Coluna

Se há uma modalidade que representa o Brasil dos Palmares nos Jogos Olímpicos, essa modalidade é o boxe

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Hebert Conceição conquistou o ouro em Tóquio na categoria até 75kg - COB
No Brasil, o boxe nasceu nos quilombos urbanos, assim como a capoeira

*Por Michel de Paula Soares

Mais uma edição dos Jogos Olímpicos se inicia, e os aficionados por competições esportivas que se ajeitem no sofá. Há aqueles que torcem por todas as modalidades, há outros mais seletivos. Eu, particularmente, convido o leitor e a leitora a acompanharem o boxe, uma das seis modalidades de combate.

De forma geral, e como de costume, a presença de pessoas negras em posições de destaque no quadro de medalhas não passará despercebida. Embora não seja uma novidade, a superioridade de atletas negros ainda produz certos estranhamentos no olhar, seja pela naturalização da sua presença, como no atletismo, ou na sua quase completa ausência, como no hipismo e nas modalidades aquáticas. Algumas pesquisas já demonstraram historicamente como foi produzido “o lugar do negro" nos esportes. O boxe pode ser tomado como um caso exemplar onde a presença negra é hegemônica, pelo menos no mundo ocidental e particularmente nos países de origem colonial.

Na ginástica feminina, as medalhas conquistas por Rebeca Andrade na edição de 2021 nos leva a questionar os mitos e verdades sobre a presença negra em modalidades historicamente dominadas por pessoas brancas. Porque o desempenho, no esporte de alto rendimento, sempre foi racializado. É preciso lembrar que a afirmação da superioridade física de atletas negros baseada na raça, apesar de muito difundida, não guarda nenhuma evidência científica, servindo apenas para reforçar a discriminação racial.

No Brasil, o que há de comum entre o boxe e a ginástica artística são a origem de seus principais atletas, vindos das periferias de grandes cidades; os projetos sociais que iniciam crianças e jovens nestes territórios; e o incentivo financeiro criado no primeiro governo Lula, em 2004, o Bolsa Atleta. Para ficarmos com dois exemplos recentes, o campeão olímpico Hebert Conceição cresceu e deu seus primeiros socos no bairro Pau de Lima, na periferia de Salvador. Já Rebeca Andrade nasceu e se iniciou na modalidade na Vila Fátima, em Guarulhos (aliás, o mesmo bairro de onde eu próprio venho). Ambos formados em projetos sociais.

Para incentivar o leitor a me acompanhar nessa torcida, quero conversar sobre as particularidades que torna possível a hegemonia de jovens negros no boxe, a partir do contexto racial brasileiro.

Origem

A prática é muito antiga. Muito antes de um grupo de jovens com tempo livre desenvolver uma bola de futebol e se dividir em times opostos, duas pessoas já trocavam socos diante de uma plateia, seja por lazer, disputa, conflito, esporte, prazer, agressão ou violência. Podemos assegurar que os homens lutam com os punhos desde o dia em que começaram a viver em comunidade. Pessoas trocando socos estão nas pinturas rupestres da serra da capivara, nos poemas de Homero e em diversos vestígios arqueológicos espalhados pelo mundo que remontam às origens da civilização.

Uma forma ancestral de boxe teria surgido entre a Etiópia e o Egito, há mais de 3 mil anos antes da era cristã. Os russos possuem sua própria teoria, ao localizarem o boxe como desenvolvimento das lutas praticadas nas festividades da Rússia antiga. A Inglaterra se reconhece como o berço do boxe moderno. Mas não eram exatamente os antepassados dos Beatles que estavam lá, séculos atrás, quando criaram regras para o boxe competitivo, mas sim, escravizados africanos.

Entre estes, o pioneiro no esporte Bill Richmond, que trouxe para o boxe as defesas dançadas, o jogo de pernas e o ritmo, além de ter criado o próprio ringue sobre um tablado. Richmond foi o primeiro astro afro-estadunidense da modalidade, antes de ser levado para a Inglaterra aristocrata para ensinar boxe. Como se fala na Bahia, ele “cortava” todo mundo com suas habilidades e estilo de combater, baseado nas defesas, esquivas e contragolpes. A segregação racista que impediu, durante décadas, o combate entre homens brancos e negros era uma forma de se evitar, inclusive, a eficácia das habilidades de lutas negras.

Através de pesquisas recentes, sabemos mais da história de Bill Richmond e de muitas outras semelhantes, de pessoas capturadas na África para serem escravizadas nas Américas, especialistas em artes marciais, como o engolo e a kandeka. São exatamente estas práticas africanas que deram origem às defesas e deslocamentos, incorporadas no Brasil à capoeira, e nos Estados Unidos, ao boxe, ainda no período colonial.

Nossa História

Sendo africanas, é de se imaginar que estas habilidades e estilos de lutas faziam parte do repertório dos habitantes do Quilombo dos Palmares. O mais famoso exemplo de vida republicana do período colonial, este extenso território existiu durante mais de cem anos, entre 1580 e 1695, chegando a ter mais de 10 mil habitantes em seu auge. Pouco se sabe sobre a vida cotidiana dos palmarinos, mas entre as muitas coisas que seus moradores faziam, uma delas era, possivelmente, a prática lúdica de combates e lutas corporais.

O que nos confirma tal hipótese são algumas das éticas quilombolas atuais e ancestrais, incorporadas ao universo do boxe contemporâneo: cuidar da saúde do corpo, aprender a se proteger, a proteger o coletivo, a si próprio e ao irmão; preservar a própria subjetividade, conquistar alguma forma de dignidade e disposição para disputar e reconhecer a própria humanidade.

Podemos mesmo afirmar, dessa forma, que, no Brasil, o boxe nasceu nos quilombos urbanos, assim como a capoeira. O que Jorge Amado não sabia quando escreveu Jubiabá, porque não conhecia o boxe, é que Antônio Balduíno não venceu o marinheiro alemão apenas por causa de sua força, mas sim porque tinha uma técnica, ancestral e quilombola, que o qualificava como um verdadeiro lutador dentro do ringue.

Não foi por um acaso que boxeadores e boxeadoras brasileiras passaram a ganhar medalhas olímpicas a partir dos Jogos de Londres em 2012 (de lá para cá foram sete conquistas, sendo duas de ouro). No Brasil, e de forma semelhante ao samba, ao futebol e às religiões de matriz africana, o boxe é, também, um forma de organização e expressão da população periférica. Sua epistemologia é negra. As academias e projetos sociais onde se iniciam e se aperfeiçoam jovens boxeadores fornecem, apesar de todas as dificuldades, assistência à saúde, possibilidades de educação, lazer, habilitação profissional e oportunidades de emprego.

Quando estive em Salvador, ouvi do treinador Reinaldo Solis que “o povo baiano gosta muito de briga porque aqui teve muita guerra, muitos escravos revoltosos”. Foi como um susto perceber, através da fala de Reinaldo, a existência de uma continuidade histórica que conecta as rebeliões urbanas dos africanos escravizados no século 19 a uma medalha olímpica no século 21. Da Revolta dos Malês ao grito de Hebert Conceição: “Rocambole!”

Ou seja, no contexto das favelas, periferias e quebradas, de onde vêm os jovens boxeadores, a vocação para a prática está relacionada à aprendizagem de um saber potente para a preservação e valorização da própria vida, a ética rebelde. Torcer pelo boxe brasileiro é torcer por um Brasil Específico: o Brasil orgulhoso, negro e valente do Quilombo dos Palmares.

Nos Jogos Olímpicos de Paris, serão disputadas 13 categorias de peso, sendo sete categorias para os homens e seis para as mulheres. A equipe brasileira de boxe terá dez atletas representantes, simetricamente divididos em cinco mulheres e cinco homens. Do total, cinco atletas são da Bahia: Beatriz Ferreira, Tatiana Chagas e Barbara Santos de Salvador, Keno Marley e Wanderley Pereira da pequena cidade de Conceição de Almeida, no Recôncavo baiano. Dos outros cinco, dois representantes da cidade de São Paulo, Abner Teixeira e Luiz Oliveira, Juciele Romeu de Rio Claro, uma representante de Recife, Caroline Almeida e um paraense de Marituba, Michael Trindade.

Para essa edição, a projeção de Matheus Alves, treinador principal da equipe, é de conquistar duas medalhas. Arrisco dizer que é uma estimativa bem conservadora. Deixo aqui meu palpite, que serão quatro medalhas, e digo mais, duas vencidas por homens, duas por mulheres. E uma, pelo menos uma, medalha de ouro. Ao final dos Jogos Olímpicos voltamos a falar sobre isso.

* Michel de Paula Soares é antropólogo formado pela Universidade de São Paulo, pesquisador do LabNAU e treinador do Boxe Autônomo

** As opiniões contidas nessa coluna não necessariamente refletem às do jornal Brasil de Fato

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho