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NAS TELONAS

Artigo | Campos dos Goytacazes é uma cidade de cinema

Em seus tempos áureos, município contou com quase 70 salas de cinema e já serviu de locação para vários filmes

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Exibição do documentário “Rio, Negro” (2023) na Casa de Cultura Villa Maria, em Campos dos Goytacazes - Rodrigo Silveira / Ascom UENF

Na noite do dia 19 de junho, aconteceu uma exibição seguida de debate com o documentário “Rio, Negro” (2023) de Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, na Casa de Cultura Villa Maria, oportunidade em que celebramos o dia do cinema brasileiro e retomamos com o público presente a proposta de criação do curso de cinema na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - a UENF. Além desse importante marco, a exibição contou com uma plateia de quase 40 pessoas. Foi uma noite para guardar na memória que contou ainda com as presenças generosas do jornalista Aluysio Barbosa e do estudante de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF) Gabriel Belchior, na mediação da conversa. 

Campos dos Goytacazes, é bom lembrar, é uma cidade de cinema. Em seus tempos áureos, contou com quase 70 salas de cinema e a planície goitacá já serviu de locação para filmagem de importantes novelas e obras cinematográficas, tais como: “Escrava Isaura” (1976) de Walcyr Carrasco; “Na boca do mundo” (1978) de Antonio Pitanga; “Ganga Zumba” (1963) e “Xica da Silva” (1976), ambos de Cacá Diegues. Sem falar das produções locais, como “Sobre o domínio da fé” (1995) de Maria Helena Gomes; “Forró em Cambahyba” (2013) de Vitor Menezes e mais recente “Faroeste Cabrunco” (2022) de Vitor Van Ralse. E, não menos importante, temos pelo menos dois filhos ilustres de expressão nacional atuando no cinema e na televisão, o ator Tonico Pereira e a atriz e cantora Zezé Motta, que muito em breve será a primeira personalidade a ser condecorada com a titulação de doutora honoris causa pela UENF.

A celebração do dia do cinema brasileiro em Campos aconteceu às vésperas do lançamento do estudo lançado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) sobre a aplicação da Lei Paulo Gustavo no Estado do Rio de Janeiro, que revelou o impacto de R$ 852,2 milhões como resultado desta política pública na economia estadual. Esse investimento federal se reverteu em R$ 132 milhões em arrecadação de impostos, gerando quase 12 mil empregos diretos. Em 2023, somente a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa (SECEC - RJ) foi responsável pela execução de R$ 139 milhões em recursos destinados pela União através da Lei Paulo Gustavo. 

Trata-se do maior volume de recursos da história investidos no setor cultural e criativo do estado do Rio de Janeiro. 

Apesar do setor do audiovisual abarcar o maior volume de recursos, foram abertos editais de fomento nos segmentos de teatro, conexões urbanas, dança, circo, música, artes visuais, manifestações tradicionais, bandas e fanfarras, artesanato, arte-educação, HQ e diversidades em diálogo. Os resultados da Lei Paulo Gustavo no estado revelam o potencial do setor criativo e da cultura, mas não dão conta da complexidade que envolve a execução dos mesmos recursos da lei direcionados para todos municípios do estado, especialmente do interior. Para se ter uma ideia, a soma dos valores recebidos pelas nove cidades do norte fluminense chega a quase R$ 8 milhões. Campos dos Goytacazes ficou com o montante de R$ 3,8 milhões. 

É importante frisar igualmente que os resultados da Lei Paulo Gustavo foram anunciados em um contexto em que se avizinham as eleições municipais e, com elas, as discussões em torno das pautas mais cotidianas da população. O abastecimento de água, o transporte público, o saneamento básico, a educação de nossos filhos e a segurança pública (apesar desta última não ser diretamente responsabilidade municipal, continua a pautar as discussões dos postulantes às prefeituras). 

Apesar da urgência de tais temas, a Cultura ainda permanece alijada do debate eleitoral. Não obstante, nos últimos anos diversos instrumentos de políticas públicas culturais foram implementados, gerando impactos diretos na geração de postos de trabalho, emprego e renda. 

Além da implementação da Lei Paulo Gustavo, pelo menos até 2027 teremos a Lei Aldir Blanc 2,  política consolidada como uma grande conquista municipalista para o futuro do investimento público no setor criativo e  da cultura. Nos próximos anos, de forma descentralizada e regular, devem ser repassados pela União aos municípios brasileiros R$ 1,5 bilhão por ano, a princípio, até 2027. Ambas as leis são fruto direto da mobilização de trabalhadores da cultura, que se organizaram durante o período da pandemia com o objetivo de garantir uma renda mínima para os profissionais que atuam neste campo, em suas diferentes expressões artísticas. Os municípios precisam organizar seus arranjos administrativos para atrair e receber esses recursos, fomentar políticas públicas e criar um ambiente de negócios juridicamente seguro para o desenvolvimento da indústria criativa e da cultura.

Há muito trabalho a ser feito, muitas oportunidades podem ser aproveitadas para dinamizar o crescimento da economia criativa e da cultura no interior do estado, especialmente no norte e noroeste fluminense. Segundo dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, vinculado à Agência Nacional de Cinema (Ancine), há 2.145 produtoras independentes regulares atuando no estado do Rio de Janeiro, com apenas 224 produtoras cadastradas em todos os 91 municípios do interior do estado. Campos possui seis produtoras cadastradas. À baila desse debate, é importante frisar a necessidade de formação de mão de obra em nível técnico, de graduação e pós-graduação, seja para atuar no ensino, na pesquisa, no mercado de trabalho ou nas gestões públicas municipais do interior do estado, que ainda carecem de quadros qualificados nesta área em suas secretarias. Há necessidade de investimentos na revitalização de patrimônios como o Cine São José e criação de equipamentos culturais, possibilitando a dinamização das economias dos bairros, revelando novos talentos e democratizando o acesso à cultura ao grande público. 

Há um grande potencial regional para a mobilização de recursos públicos e privados no investimento em infraestrutura na área, a criação de um ambiente produtivo e de negócios no interior do estado. 

Entre os desafios e oportunidades, a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro também pode e deve ser bem-vinda a ocupar um lugar estratégico na gestão de equipamentos culturais e na oferta de novos cursos no campo criativo e da cultura. Nessa esteira de debate é que retomamos a proposta de criação do curso de cinema na UENF, em nível técnico, de graduação e, futuramente, pós-graduação, garantindo a formação e qualificação necessária para futuros profissionais atuarem na criação e consolidação de um polo regional de produção de cultural, na realização e produção cinematográfica, mas também para atuarem no mercado de trabalho e na gestão de políticas públicas do setor criativo e de cultura no norte, noroeste, no interior do Rio e no raio de ação mais próximo da universidade, que abrange um número considerável de cidades do Espírito Santo e Minas Gerais. 

Em termos práticos, a boa notícia é que a proposta de criação do curso de cinema está sendo acolhida e tratada como prioridade estratégica para a expansão da universidade e o desenvolvimento da região, no âmbito da comissão que compõe o Plano de Desenvolvimento Institucional do Centro de Ciências do Homem da UENF.

Nossa cidade e nossa região assistem às contradições do petrorentismo se tornarem agudas e insuperáveis em seus próprios termos. Nem as atividades e tampouco as elevadas rendas do petróleo deram origem a dinâmicas internas, sustentáveis e inclusivas de desenvolvimento econômico com qualificação do trabalho, aumento de produtividade e elevação educacional e cultural em larga escala. Para superar a contradição entre o desenvolvimento petrorentista insulado nas franjas do litoral e o subdesenvolvimento reinante no interior de Campos e de seu entorno (predomínio de pecuária extensiva de baixa produtividade no campo e serviços de baixa qualificação na cidade) precisamos de processos internos de transformação e inovação educacional e produtiva acoplado à emergência de uma economia criativa com alta agregação de valor e uso de trabalho qualificado em grande escala. 

O curso de cinema é capaz de dar propulsão, a partir da UENF e em perfeita sintonia com sua missão histórica, a uma dinâmica como essa. Embora sozinha nenhuma universidade possa criar nem sustentar nenhum processo social, sua tarefa de desafiar a ditadura da falta de alternativas e contribuir para elevar as expectativas sociais e pessoais em seu entorno pode permitir uma nova articulação entre cultura, economia e universidade em torno de uma política de desenvolvimento que aproveite a grandeza e a criatividade de nosso povo. A tradição de Campos com o cinema não é um traço do passado a ser apenas recuperado e preservado, é também, e acima de tudo uma fonte de imaginação, planejamento e construção do futuro.  

* Fernando Sousa é cineasta e doutorando do Programa de Pós Graduação em Sociologia Política da UENF; **Gabriel Barbosa é cineasta e antropólogo; e ***Roberto Dutra é professor de Sociologia da UENF. 

****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Edição: Jaqueline Deister