperação regional, no entanto, é ainda a Telesur, que no ano que vem completará 20 anos. Sediada em Caracas e fundada por uma parceria entre Venezuela, Cuba, Nicarágua, Bolívia e Argentina, a emissora opera dois canais (em espanhol e em inglês). Convidado, o Brasil decidiu não participar, num dos maiores equívocos políticos do primeiro governo Lula.

Fora estas, sobrevive a ALAI (Agencia Latinoamericana de Información), sediada em Quito e especializada em artigos, análises e reportagens em espanhol e português, a colaboração da agência cubana Prensa Latina com o jornal brasileiro Inverta, e a edição em inglês do próprio Brasil de Fato. São iniciativas de resistência heroica no jornalismo latino-americano, com certeza, mas precisam de coordenação estratégica em nível internacional para, com inteligência e apuração própria, fazer frente à muito bem financiada cooperação da grande mídia da região. Caso contrário, serão fadadas ao ofuscamento por pools como o Venezuela Vota, viabilizado por dólares de Miami, da Google e do governo dos EUA.

*Pedro Aguiar é jornalista, professor de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), doutor em Comunicação pela UERJ e pesquisador de agências de notícias.

Edição: Lucas Estanislau