Rio de Janeiro

Coluna

Incentivar veículos leves de duas e três rodas para combater os efeitos das mudanças climáticas

A adoção ampla de bicicletas contribui para o deslocamento de última milha, com impactos positivos para a mobilidade - Letícia Quintanilha
É fundamental que o poder público impulsione iniciativas orientadas pela redução de emissões

Juciano Martins Rodrigues*, Lorena Freitas**, Filipe Marino*** e Letícia Quintanilha****

Não é de hoje que se questiona como as cidades poderão enfrentar a emergência climática. A tragédia que atingiu Porto Alegre e outras localidades do Rio Grande do Sul mostrou que as ações de mitigação e adaptação para o enfrentamento da crise ambiental - dadas as trágicas consequências sociais e humanas - são não apenas urgentes, mas inadiáveis.

Entre os principais desafios políticos para as cidades e metrópoles está a busca por formas alternativas de uso, apropriação e produção do espaço urbano. Em outras palavras, é preciso proporcionar novas possibilidades em termos de habitação, convivência e interação nos espaços públicos e, principalmente, incentivar outras formas de deslocamento. No Brasil, o transporte é responsável por 44% das emissões de gases de efeito estufa no setor de energia. Os meios rodoviários contribuem com 92,4% dessas emissões. Fica, então, cada vez mais claro que não será possível enfrentar as mudanças climáticas sem transformar o modelo de mobilidade urbana. 

Ao mesmo tempo, a concentração de fontes emissoras e a forma urbana que incentiva o uso do automóvel fazem com que as consequências das mudanças climáticas sejam ainda maiores nas grandes cidades. Na metrópole do Rio de Janeiro, onde se percebe um contínuo aumento da frota de veículos motorizados, somado à leniência das políticas de transição para veículos elétricos no transporte público e à falta de investimento nos meios ferroviários, a situação não é diferente.  Diante da emergência climática, o que pode ser feito, em termos das políticas voltadas para o deslocamento nas grandes cidades? Que soluções no campo da mobilidade urbana podem ser implementadas em cidades como o Rio de Janeiro?

Para reverter esse cenário, é essencial implementar transformações que considerem a mobilidade de uma metrópole de 12 milhões de habitantes, alinhando políticas de transporte com o uso do solo. No entanto, apesar de urgentes e necessárias, essas medidas estruturais exigem longos prazos, grandes investimentos e uma complexa articulação entre os governos municipais, estaduais e federal. Nessa escala, a solução reside, sem dúvida, na defesa de um Sistema Único de Mobilidade (SUM), que integre as políticas nos vários níveis governamentais, garanta financiamento e combata o viés proibitivo, excludente e segregador das tarifas atuais, tendo como princípio norteador a tarifa zero. Essa é a visão sustentada pela coalizão Mobilidade Triplo Zero, que defende, além da tarifa zero, zero emissões de carbono e zero mortes no trânsito.

Nesse contexto, cabe também a busca por soluções que contribuam para a adaptação climática, mas que requeiram menores custos financeiros, menores prazos de execução e promovam, ao mesmo tempo, impactos positivos sobre a saúde e a segurança da população. Uma possibilidade é o aproveitamento do potencial e das oportunidades relacionadas à micromobilidade, termo cada vez mais empregado para se fazer referência  ao uso de veículos leves movidos a energia humana ou elétricos operados em baixas velocidades, que hoje já desempenham  papel fundamental no funcionamento das grandes cidades.

Possibilidades desse tipo podem estar relacionadas tanto ao uso para o deslocamento pessoal quanto à chamada ciclologística, entendida como a utilização de bicicletas e triciclos para a realização de entregas e transporte de mercadorias. Na área central do Rio de Janeiro, a utilização desses veículos leves de duas e três rodas é uma realidade concreta, com impactos consideráveis sobre a mobilidade e o ecossistema urbano local. Não seria exagero dizer, inclusive, que se todas as entregas e deslocamentos entre domicilio e estação de transporte (primeira milha) e o destino final (última milha) no centro e bairros adjacentes fossem feitos em carros ou motos, não só essa área, mas toda a cidade entraria em colapso.

Visto sob a ótica da acessibilidade na área central, a adoção ampla de bicicletas, incluindo as elétricas, contribui, sobretudo, para o deslocamento de última milha, com impactos positivos para a mobilidade da população de toda a metrópole. Para os habitantes de bairros mais distantes, que buscam oportunidades disponíveis no Centro, esses veículos oferecem uma alternativa prática e economicamente acessível para conectar estações de trem e metrô a outros pontos do bairro. Esse tipo de viagem é potencializado com a presença de estações do sistema de bicicletas compartilhadas, já consolidado na cidade. 

Há alta demanda de viagens nessas bicicletas, já que a área central possui também a estação com maior utilização em todo o sistema do Rio de Janeiro.

Não à toa, essa estação está localizada na Central do Brasil, para onde convergem serviços de trens, metrô e ônibus de conexão metropolitana. Além disso, a intensa utilização do sistema de bicicletas compartilhadas por entregadores de aplicativo - com destaque para as elétricas - é visível nas ruas, uma vez que esse grupo é responsável por pelo menos 14% de todas as viagens realizadas na região.

A atividade de entregas ganhou enorme impulso a partir da pandemia de Covid-19, já que as pessoas passaram a recorrer a esse tipo de serviço com muito mais frequência, seja para pedir comida, ou outros produtos, em suas casas ou locais de trabalho. Apesar da diminuição da atividade econômica e da implementação do regime de trabalho remoto em muitos setores a partir de 2020, a área central do Rio de Janeiro ainda concentra 16% de todos os empregos da cidade. Juntos, os bairros do Centro, Lapa, Saúde e Gamboa tinham, no final de 2021, 37.444 estabelecimentos econômicos ativos, concentrados nos setores de serviço (77,8%) e comércio (14,6%). 

Devido a essa intensa atividade econômica e social na região, além do uso para os deslocamentos pessoais, a demanda por entregas favorece diretamente o uso de bicicletas e triciclos, resultando em um ciclo virtuoso de eficiência logística. Entre os benefícios estão, ainda, a diminuição da necessidade de áreas de estacionamento, redução de emissões de poluentes e de congestionamentos, permitindo um melhor gerenciamento e aproveitamento dos espaços públicos.

Além disso, a área central da cidade do Rio de Janeiro conta também com um alto contingente de estabelecimentos identificados como potencialmente geradores de viagens para entregas. Esses espaços são entendidos como pontos estratégicos, tanto de origem quanto de destino para deslocamentos relacionados à logística de mercadorias ou ao transporte de objetos associados a serviços diversos. Ou seja, são estabelecimentos cujas atividades estão centradas ou têm as entregas como parte fundamental de suas operações comerciais.

O principal indicativo do potencial da ciclologística na área central são os inúmeros triciclos que circulam diariamente em suas principais vias, garantindo a provisão de alimentos, bebidas, medicamentos e diversos outros produtos para moradores, trabalhadores, empresas e órgãos públicos. Com isso, esses veículos já se tornaram um componente essencial para a dinâmica econômica da área central do Rio de Janeiro, viabilizando e fortalecendo pequenos negócios que geram empregos e renda na região, inclusive aqueles que se apoiam na venda de mercadorias exclusivamente para entregas.

Aliás, entre os estabelecimentos geradores de tráfego de entregas, destaca-se na região aqueles cuja atividade de produção de alimentos é voltada exclusivamente para entrega.

Esse tipo de estabelecimento não tem autorização para fornecer alimentos no local e engloba desde pequenos serviços de alimentação para entrega em domicílio, cozinhas industriais, serviços de catering, até as chamadas dark kitchens. Certamente, ao lidarem com um alto volume de pedidos, especialmente durante os horários de pico, como almoço e jantar, esses estabelecimentos também criam um fluxo constante de veículos de duas e três rodas para realização de entregas. Incentivar o uso de bicicletas e triciclos - elétricos ou não - é uma possibilidade, nesse contexto, tendo em vista que a opção mais popular, muitas vezes, é a motocicleta, movida a combustão.

Do ponto de vista ambiental, o incentivo ao uso de bicicletas e triciclos representa um avanço significativo na luta contra a emergência climática, ao evitar justamente a circulação de motocicletas e outros veículos movidos a combustão. O benefício mais imediato é a redução das emissões de gases de efeito estufa e material particulado, mas podemos citar também a menor ocupação de espaço nas vias.  Ao circularem em baixas velocidades, veículos de duas ou três rodas contribuem para a segurança viária e para uma melhor convivência nos espaços públicos, resultando em um ambiente urbano mais sustentável, seguro e saudável. Ou seja, o incentivo a esses meios de transporte é também fator de promoção do bem-estar urbano local. Assim, a combinação de menos poluição e ocupação equitativa dos espaços públicos faz desses veículos peças-chave para uma política de mobilidade urbana que esteja alinhada com medidas para a adaptação climática.

A mobilidade por bicicleta e a pé já vem sendo incorporada no desenho de políticas de caráter ambiental do Rio de Janeiro nos últimos anos.

No seu Plano de Desenvolvimento Sustentável, por exemplo, a cidade estabelece como uma de suas metas quadruplicar o número de viagens em bicicleta até 2030, destacando ainda a importância de promover mudanças no seu padrão de mobilidade, então dominado pelos modos rodoviários movidos a combustão. Além disso, em 2022, o município definiu em lei a implementação do primeiro Distrito de Baixa Emissão do Brasil: uma área localizada estrategicamente no bairro do Centro. Na proposta, o incentivo à mobilidade ativa figura como protagonista. Além disso, a cidade é ainda signatária de compromissos como o de promover "Ruas Verdes e Saudáveis", no âmbito da rede internacional C40, de cidades comprometidas com as metas de redução de emissões estabelecidas pelo Acordo de Paris.

No entanto, apesar dos acordos e do entendimento de sua importância expresso no desenho de diversas políticas e planos, há lacunas entre o que tem sido proposto e a efetivação de medidas de incentivo aos veículos de duas e três rodas, que ainda não estão refletidas concretamente no espaço urbano e na dinâmica da área central. Considerando todo o potencial e as oportunidades para aumentar o uso desses veículos, é necessário avançar em ações de diferentes naturezas, das quais podemos destacar alguns temas de maior impacto: a provisão de infraestrutura, a qualidade dos instrumentos regulatórios e as políticas focadas no incentivo. 

Em relação à infraestrutura, já é consenso que espaços como ciclovias e ciclofaixas aumentam a percepção de segurança dos ciclistas - assim como dos condutores de triciclos - contribuindo para que mais pessoas optem por esse modo. No entanto, na área central do Rio de Janeiro, apesar de alguns recentes avanços na ampliação da malha cicloviária, o alto fluxo de usuários de bicicletas e triciclos que se arriscam pedalando na calha exclusiva do VLT demonstra que ainda são necessários mais avanços nesse campo. Outras infraestruturas, como bicicletários, estações de bicicletas compartilhadas e pontos de recarga, no caso dos elétricos, são também de fundamental relevância para conformar um ecossistema de mobilidade em que os veículos de duas e três rodas não-poluentes tenham protagonismo, fortalecendo, inclusive, a possibilidade da sua integração com outros modos. 

A gestão do espaço público por meio de instrumentos regulatórios adequados pode ser determinante para reduzir conflitos nos espaços compartilhados e ampliar a adoção dos modos ativos e elétricos. Nesse sentido, a regulação pode avançar abordando questões desde a redução de velocidades, ou ações para regulamentar a oferta de vagas de estacionamento para automóveis, indo até soluções de implantação mais complexas, como a restrição de circulação de veículos poluentes em áreas determinadas. Nesse último caso, trata-se de uma das medidas mais frequentemente adotadas em Zonas de Baixa Emissão, o que acarreta um aumento real do uso de veículos de duas e três rodas e impactos mais significativos para a qualidade do ar. No entanto, diante de uma crescente dependência de veículos individuais motorizados a combustão, a atuação nesse sentido é um desafio para as administrações municipais, dado seu caráter impopular.

Para além do papel da regulamentação urbanística, de incentivar a ciclologística, é fundamental considerar os desafios e dificuldades enfrentados por entregadores, cujo trabalho ainda é pouco regulado quanto à definição de seus direitos. Em sua maioria, esses trabalhadores não têm acesso a direitos básicos, como seguro de acidentes e remuneração justa, o que agrava ainda mais suas condições de trabalho. Em um mercado marcado pela precariedade, a constante pressão para cumprir metas em relação às entregas se traduz em jornadas muitas vezes extenuantes.

A preocupação com questões trabalhistas, como a segurança no trabalho e a superexploração, precisa estar no radar das políticas públicas, considerando que esses trabalhadores, ao optarem por veículos menos poluentes e silenciosos, contribuem de forma direta para a qualidade ambiental. São também os que mais são penalizados, devido às condições precárias de trabalho a que estão expostos.

Cabe destacar a importância das políticas de incentivo, fundamentais para criar um ambiente propício ao desenvolvimento de atividades e iniciativas que contribuam para a redução de emissões. Em primeiro lugar, deve estar a comunicação entre o poder público e a população, perpassando a construção das políticas e práticas relacionadas à mobilidade. É necessário, portanto, considerar mecanismos de diálogo para a implantação de infraestruturas mais adequadas às necessidades dos usuários, além de promover a participação dos diferentes setores implicados nos planos e regulamentações de incentivo aos modos sustentáveis, divulgando a importância e os benefícios que podem decorrer das escolhas nessa direção.

Em contextos como o do Rio de Janeiro, em que a promoção da acessibilidade e a ação climática envolvem disputas no espaço urbano, a assertividade na comunicação a partir do poder público se torna componente decisivo para o convencimento da população de que medidas desse tipo podem trazer benefícios econômicos, sociais e ambientais.

É fundamental que o poder público impulsione iniciativas orientadas pelos objetivos de redução de emissões, facilitando a adesão de empresas e órgãos públicos ao uso de veículos de duas e três rodas, a exemplo dos Correios, que já utilizam bicicletas cargueiras elétricas em suas operações. Considerando, sobretudo, o custo de migração para veículos elétricos, é preciso estar também no radar soluções que reduzam a carga tributária, como parte dos incentivos financeiros para a substituição de veículos a combustão, que ainda são utilizados em trajetos de média duração.

Em síntese, para a promoção do direito à cidade na metrópole do Rio de Janeiro, é essencial trazer para o debate público as oportunidades e os potenciais dos modos de duas e três rodas não-poluentes.  Esse é um caminho para a estruturação de melhores financiamentos para conformação de um Sistema Único de Mobilidade na escala metropolitana, na direção da tarifa zero e das políticas de incentivo ao uso de veículos como bicicletas e triciclos. Essas medidas podem contribuir em outras escalas - tanto espacial como temporal - para os objetivos de construir uma cidade mais sustentável, segura e saudável. 

*Juciano Martins Rodrigues - INCT Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ) e Núcleo de Estudo em Mobilidade Urbana Sustentável e Inclusiva (NEMobi);

**Lorena Freitas - Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil);

***Filipe Marino - Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Núcleo de Estudos em Mobilidade Urbana Sustentável e Inclusiva (NEMobi);

****Letícia Quintanilha - Núcleo de Estudo em Mobilidade Urbana Sustentável e Inclusiva (NEMobi).

*****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

 

Revisão: Renata Melo.

Edição: Mariana Pitasse