Rio de Janeiro

Coluna

Assistência técnica gratuita: uma alternativa para a questão da moradia no Rio de Janeiro

A cidade do Rio de Janeiro já abrigou iniciativas importantes de elaboração de planos populares, como os planos da Vila Autódromo e das Vargens - Usina CTAH
É necessário que a política habitacional seja fortalecida, com recursos orçamentários permanentes

A Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS) tem se difundido no campo do direito à cidade e combate ao déficit habitacional brasileiro, principalmente nos últimos 10 anos. Instituída por uma lei federal em vigor desde 2008, a ATHIS se refere à prática profissional para assistência gratuita à população de baixa renda em assuntos técnicos voltados principalmente para questões de moradia popular.

No Rio de Janeiro, essa prática é histórica, como mostrou uma pesquisa realizada pelo Observatório das Metrópoles junto a uma rede de parceiros. Uma das experiências pioneiras data de meados dos anos 1960, quando moradores da favela Brás de Pina, com o apoio de técnicos, resistiram a uma tentativa de remoção forçada pelo poder público. Desde então, foram diversas as experiências locais de ATHIS. 

As informações levantadas pela pesquisa mencionada evidenciaram que, atualmente, uma grande parcela de agentes tem atuado em iniciativas voltadas para melhorias habitacionais. Ainda que haja um trabalho importante desses agentes na defesa do direito à cidade, chama atenção a predominância de atuação em obras pontuais, restritas à unidade habitacional, afastando-os da prática de acompanhamentos técnicos mais processuais e estruturais.

Também foi captado nessa pesquisa que os grupos universitários extensionistas estão, cada vez mais, ocupando espaço relevante na ATHIS. A forte presença da extensão universitária representa um caminho interessante para a prática, já que fomenta uma formação profissional com olhar voltado para as necessidades reais e urgentes da sociedade.

ATHIS nas políticas locais e sua difícil efetivação 

Em termos normativos, o Rio de Janeiro apresenta uma situação atípica, sendo uma das poucas cidades brasileiras que contam com leis de ATHIS instituídas na esfera local. Além da Lei federal 11.888 de 2008, foram assinadas a lei municipal 6.614 de 2019 (Lei Marielle Franco) e a lei estadual 9.861 de 2022. As três legislações foram elaboradas e defendidas em contextos diversos, mas seus conteúdos são similares. Além disso, elas têm em comum o desafio da implementação, uma vez que não existem ainda normas regulamentadoras ou mesmo políticas públicas sólidas que lhes garantam efetividade.

No âmbito estadual, em 2021 foi criado o programa “Casa da Gente”, do qual fazia parte a iniciativa de ATHIS denominada “Na Régua”, realizada em parceria com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e que tinha em seu escopo a oferta de serviços técnicos gratuitos para a população de baixa renda. A instituição do programa foi o que motivou a criação da lei estadual de ATHIS. Curiosamente, em discordância com os textos das leis, as faculdades de arquitetura, urbanismo e de engenharias do Estado do Rio de Janeiro não fizeram parte do acordo para realização do programa e sua operacionalização ficou a cargo de contratações temporárias de equipes técnicas terceirizadas para atuação nos territórios escolhidos pela Secretaria de Infraestrutura.

O “Na Régua” se mostrou controverso, pois, apesar de contar com relatórios acadêmicos, nem as comunidades atendidas, nem os profissionais do campo de ATHIS conseguiram compreender com clareza suas diretrizes, áreas de atuação e forma de funcionamento, indicando uma arbitrariedade do governo estadual sobre o tema. Atualmente, é difícil conseguir informações sobre os resultados alcançados pelo programa. A grande maioria desses dados é apresentada nas redes sociais, indicando apenas que mais de 2.700 famílias teriam sido atendidas em aproximadamente 610 projetos de ATHIS, mas sem maiores detalhes.

Em 2022, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ) identificou irregularidades na parceria com a UERJ, o que levou à paralisação do Programa. Na época, o jornal O Globo informou sobre a investigação pelo TCE-RJ, destacando despesas empenhadas na ordem de R$ 20 milhões para pagamentos de “outros serviços de terceiros - pessoa física”. Por fim, em setembro de 2023 o decreto que havia criado o programa “Casa da Gente” foi revogado e, em seu lugar, foi criado o programa “Habita+” que, mais uma vez, prevê ações de ATHIS e melhorias habitacionais, mas sem clareza de como serão implementadas.

No âmbito municipal, a cidade do Rio de Janeiro contou com iniciativas relevantes que puderam gerar reflexões sobre as práticas de ATHIS. Dentre essas experiências destacam-se os Postos de Orientação Urbanística e Social (POUSOs), criados em 1996, articulados à política vigente de urbanização de favelas. Por meio da presença contínua de equipes técnicas multidisciplinares em escritórios montados nas favelas com técnicos da Prefeitura, os POUSOs tinham como objetivo preservar as melhorias decorrentes das obras de urbanização e avançar na regularização urbanística.

No entanto, ao longo dos anos, os POUSOs sofreram com profundos cortes de equipe e de áreas de atuação, além do esvaziamento de suas funções, ficando restritos à fiscalização de novas construções. Caso tivesse sido continuada e fortalecida, a experiência dos POUSOs poderia servir de base para a garantia da ATHIS em um universo importante de favelas cariocas, contando com a expertise acumulada de técnicos dedicados a esses territórios e atuando de forma integrada com a política habitacional mais ampla.

Além das leis mencionadas, a Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social consta em importantes marcos normativos aprovados recentemente, dentre os quais destacamos o Projeto Reviver Centro e o Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro. Apesar de a ATHIS constar nos textos dessas leis, elas não parecem ser caminhos férteis para sua implementação. O Projeto Reviver Centro foi apresentado por Eduardo Paes, ainda em 2021, e reedita a agenda de renovação urbana da região central, além de  avançar na articulação entre mercado imobiliário e Estado (representado pela Prefeitura), criando instrumentos urbanísticos e estabelecendo normas que estimulam novos empreendimentos.

Por outro lado, as legislações do Reviver Centro autorizam (e não obrigam) o Município a realizar melhorias habitacionais, exigindo que, para isso, os imóveis estejam ocupados por “população carente” há ao menos cinco anos e que não haja disputa em relação à sua posse. Tais exigências parecem desconsiderar as condições de moradia de grande parte da população. 

Em um contexto de profundas desigualdades sociais, o centro oferece oportunidades relevantes para a parcela mais empobrecida da população que, na insuficiência de soluções de moradia via políticas públicas, passam a ocupar imóveis nessa área, mesmo enfrentando constantes ameaças de despejo. Como mostram pesquisas recentes, cerca de 1.500 famílias vivem na região central e sofrem com ameaças de remoção que decorrem tanto de ações de proprietários de imóveis privados quanto  do próprio poder público. Além disso, nessa região há ainda um número expressivo de pessoas vivendo em cortiços, com demandas urgentes por melhores condições de habitabilidade. Ao desconsiderar as condições de vida dessa população em sua formulação, o Reviver Centro tende a atuar mais em prol da intensificação dos conflitos do que da garantia de direitos, dentre eles a ATHIS. 

O Projeto Reviver Centro foi apresentado e aprovado em meio ao longo e conturbado processo de revisão do Plano Diretor, que atravessou a pandemia de Covid-19 e foi aprovado apenas em 2024. O texto do Plano Diretor reproduz as promessas sobre a ATHIS já apresentadas no Projeto Reviver Centro, que autorizam, mas não obrigam a gestão municipal a realizar sua efetivação.

Na revisão do Plano Diretor foram conquistados espaços de participação para formulação de políticas habitacionais que servissem de subsídio não só para essa revisão, mas também para elaboração do Plano Municipal de Habitação de Interesse Social, ainda hoje inexistente. Assim, teve origem, em 2021, um Grupo de Trabalho (GT) dedicado a propor elementos norteadores, princípios e diretrizes gerais para um Programa de Assistência e Assessoria Técnica e de Melhorias Habitacionais. Mesmo com limitações, especialmente as restrições impostas pela pandemia, o fruto deste GT representa um esforço coletivo importante para a implementação da ATHIS que, infelizmente, pouco se refletiu no Plano Diretor aprovado.

Em 2022, o prefeito Eduardo Paes anunciou o programa “Casa Carioca”, que reivindica a lei municipal de ATHIS em sua redação e conta com investimento de R$ 300 milhões para requalificação de 20 mil moradias até 2024. Apesar disso, até maio deste ano, a Prefeitura afirmava ter beneficiado apenas 5,7 mil moradias. Sem fazer referência aos resultados do GT, a proposta do programa é realizar melhorias habitacionais pontuais, sem intervenções estruturais que permitam a adequação definitiva de moradias em situação de risco ou com inadequações.

A falta de políticas habitacionais consistentes, tanto municipais quanto estaduais, é reflexo de ações como essa, que se dão de forma descoordenada e que apresentam resultados pontuais e transitórios.

Assim, ainda que sejam anunciados investimentos e metas ambiciosas, tais ações não consolidam uma política de Estado, não refletem na reestruturação consistente dos territórios em que atuam e, por consequência, na melhoria efetiva da vida das pessoas. 

Vale ressaltar ainda que o programa “Casa Carioca” surge na Secretaria Especial de Ação Comunitária (SEAC), de forma desarticulada das ações da Secretaria Municipal de Habitação (SMH). A SEAC foi criada em 2021 e, até fevereiro deste ano, tinha como secretário Chiquinho Brazão, que se afastou do cargo diante dos avanços da investigação sobre o crime de assassinato da vereadora Marielle Franco - autora da lei que garante o direito à ATHIS no município.

O surgimento de ações de ATHIS e melhorias habitacionais nessa nova secretaria parece aprofundar o esvaziamento institucional e político da SMH, responsável por formular e implementar as políticas habitacionais no município. Além disso, nos coloca em alerta ao possível uso da ATHIS para interesses de atores políticos e suas bases eleitorais. A estreita relação e, por vezes, sobreposição, entre atores e grupos criminosos (sobretudo milicianos) demanda reflexão sobre a atuação desses grupos nos territórios populares, nas dinâmicas imobiliárias locais e, especialmente, sobre os desafios de formulação de políticas públicas de ATHIS nesse grave contexto.

ATHIS no debate público sobre direito à moradia

O complexo quadro apresentado nos coloca diante da urgência de avançarmos na implementação efetiva da ATHIS na cidade do Rio de Janeiro e de refletirmos sobre alguns de seus desafios. Em um ano de renovação do quadro político municipal é essencial que os candidatos e futuros gestores eleitos se comprometam a colocar em pauta a ATHIS enquanto instrumento de garantia do direito à moradia, tornando efetivos seus marcos normativos vigentes. Além disso, para que a ATHIS ganhe consistência é necessário que a política habitacional como um todo seja fortalecida, com destinação de recursos orçamentários permanentes, geridos de forma transparente e democrática, e ampliação da capacidade institucional a fim de reverter o processo de esvaziamento da SMH. 

A cidade do Rio de Janeiro já abrigou iniciativas importantes de elaboração de planos populares, como os planos da Vila Autódromo e das Vargens. Há também experiências de contralaudo, como o elaborado por moradores da favela do Morro da Providência para contestar a alegação de risco que ameaçava a permanência de centenas de famílias na região. Podemos lembrar ainda de exemplos de produção de moradias por meio da autogestão popular, como nas experiências do grupo Esperança, em Jacarepaguá, e da Ocupação Manuel Congo, no centro da cidade.

Todas essas iniciativas nos mostram como a ATHIS é diversa e contribui para a garantia do direito à moradia e à cidade. Além disso, colocam em evidência a importância do protagonismo popular para que ações de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social tenham sucesso e para que o saber técnico esteja a serviço da justiça social. Movimentos sociais, profissionais engajados em assessorias técnicas, universidades e representantes da sociedade civil comprometidos com essa agenda devem ser chamados a refletir, formular, deliberar e monitorar a implementação da ATHIS.

*Adauto Lúcio Cardoso é arquiteto e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP. É professor titular do IPPUR/UFRJ; 

**Samuel Thomas Jaenisch é sociólogo. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR/UFRGS, Doutor e Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. É professor colaborador do GPDES/UFRJ;

***Luciana Alencar Ximenes é arquiteta e urbanista. Mestre e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.

**** Ivan Zanatta Kawahara é arquiteto e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFF.  

***** Thais Velasco é arquiteta e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP. 

***** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Revisão: Renata Melo.

Edição: Mariana Pitasse