Aumentar a nossa cooperação com a Venezuela e com a Guiana interessa muito ao Brasil
Quando o governo Bolsonaro rompeu com a Venezuela em 2019, o Brasil perdeu. Em termos econômicos, perdeu um comércio que trazia ao país supérávit de bilhões de reais e beneficios para a população da região Norte. Roraima, por exemplo, sextuplicou o custo quando deixou de comprar a energia limpa da capital Caracas pelo gás vindo dos EUA, sem contar os ônus ambientais.
Mas perdemos, principalmente, em termos de influência. O espaço deixado pelo afastamento brasileiro foi ocupado por atores internacionais mais distantes como Rússia, Irã e China. Enquanto isso, o Brasil passou a depender de terceiros para entender o que acontecia no país vizinho. Isso, claro, sem levar em conta que os cidadãos brasileiros ficaram desasistidos em território venezuelano.
Esses foram pontos levantados por Pedro Silva Barros, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e convidado desta semana do BdF Entrevista. Barros foi diretor de assuntos econômicos da União de Nações Sul Americanas (Unasul) entre 2015 e 2018, tendo antes sido titular da missão do Ipea em Caracas entre 2010 e 2014.
A entrevista, realizada no final de manhã da segunda-feira (29), horas após o anúncio da reeleição de Nicolás Maduro, focou mais nos aspectos econômicos envolvendo os países. Qual o impacto das sanções impostas pelos Estados Unidos e como, mesmo com possibilidades restringidas, o governo venezuelano conseguiu domar a crise que se seguiu. Barros também abordou as possibilidades futuras.
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Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: O que a Venezuela pode esperar em termos econômicos nesse momento pós eleitoral?
Pedro Silva Barros: A Venezuela vem já de alguns anos de uma situação econômica bastante difícil de diminuição da produção do seu principal produto, que é o petróleo, e sancionada pelo principal país do mundo, que é os Estados Unidos, com um bloqueio comercial, econômico e financeiro bastante importante. Então, a Venezuela já vinha com uma crise econômica e política. Essa crise também é social, migratória e ela teve o seu pior momento em 2019. Vocês devem lembrar quando o [Juan] Guaidó se autoproclamou presidente, as sanções foram bastante apertadas. A Venezuela foi asfixiada pelos Estados Unidos, União Europeia e vários países, inclusive o Brasil, com as ações do Grupo de Lima [grupo formado por chanceleres de países das Américas formado em 2017, na capital do Peru].
Em 2021 para 2022, a situação parou de piorar, mas o nível econômico muito baixo, comparado a uma situação do período da década de 2000, por exemplo, que foi um período de bonança para a Venezuela, que coincidiu com o governo Hugo Chávez. E, nos últimos meses, último ano e pouco, a situação econômica melhorou.
A inflação está muito mais baixa do que já foi e a Venezuela voltou a crescer. Isso coincidiu, principalmente a partir do fim do ano passado, em outubro, com o acordo de Barbados, que amenizou parte das sanções e permitiu acertos mínimos entre governo e oposição, que foram muito importantes, viabilizaram, inclusive, a realização desta eleição. Com a oposição inteira apoiando, havia vários candidatos, com um candidato principal da oposição, diferente da eleição de 2018, quando boa parte da oposição havia pregado a abstenção.
Agora não. A oposição foi para as urnas. Só que é um equilíbrio muito delicado e isso se expressa no impasse visto hoje. Na segunda-feira, logo depois da eleição, o Conselho Nacional Eleitoral apresentou os resultados e o governo Maduro comemora a reeleição.
Mas a oposição não reconhece, os países do mundo não reconhecem, outros aguardam as atas, enfim, detalhes procedimentais da eleição, e alguns poucos já reconheceram o resultado. E agora? Qual é o cenário que a gente tem e qual a importância do Brasil nisso? A gente tem um longo processo até a posse do novo presidente, isso tem efeitos importantes na economia venezuelana.
Se o derrotado reconhece o vencedor e se busca aliviar as sanções - isso não é simples, porque não é apenas um processo eleitoral. Não é questão apenas de contabilidade. Há todo uma situação geopolítica delicada em volta disso. A Venezuela, como vários países ricos em recursos naturais, são pressionados. E, no caso concreto da Venezuela, ela é muito mais pressionada pela aplicação das sanções e as restrições financeiras.
Isso dificulta muito a economia venezuelana. Uma recuperação econômica consistente exige uma diminuição dessa pressão externa, o que não é simples, porque ela não depende só da Venezuela, nem de um único outro ator externo.
O principal país que impõe sanções, os Estados Unidos, que também está no processo eleitoral e que limita muito a margem para negociação, porque a aplicação ou não das sanções tem variáveis que são externas à Venezuela, como o próprio processo eleitoral americano.
Isso dificulta e, ao mesmo tempo, a gente tem uma situação nos últimos anos que os países da região, a maior parte deles, como o Brasil, a Colômbia, o Peru e o Chile e a Argentina, em outra conjuntura, de seis anos atrás, se afastaram da Venezuela querendo derrubar o governo venezuelano.
Então, para derrubar o Maduro, criou-se o grupo de Lima, que tentou asfixiar a Venezuela e prejudicou principalmente os venezuelanos. Só que, depois disso, o peso político e regional para o apoio à saída da crise da Venezuela diminuiu muito e entraram atores extra regionais. Alguns já tinham peso, como a China e a Rússia, e outros tinham pouquíssima participação na Venezuela e passaram a ter, como é o caso do Irã e da Turquia, por exemplo.
A gente não está discutindo aqui uma eleição, ou uma ata, ou a verificação de urna. O processo mais amplo exige também muita paciência, de um lado, e uma leitura que não seja apenas do processo de um dia, de uma votação. É um tema mais estrutural. Então é uma complexidade. E, talvez, na Venezuela, mais do que em outros países, como o nosso próprio Brasil, a situação econômica depende muito do embaraço da situação política.
Mas, pensando nas sanções, que são o principal motivo da asfixia econômica da Venezuela, a economia deu sinal de melhora no último ano. Um certo equilíbrio com a contenção da inflação e o aumento do poder aquisitivo da população.
A Venezuela dá sinais de que aprendeu a lidar com essa realidade, como uma doença crônica que pode asfixiar sua economia. Certamente é um aprendizado. As sanções foram desenhadas em 2014, quando o Congresso americano aprovou as principais medidas contra empresas e gestores da Venezuela.
Mas, em 2015, 2016, como a prioridade do final do governo Obama era a abertura em Cuba, elas não foram aplicadas. Logo depois da eleição do governo Trump, no fim de 2016, ou seja, no início de 2017, elas foram aplicadas com muita força e se acentuaram em 2019.
Há certamente um aprendizado, mas parte da recuperação se deu pela pequena flexibilização. O que houve em novembro do ano passado é uma recuperação de longo prazo.
O país continua sem acesso aos recursos que tem no exterior, aos serviços de várias empresas que operam nos Estados Unidos que, pelas sanções, não podem operar na Venezuela. Serviços como manutenção de refinaria, de navios, de transporte, de petróleo.
E isso dificulta muito a situação da Venezuela. Porque, como foi desenhado por décadas e décadas, a produção petroleira na Venezuela visava distribuição para os principais mercados do mundo. E o principal mercado do petróleo venezuelano era os Estados Unidos, toda uma estrutura produtiva e que gerava um grau de interdependência com os Estados Unidos muito grande.
A partir do momento que isso é rompido e o custo é muito alto, e a Venezuela aprendeu, e, em parte, tem buscado alternativas. Só que são alternativas caras do ponto de vista econômico e logístico. Então o petróleo tem que ser enviado a distâncias muito maiores e o petróleo tem que fazer transbordo [transferência de um navio a outro] em alto mar, o que gera custos econômicos e, eventualmente, ambientais também.
Há ainda países e empresas que comercializam com a Venezuela e como o risco é muito maior, eles oferecem um valor menor também. Então é toda uma engenhoca que prejudica a Venezuela, prejudica muito. O país crescer 5% nesse ano é algo sensacional. Mas considerando também que isso parte de um ponto muito abaixo do que era a economia da Venezuela em 2012, 2011, 2010, antes do desenho das sanções em 2014.
A Venezuela vive uma crise há anos, mas é possível apontar o perído em que o Juan Guaidó tentou concretizar seu Golpe de Estado como o mais prejudicial para a economia?
Sem dúvida. Basta ver os dados sobre migração para outros países e para o Brasil. Um movimento migratório já existia a partir de 2017, mas há uma explosão em 19. Diminui um pouco em 20, com uma pandemia, segue em 2022 e diminui em 2023 e, agora, em 2024.
O pior momento da Venezuela foi quando, para impor um novo governo, vários países do mundo, entre eles o Brasil, tentaram asfixiar a Venezuela. Qual é o resultado concreto disso? O sofrimento muito grande para a população venezuelana e não necessariamente para o governo venezuelano, porque essa é uma situação que acontece em vários países sancionados no mundo.
O objetivo da sanção é derrubar o governo. Prejudica-se muito a população, especialmente os mais pobres, mas, em termos relativos, o governo fica mais forte, é uma situação bem complexa. Parte das exportações do país deixam de ir para os canais tradicionais, porque as empresas estão sancionadas.
Então parte do ouro, por exemplo, e do petróleo da Venezuela não saem pelos canais oficiais e verificáveis, mas por canais alternativos, e a entrada desse recurso não entra necessariamente pelo Banco Central ou pela empresa de petróleo ou pelo Tesouro.
Entra também por canais alternativos que não são mensurados. Por isso é difícil, inclusive, mensurar o PIB [Produto Interno Bruto] da Venezuela. E esses canais alternativos, o que acontece? Eles são controlados muito mais pelo governo, especialmente a distribuição interna desses recursos. E, dentro do governo, então, é um emaranhado muito próprio.
Você vê a possibilidade de uma mudança nesse método de governança global, essa imposição de sanções que acabam prejudicando as populações?
É uma situação muito difícil de mudar, porque ela parte dos países que sancionam, principalmente os Estados Unidos. Eles não têm uma política e o entendimento da governança global como um espaço multilateral. É claro que não são todos os tipos de sanção, não deve haver uma proibição mundial das sanções. A questão é que as sanções, elas devem ser limitadas aos momentos e situações que as Nações Unidas aplicam.
O Brasil só adere a uma sanção quando isso é definido no espaço do concerto das nações, no principal espaço multilateral que são as Nações Unidas. Agora, no caso da Venezuela, assim como de Cuba, as sanções são aplicadas unilateralmente. Então, os Estados Unidos decidiram aplicar as sanções contra a Venezuela.
E, provavelmente, isso não vai mudar no curto prazo, porque esse país não tem interesse nenhum em deixar de aplicar sanções e ele não respeita as decisões, por exemplo, sobre Cuba, que é um caso notório da Assembleia Geral [da ONU] a respeito do tema e, em geral, sempre de 80 a 190 países do mundo condenam as sanções e o embargo contra Cuba.
E, mesmo assim, os Estados Unidos seguem aplicando [as sanções] unilateralmente só com o apoio de Israel e dois ou três países, dependendo de cada um dos anos, inclusive no governo Bolsonaro. O Brasil apoiou os Estados Unidos e votou contra a condenação das sanções.
O que deveria ser feito ou não? O que poderia ser feito entre os que defendem o multilateralismo e a atualização da governança global e expressando a realidade atual, que é muito diferente da realidade de 1944?
O BRICS é um espaço importante que ajudaria no médio prazo, no longo prazo, talvez a evitar situações como essa. Esse é um ponto e o outro é uma rediscussão da própria protetora financeira internacional e do uso de moedas.
Então, como o comércio todo é feito em dólar, o sistema SWIFT, que bloqueia a Venezuela, bloqueia a Rússia também, e Cuba, e que construir alternativas a esses espaços são fundamentais. Mas isso não está colocado com tanto peso para a situação concreta específica da Venezuela, pensando nesse ano e no próximo ano, são questões mais de longo prazo, mas que já são embrionárias. Esse é um dos pontos.
Falando ainda do colapso econômico, a grande crise econômica que a Venezuela enfrentou e enfrenta está melhorando, mas ainda não dá para dizer que se encerrou, em meio à crise gerada, muito por causa das sanções dos Estados Unidos. Na sua opinião, o governo do Maduro poderia ter feito algo diferente mesmo sendo sancionado? Existem erros detectáveis, que poderiam ter levado a história para outro rumo em termos econômicos? Qual a sua opinião?
É possível que sim, mas não é uma situação trivial. Eu fui diretor de Assuntos Econômicos da Unasul. Em 2016, portanto, já era o governo Maduro e até, se você me permite recordar, que eu acho que é importante para tal situação, eu cheguei na Unasul em julho de 2015 e, em dezembro, houve uma eleição parlamentar na Venezuela e houve a observação internacional da Unasul.
Inclusive, era uma missão eleitoral e o chefe da missão era o ex-presidente da República Dominicana, Leonel Fernandes. E, nesse momento, a oposição ganhou a votação e participaram ali uns 15 milhões de eleitores.
Inclusive, foi uma votação mais expressiva do que a de ontem. Por pouco não foi o total de eleitores e a oposição ganhou uns 2 milhões de votos para uma eleição legislativa. Rapidamente o governo, e já o Maduro, reconheceu o resultado e o reconhecimento internacional do resultado foi quase imediato.
O que mudou de lá para cá? Muita coisa. Uma delas foi que, do ponto de vista da integração regional, houve uma paralisia e, depois, uma fragmentação da governança regional. Então a gente não tem esses instrumentos.
Todos os países da região reconheceram o resultado daquela votação. Em dezembro de 2015, a situação econômica já não era muito boa, a inflação já era significativamente alta, as sanções dos Estados Unidos já estavam desenhadas e havia uma série de distorções, principalmente em relação aos subsídios exagerados.
A gasolina, por exemplo, era quase grátis e havia uma dificuldade em organizar a distribuição desses recursos por meio de programas sociais que já existiam, eram exitosos, mas exitosos num nível de bonança econômica que durou até 2012 aproximadamente, que já não existia em 15, então o problema não foi na eleição.
Depois da eleição, o governo tentou promover algumas medidas que, na prática, diminuíam o peso político do Parlamento e isso gerou uma tensão política interna. Foi construído, com o apoio da Unasul, um espaço de diálogo entre o governo nacional e a Mesa da Unidade Democrática, que ali reunia a maior parte da oposição, quase todos os partidos da oposição.
Esse espaço tinha como mediador a Unasul, três desses presidentes de outros países do mundo, e a Santa Sé, o Vaticano. Foram organizadas mesas de trabalho e uma delas chamava Mesa Econômica Social. Eu fui relator dessa mesa, então foram várias sessões de trabalho em semanas diferentes.
Nesse momento, a secretária geral da nossa mesa ficava em Quito. Eu fui várias vezes a Caracas e eu era o relator da Mesa Econômica Social com os cinco participantes do governo, cinco da oposição.
Logo em seguida, por sugestão inclusive do coordenador dessa mesa, que era o ex-presidente da República Dominicana, o mesmo que havia coordenado a missão eleitoral, Leonel Fernandes, e com apoio do secretário geral da Nação, que era o ex-presidente da Colômbia, Ernesto Samper, de economistas venezuelanos, como Francisco Rodrigues, e dos Estados Unidos, como Marco Weisbrot, com apoio de outros economistas notórios como o ex-ministro da Economia da Colômbia e secretário geral, a executiva da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], o Antonio Campo, enfim, vários nomes.
A gente fez uma proposta de estabilização solidária e apresentou para o governo da Venezuela no fim de 2016. Ali a gente propunha uma unificação cambial lenta e, enfim, ali estava todo o programa.
Depois que o excedente dessa arrecadação, vinda da diminuição dos subsídios, seria distribuído de forma equitativa e generalizada, por meio de um marco, de um cartão que depois virou carnê pela pátria, que é um instrumento importante da Venezuela, utilizado até hoje.
Mas o programa em si não foi executado e o Maduro não quis executar. Ele optou e, inclusive, trocou logo em seguida os principais atores na Venezuela que defendiam esse programa que era presidente do Banco Central, o presidente da Defesa e o ministro de produção, que era o vice-presidente da área econômica.
Essas três figuras foram substituídas pelos que defendiam não mudar nada. Isso, na minha avaliação, a partir de hoje é muito fácil de falar, teve um custo grande para a Venezuela, porque se acirrou a situação. As reservas despencaram.
Naquele momento, a Venezuela tinha gerência, ela tinha poder sobre todos os seus ativos no exterior, situação que, depois da crise, com o grupo de Lima, enfim, o acirramento das sanções, ela perdeu. Naquele momento era possível fazer e não foi feito. Avaliado a partir de hoje é um erro.
Mas obviamente que eu não tenho todos os elementos para julgar as variáveis que Maduro teve que considerar para, inclusive, se manteve no poder. Talvez se ele tivesse feito suas reformas e diminuído seu poder político, tivesse perdido a eleição seguinte.
Mas não foi feito, isso custou para a Venezuela, porque ele chegou na eleição em 18 fragilizado. Foi uma eleição que boa parte da oposição pregou a abstenção. Ele foi reeleito já com uma economia em declínio e não conseguiu porque o país necessita, para ter o seu desenvolvimento, de algum acordo interno e de uma estabilidade interna e, ao mesmo tempo, de reconhecimento internacional.
Deve-se trabalhar e o que deve ser feito hoje na Venezuela para pactuar o acordo interno não é simples. Isso, evidentemente. E, logo, o reconhecimento internacional que levaria ao alívio das sanções.
Naquele momento, em 16, tinha a mesa instituída e tinha um fôlego para se aplicar aquelas mudanças econômicas e um calendário eleitoral, isso não foi feito. Ele optou por concentrar mais as decisões, mudar a equipe do governo, ir para as eleições, que acabou vencendo, mas teve dificuldade de legitimidade interna e um desastre em relação ao reconhecimento internacional.
Claro, isso não é só a vontade dele. Foi desastrosa a posição do Brasil. Se o governo brasileiro hoje não tem nenhuma simpatia pelo governo argentino, se fosse para derrubar o Milei, isolar a Argentina, isso provavelmente dificultaria muito mais a situação dos argentinos. Talvez não derrubasse o presidente da Argentina e, no final das contas, quem paga é também o Brasil, porque a má situação dos nossos vizinhos é uma má situação para o Brasil. Então a gente não deve fazer com a Argentina o que o governo Bolsonaro fez com o Maduro, certamente.
Agora, isso não depende também só da boa vontade externa. Tem fatores internos que são importantes. Tem a posição do próprio presidente do governo com a oposição. O fato de chegarmos a uma eleição como a de ontem, com os dois lados com expectativa de vitória, é muito meritório.
E, o passo seguinte, é o reconhecimento de quem perdeu. Não se está desenhando como uma situação simples, mas ela é o que se deve buscar agora, nos próximos dias, semanas e meses. E isso tudo tem que ser negociado assim. O mundo hoje tem mais problemas, certamente, do que em 18 e em 19, que foi a eleição do Maduro.
E falando um pouco dessa asfixia que foi incentivada no governo Bolsonaro dá para a gente mensurar, dá para ter uma ideia do quanto que o Brasil também perdeu com esse afastamento em relação ao vizinho, ao parceiro econômico, a Venezuela.
Sim, o Brasil perdeu muito. Olhando a partir de hoje também é fácil dizer que a política externa do governo Bolsonaro cometeu erros, vários. Mas eu diria que o maior desses erros, e não é só uma posição minha, mas de vários que trabalharam em posições importantes no governo Bolsonaro, foi fechar nossa embaixada e retirar todo o pessoal diplomata, também militar, policial de inteligência, todos os funcionários públicos do Brasil, da Venezuela, o consulado, enfim. Tudo em março de 2020, ali nas vésperas da pandemia.
Os diplomatas são muito mais importantes quando não têm um entendimento automático. Se todos concordassem, provavelmente o trabalho diplomático seria menos importante. A embaixada da União Soviética em Washington foi muito importante na Guerra Fria, assim como a embaixada estadunidense em Moscou. Os países não se gostavam mais. As relações diplomatas estavam estabelecidas e isso provavelmente evitou, enfim, que a situação descambasse para uma situação muito pior.
O Brasil se omitiu em relação à Venezuela. Nós perdemos muito do ponto de vista econômico, o nosso comércio bilateral com o país. Em 2007, 2008, 2009, 2010, era de R$ 6 bilhões, com R$ 5 bilhões de superávit para o Brasil. Isso despencou nos anos seguintes, principalmente em relação aos produtos industrializados.
O espaço que o Brasil perdeu foi ocupado por outros países do ponto de vista econômico, inclusive países extra regionais. Também tem brasileiros na Venezuela, ainda que tenha hoje muito mais venezuelanos no Brasil do que brasileiros na Venezuela. A gente tem brasileiros que moram na Venezuela e que ficaram desatendidos do ponto de vista consular. Não podiam, por exemplo, ter acesso a um passaporte, enfim.
E a gente perdeu a informação real. A gente teve que terceirizar as nossas informações sobre o que acontece na Venezuela. Então, tínhamos a informação de outros países que não tinham representação lá. Mas isso é uma situação totalmente inadequada para o Brasil, porque o Brasil tem interesses próprios. A Venezuela tem 2 mil quilômetros, aproximadamente, de fronteira com o Brasil. Tem toda a questão do Essequibo. A Venezuela reivindica esse território da República Federativa da Guiana, que é um país fronteiriço com o Brasil também. E a estabilidade daquela região interessa muito ao Brasil.
O nosso país importava a energia da Venezuela para abastecimento de Roraima desde 2001. Em 2019, o Brasil rompeu o contrato de compra e passou a produzir por termoelétrica a gás, que a gente importa dos Estados Unidos, vai até Roraima com custo ambiental, logístico e econômico altíssimo. Então a gente pagou, durante os anos de 2020 a 2022, seis vezes mais para gerar por termoelétrica a gás do que a gente pagava importando energia hidroelétrica limpa da Venezuela.
Então tem muitos custos e, ao mesmo tempo, outros países passaram a atuar mais na Venezuela, inclusive em temas que são sensíveis. Então a Venezuela, asfixiada pela Europa, pelos Estados Unidos e pelos países do grupo de Lima, foi buscar oxigênio em quem oferecia. A Turquia comprou muito ouro, o Irã forneceu vários produtos industrializados, a Rússia deu suporte militar e aprofundou a sua cooperação militar. A China é o principal credor da Venezuela, de longe.
Então, o que acontece? Esses países estão envolvidos em disputas geopolíticas muito maiores. A questão sul-americana e da Venezuela é um detalhe. Só que a ação desses países pode ser pautada por disputas e situações que estão fora da região. Então isso é um problema para o Brasil também.
A forma que a gente tem para dissuadir e repelir essa potencial ingerência está em manter a região como uma zona de paz. Aumentar a nossa cooperação, interdependência, desenvolvimento com a Venezuela e com a Guiana, enfim, isso com uma infraestrutura, com comércio, com cooperação e estabilidade econômica, social, política, migratória da Venezuela, interessa muito ao Brasil. Então a gente deve atuar nesse sentido. Não é só uma questão de Estado, independentemente de quem seja o presidente da Venezuela, ou da Guiana ou da Colômbia.
Essa aproximação da Venezuela com países como Irã, China, Rússia, na sua opinião, ainda tem mais o que avançar? Pode se tornar uma uma opção econômica interessante para a Venezuela?
Ela pode crescer. E se a Venezuela ficar isolada, indubitavelmente vai crescer, porque a Venezuela tem muitos recursos. Ela tem uma posição geopolítica muito importante ali no Caribe, próxima a Cuba, aos Estados Unidos. Tem também alguns países, por exemplo, a Rússia, que é uma das principais potências militares do mundo e está em guerra na Ucrânia contra a Otan e contra a Ucrânia. Mas a Ucrânia conta com o apoio da Otan e hoje, no momento, nessa semana, uma fragata russa atracada no Porto de La Guaira, próximo a Caracas, isso não tem. Não há nenhum tipo de crime ou de ofensa.
O Brasil recebe embarcações militares de vários países do mundo. Dos Estados Unidos, da França com alguma frequência. Isso em si não é um problema, mas claro que não é uma situação comum no período eleitoral. Uma fragata que vive e atravessou todo o Atlântico esteve em Cuba e no momento da eleição está lá. Obviamente isso não é por acaso, é uma sinalização e pode sim aumentar, mas o interesse do Brasil, na minha avaliação, é que a diretriz da nossa política externa também para reger nosso política externa equidistância entre os principais pólos de poder dos Estados Unidos, União Europeia, China. Mas sem alinhamento automático. E esse ativo é a integração regional, é construir agenda positiva com esses principais polos de poder.
Agora, a forma de dissuasão militar é ter o espaço de cooperação sul americano. A pior situação para o Brasil não tem a governança regional, não tem instrumentos como a Unasul. É que países da região em separado tenham alianças profundas e automáticas com potências regionais. Então, a Venezuela tem uma aliança profunda com a Rússia e China. Provavelmente ela vai levar com que a Guiana, que pode se sentir ameaçada com essa aliança, faça o mesmo com os Estados Unidos.
Esse cenário é terrível para o Brasil, porque isso fará com que esses espaços sejam vulneráveis a tensões que são decididas extra regionalmente. Então a posição do Brasil é que é difícil, mas deve se trabalhar pelos espaços de governança regional.
A gente pode cooperar militarmente e em defesa com polos externos, mas de preferência em conjunto. A gente pode negociar em infraestrutura o apoio, com países e polos de poder extra regionais, mas de de preferência em conjunto. Isso é uma discussão que o Brasil vai fazer ainda no fim do ano, com a visita do presidente da China, por exemplo, que é a eventual adesão do Brasil à Rota da Seda.
A gente deveria recuperar o nosso espaço de governança regional e, a partir disso, negociar com os principais pólos de poder projetos de infraestrutura que nos integrem e não nos desintegra. Isso vale muito para aquela área da Guiana. Ali, sem infraestrutura, o risco de um conflito por território aumenta muito. Agora, com infraestrutura integrada, com interdependência, com estrada, com projetos em conjunto, conexão elétrica, hidrelétricas, transmissão. Isso poderia nos ajudar e traria mais estabilidade para a região.
Quais são as áreas, na sua opinião, que o Brasil pode se beneficiar de mais de uma parceria com a Venezuela? A gente fala de petróleo, a gente fala de energia, mas temos que falar cada vez mais também de transição energética, de uma mudança da matriz. Você vê possibilidades de alguma parceria interessante com a Venezuela nesse tema?
Com certeza. O Brasil tem muito interesse. A Venezuela também, no desenvolvimento de uma área geográfica que eu gosto de denominar, embora isso não seja muito comum. Mas como Ilha das Guianas, que engloba o Estado do Amapá, toda a calha norte do Pará, do Amazonas, Roraima, os estados da Venezuela, de Bolívar e Delta, ou seja, o que está para o sul do rio Orinoco, a Guiana, o Suriname e a Guiana Francesa.Toda essa área forma uma ilha que é a maior ilha marítima fluvial do mundo. Por quê? Porque o rio Orinoco tem uma conexão natural com rio Negro, que por sua vez está no Amazonas.
Enfim, que é pelo canal Cacique Are, que é um braço de 324 quilômetros aproximadamente. É uma situação geográfica única do mundo em que em alguns meses do ano a água corre do Amazonas pro Orinoco e, outros meses, do Orinoco para a Bacia Amazônica. Toda essa área é uma ilha.
Ela é ao mesmo tempo uma área de enorme biodiversidade amazônica, a maior reserva de biodiversidade do mundo e também de enormes reservas minerais e de hidrocarbonetos, porque pega toda a região, agora da Guiana, inclusive marítima, porque é o país do mundo que mais cresce nos últimos quatro anos, 40 a 50% ao ano, e inclui a margem equatorial e também as nossas reservas de petróleo na foz do rio Oiapoque, que muitas vezes se chama de Foz do Amazonas, equivocadamente, na minha avaliação.
Por exemplo, o Brasil tem uma matriz energética bastante limpa, é uma das mais limpas do mundo, principalmente pela hidroeletricidade. E a gente construiu nas últimas décadas várias hidrelétricas na Amazônia, que são objetos de questionamento inclusive, principalmente na Calha Sul do Amazonas. Estão lá Jirau, Santo Antônio e Tucuruí, Belo Monte.
Mas a ilha das Guianas, ou seja, a calha norte do Amazonas, vai entre o rio Amazonas e o Caribe, que é a época de chuva, o período, o regime pluviométrico. Ele é o oposto e, portanto, complementar a da calha sul. Ou seja, quando não está chovendo lá nas nascentes dos rios onde estão essas hidrelétricas todas que eu mencionei. O rio Madeira, o rio Tapajós, o rio Tocantins... quando não está chovendo lá, tá chovendo muito na Guiana e no Suriname.
Então tem uma complementariedade muito grande, inclusive na Venezuela, no Rio Orinoco. Guri, que é uma das maiores do mundo. Então, se a gente tem um desenvolvimento hidrelétrico na Guiana, no Suriname, a complementariedade é enorme no Brasil e aumenta a nossa segurança energética e a deles, porque nos meses que lá vai estar produzindo, mais gente compraria. E nos meses que a gente tem excedente, a gente venderia. E então um anel ali de transmissão elétrica e o desenvolvimento de hidrelétricas na Guiana e no Suriname é muito importante. Esse é um fator. Tem um outro, que na Amazônia ela tem um enorme potencial para o transporte hidroviário e a gente não tem estudos significativos para o transporte hidroviário entre o Brasil e a Venezuela.
Na sua opinião, por que há tão pouco interesse em promover uma conexão maior? Fazer estudos de viabilidade? Parece tudo uma grande oportunidade perdida e é repetidamente perdida. O que você acha?
Porque a gente passou parte da nossa herança colonial também. Área de separação entre a América Portuguesa e América Hispânica. A nossa própria constituição geográfica foi historicamente concentrada no Atlântico. Então boa parte, mais da metade da nossa população, está na faixa de 50 a 70 quilômetros do litoral. Mais de 70% do Brasil está nesta área. A maior parte dos brasileiros vivem próximo à faixa atlântica e desde 500 até 2000, o centro do nosso comércio, o destino das nossas exportações era o Atlântico Norte, algo que não é mais hoje, tem uma mudança do comércio mundial em direção à Ásia Pacífico e a produção do Brasil também avançou.
E este avanço ocorre ao Norte, e certamente a gente agora tem a oportunidade de de recuperar esses caminhos perdidos. Mas são fatores históricos e hoje a gente está numa situação interessante, se me permite uma recuperação maior ainda da história econômica, inclusive da Venezuela, que tem muito a ver com a nossa situação atual aqui: o nosso principal economista, Celso Furtado, esteve duas vezes na Venezuela por bastante tempo, uma em 57 e outra em 74. Os estudos que ele fez sobre a Venezuela estão reunidos e publicados pelo Centro Internacional Celso Furtado.
Então era tanto petróleo que anestesiava as elites e passava a ter um consumismo grande, produtos processados internacionais, e ficava uma situação muito acomodada de exportação de matéria prima. O que a gente vive hoje no Brasil, com o avanço extraordinário do agronegócio, produção de soja, milho, algodão, que o Brasil passou a ser principal exportador do mundo de carne, que o Brasil é o principal exportador de carne congelada do mundo, muito a frente do segundo lugar. E a gente tem uma situação que, do ponto de vista da nossa balança comercial, é muito cômodo, mas ao mesmo tempo é muito fácil e anestesia, que é a possibilidade de industrializar os nossos produtos.
A situação que a gente vê hoje nos estados mais conservadores do Brasil, do ponto de vista cultural e político, mas que têm acumulado muitos recursos, como Mato Grosso, e também o Mato Grosso do Sul, Rondônia, enfim... há um avanço importante nos últimos anos em relação à produção. Mas isso não se converte ainda e espero que passe a ser em industrialização e processamento, que é uma situação que São Paulo viveu há 100 anos.
Então era um estado cafeeiro, numa situação bastante cômoda, quando houve os choques adversos e foi necessário produzir internamente. Conseguimos industrializar e o Brasil passou, em um período entre 30 e 80, por um enorme avanço industrial e melhorou a sua posição no concerto das nações da época.
Agora, nos últimos anos, a gente vive um processo de desindustrialização. Mas é uma desindustrialização amenizada e anestesiada pela bonança em minério de ferro, principalmente bruto em petróleo e em produtos ligados ao agronegócio, que é uma situação que a Venezuela viveu por muito tempo e só sofre as consequências da não industrialização.
Edição: Martina Medina