Tradicionalmente, avós são vistas como salvadoras das crianças, ajudando mulheres que se tornam mães
Camila Fernandes*, Natália Fazzioni** e Rosamaria Giatti Carneiro***
Os estudos sobre a relação entre avós e netos mostram que esse vínculo tem se prolongado em todo o mundo, graças ao aumento da expectativa de vida. Mudanças nos níveis de fecundidade e na estimativa de vida da população são os principais fatores por trás desse fenômeno, que também tem impactado a composição das famílias brasileiras e suas dinâmicas de cuidado.
No Brasil, a pesquisadora Glaucia Marcondes confirma essa tendência em seu livro “Avós que residem com netos: características dos arranjos doméstico-familiar multigeracionais no Brasil a partir de 1990”. Utilizando dados censitários de 1990 a 2010, ela analisou os lares multigeracionais, onde avós, filhos e netos vivem juntos, ou apenas netos moram com os avós.
A pesquisa demonstra que hoje em dia não só é mais comum várias gerações de uma mesma família viverem juntos por mais tempo, como também há um aumento do período de convivência entre duas, três ou mais gerações. Ela descreve esse fenômeno como a "verticalização das famílias", com mais parentes ascendentes e descendentes (como bisavós, avós, pais, filhos, netos e bisnetos) e menos parentes colaterais (como irmãos, tios e primos). Até o Censo de 2010, os lares multigeracionais cresciam ano a ano, representando 13% dos domicílios brasileiros.
Outras especialistas indicam que a melhora da situação financeira dos avós no Brasil, com acesso universal à aposentadoria e ao prolongamento do tempo de trabalho, tem se tornado relevante. Assim, muitos idosos brasileiros não apenas vivem com suas famílias, mas também são importantes provedores econômicos, como evidenciam as pesquisas das antropólogas Guita Debert e Dominique Momma. Além da aposentadoria, estudos destacam o aumento da população idosa trabalhando após a aposentadoria e como isso afeta a relação com os netos, levando a uma constante negociação sobre cuidado e trabalho entre mães e avós.
Tradicionalmente, avós, principalmente as mulheres, são vistas como "salvadoras das crianças", ajudando as mães a equilibrar cuidados com os filhos e trabalho. Por isso, a socióloga Alda Brito, sustenta que muito da solidariedade intergeracional se realiza à custa do esforço emocional e do trabalho não remunerado das mulheres. No Brasil, o tema se complexifica com a alta taxa de gravidez na adolescência, que chega a 14% entre os nascimentos. Esse número é menor entre adolescentes brancas (9%), mas sobe para 14,8% entre negras (pardas e pretas) e 28,2% entre indígenas.
Muitas avós de crianças negras e indígenas são jovens, ainda em idade reprodutiva, ao contrário do estereótipo de avós idosas.
Pesquisas internacionais e brasileiras exploram como a falta de espaços formais de cuidado de crianças faz com que mães que trabalham ou estão sobrecarregadas com demandas relacionadas a mais de um filho, tenham nas avós um apoio central. Isso se alinha com a ideia de que o cuidado infantil por avós está associado ao nível de provisão de creches em cada contexto. Com mais avós trabalhando e menos espaços de cuidado fornecidos pelo Estado, as negociações de cuidado se tornam mais complexas.
Uma entre tantas histórias
Samara é uma criança de três três anos, moradora do Morro do Palácio, em Niterói, na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro. Em um dos bate-papos com a pesquisadora Camila Fernandes, disse que “ama muito estudar” e explica como chegou até a creche: “eu falei para o meu avô que queria estudar lá na creche da vovó Lúcia e por isto eu estou aqui”. Sua avó, Lúcia, é auxiliar de serviços gerais na creche pública da comunidade e participa ativamente da criação de Samara.
Em conversa com Lúcia, ela explica como decidiu se apropriar dos cuidados da neta: “A mãe de Samara está grávida do terceiro filho e por isso eu peguei pra criar mesmo”. Lúcia decidiu cuidar de Samara por avaliar que a filha: “é muito nervosa com os outros dois filhos”. Lúcia explica que o nervoso da filha é compreensível, uma vez que ela mesma também sofre de igual condição. O nervosismo da mãe de Samara é uma característica conhecida na vizinhança, de modo que a mãe é famosa pela “falta de paciência com os filhos”e por “bater nas crianças à toa”. Em tom de reclamação, Lúcia enfatiza o jeito inadequado da filha tratar os netos e sustenta que este foi um dos principais motivos para decidir “pegar a neta para criar”.
No Brasil, a pandemia de covid-19 escancarou a crise do cuidado com suas especificidades e diferenças entre diferentes classes e grupos sociais. Entre as camadas médias, as relações de cuidado intergeracional se viram bastante abaladas, já que os idosos foram considerados grupos de risco e as crianças, por um certo tempo, vetores de contágio. Avós e netos foram afastados em nome do risco. Pessoas idosas ficaram isoladas e solitárias e as famílias com crianças pequenas, que antes contavam com a figura das avós no cotidiano dos cuidados, sobrecarregadas. Nesse sentido, entre camadas médias, as redes de apoio se romperam.
Uma experiência da ordem do impossível nos contextos de camadas populares, em que tal relação de cuidado é tão entranhada e pilar da vida social, que nem pode ser repensada, ainda que em contextos de morte. Vemos que nesses casos, as avós funcionam como essa ajuda extremamente necessária, para que mães trabalhem de modo ordinário. Por isso, mesmo na pandemia, as avós seguiram cuidando, pois suas filhas não deixaram e não puderam deixar de trabalhar. Sabe-se que no Brasil a imensa maioria das famílias é chefiada por mulheres, que criam seus filhos e ajudam umas às outras. Entre elas, mães e filhas.
Avós, ação do Estado e a crise do cuidado
Ainda durante a pandemia de covid-19, outra crise rapidamente se evidenciou para as famílias, sobretudo as mais empobrecidas, a financeira. Ao anunciar o Auxílio Brasil, benefício para famílias vulneráveis oferecido pelo governo, não houve clareza sobre a possibilidade de avós responsáveis pelos netos e solteiras receberem o auxílio dobrado, como seria o caso das mães. Após a polêmica ter se espalhado e alcançado os meios de comunicação, rapidamente o Governo Federal se pronunciou e confirmou que as avós, tias e irmãs que sustentassem as famílias e tivessem o cadastro único de assistência social regularizado com essa informação receberiam dobrado, reconhecendo sua importância nas relações de cuidados.
Se as avós de camadas médias muitas vezes terminam sendo substituídas pela figura da babá ou outras profissionais contratadas para o cuidado; a avó pobre e trabalhadora pode assumir um encargo de cuidado em casos nos quais seus filhos se encontram em situações de incapacidade de cuidar dos netos, como no caso entre Lúcia e Samara, e muitas vezes desempenharem esta tarefa junto a outras de cuidado informal e informal. Lúcia, assim como outras avós brasileiras, ocupa o papel de mãe dos netos, de modo que estas crianças reconhecem a copresença de duas mães.
Dessa maneira, na linha do cuidado com a vida, as avós jogam um papel tão importante quanto às mães na reprodução social.
Nas periferias são responsabilizadas pelos cuidados com as crianças e consigo mesmas, ocupando uma lacuna produzida pelo abandono estatal. A avó, assim como a mãe, realiza trabalhos de cuidado, muitas vezes nada condizentes com seu momento de vida, idade e condições de saúde. Na lógica sacrificial da maternagem entra a avoternagem, como a mulher mais velha que apoia a mulher mais jovem na roda da fortuna da vida. Basta saber, entre nós, quem cuidará dessa cuidadora, já que ela é esteio de quem não pode se ausentar.
Nas religiões de matriz africana, temos as yabás e entre elas as mulheres mais velhas e sábias, que inspiram pelo seu saber e suporte oferecido aos que lhes procuram. Na Umbanda temos as Pretas Velhas e Nanã, que mesmo idosas, muitas vezes são acionadas a cuidar e nos remetem às origens, das experiências e do mundo. Quanto não contamos com essa força das avós simbólica, social e economicamente, sem atentar para o direito que essas mulheres têm de uma vida digna, descanso, lazer e proteção social? No limite, são mães que cuidam de mães, num círculo vicioso de ausências e urgências.
Não que avós não possam reagir e resistir a esses modelos, muitas vezes o fazem e destoam do esperado, se ausentam e rompem com a disponibilidade para o cuidado, para usufruirem da vida, por não terem tempo ou dinheiro. Mas quando faltam e onde faltam, percebe-se o impacto de seu trabalho nas taxas de natalidade. Muitas mães, em trabalho recente de Rosamaria Carneiro, que também assina este artigo, disseram não querer mais filhos, mesmo depois do fim da pandemia, e não o querem por conta de não terem redes de apoio, como antigamente, por não poderem pagá-las e por não poderem contar como certo e seguro o “pacto de cuidado de geracional”.
Por isso, podemos pensar que quando faltam as avós, faltam filhos?
Daí o motivo de pesquisadores debaterem a “crise do cuidado”, ocasionada pela crescente demanda por cuidados associada ao envelhecimento da população e a diminuição das famílias. Nas periferias do Brasil, mulheres que já criaram seus filhos “tomam conta” de outras crianças em suas próprias casas. São casas existentes em bairros e comunidades pobres nos quais uma mulher assume o cuidado de crianças da vizinhança que não conseguiram vagas em creches públicas. Estas mulheres realizam um trabalho informal de cuidados desvalorizado socialmente, mal remunerado e que não é reconhecido pelo Estado enquanto trabalho.
As antropólogas Camila Fernandes e Natália Fazzioni, que também assinam este texto, possuem pesquisas realizadas em periferias e favelas brasileiras. Nesses estudos, relatam a existência de figuras reconhecidas como a “avó” de todas as crianças que passam pela sua casa. A “vó”, normalmente é um figura que já tomou conta de duas, três ou mais gerações de pessoas.
O sistema de creches públicas brasileiras possui uma dívida histórica com estas mulheres, responsáveis por amortecer a altíssima demanda por vagas em municípios onde são insuficientes. No caso do município do Rio de Janeiro, a prefeitura foi multada por mais de R$ 2 bilhões por não ter zerado a fila de crianças por uma vaga em creches da rede municipal. A multa foi aplicada pela 1ª Vara da Infância e Juventude e do Idoso, em ação civil pública instaurada pelo Ministério Público em 2009, com a participação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Pensar sobre o papel dos avós no cuidado dos netos agita discussões sobre o papel do Estado na provisão de serviços de cuidados em meio a uma tradição na qual este trabalho é realizado de forma familiar e de base comunitária. No atual governo Lula, o Ministério do Desenvolvimento Social, através da Secretaria Nacional de Cuidados e Família vem desenvolvendo um Plano Nacional de Cuidados, que visa justamente, promover um redesenho das relações de obrigação entre Estado, família, sociedade e mercado.
Em um país cujo o cuidado é assumido sistematicamente por mulheres que realizam tal tarefa incansavelmente através de gerações, como bem representam as avós, esteio de muitas famílias, resta-nos acompanhar atentamente quais serão as novas políticas ensejadas no contexto de um governo progressista e como estas podem potencializar o papel do Estado no reconhecimento do trabalho realizado por pessoas idosas, avós e personagens centrais na reprodução das gerações.
*Camila Fernandes é antropóloga (UFRJ). Consultora no Plano Nacional de Cuidados (Enap) e pesquisadora do CCI - Cebrap;
**Natália Fazzioni é antropóloga e estuda a relação entre gênero, saúde, parentesco e cuidado. Foi pós-doc da REMA;
***Rosamaria Giatti Carneiro é mãe, antropóloga e docente na Universidade de Brasília (UnB). Coordena o grupo de pesquisa CASCA - Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva.
****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Mariana Pitasse