São Paulo é a cidade com o maior contingente de população de rua do país: 31.884 pessoas
Por Carolina Teixeira Nakagawa Lanfranchi* e Marisa do Espirito Santo Borin**
A situação de rua é um desafio que se impõe às agendas das políticas públicas no Brasil e no mundo. É inadmissível que uma parcela da população trabalhadora seja relegada à sobrevivência em situação de rua, seja nas calçadas ou nos serviços de acolhimento, quando a cidade tem cerca de 590 mil imóveis particulares vazios (Censo IBGE, 2022). São Paulo é a cidade com o maior contingente de população de rua do país: 31.884 pessoas, conforme o último censo realizado em 2021 pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), sendo aproximadamente 11,3% da população em situação de rua do país (281 mil, segundo o número estimado pelo IPEA, 2022).
São Paulo possui a maior rede de serviços de assistência à população de rua do país, com forte atuação, numérica e diversificada de perfis ou tipologias, nos serviços de acolhimento institucional de caráter temporário. No entanto, poucos têm sido os resultados de inclusão efetiva dessa população, que cresce permanentemente, demandando a ampliação desses serviços e a compreensão da atenção também composta por serviços habitacionais e de distribuição de renda. Segundo Feltran e Arretche (2016), as políticas que procuram reinserir os cidadãos em situação de rua são as mesmas que, paradoxalmente, os produzem como tais.
Vale lembrar que a capacidade de ampliação da rede de acolhimento socioassistencial é de natureza reativa e não tem sido acompanhada de outras iniciativas de políticas habitacionais, ou de investimentos direcionados às causas, ou mesmo de diversificação ou ampliação de serviços diurnos de atendimento às necessidades mais básicas como alimentação, lavagem de roupas etc.
Antes de tratar das políticas públicas para enfrentamento da situação de rua é preciso contextualizá-la. Compreender a situação de rua é parte importante para pensar medidas mais adequadas. Você já parou para pensar o que a situação de rua tem a ver com transformar as nossas cidades em assentamentos cada vez mais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis?
Várias fontes de pesquisa mostram que a população de rua cresceu significativamente nos últimos anos, em várias cidades brasileiras. Em São Paulo, desde 2000, quando foi realizado o primeiro censo da cidade, o crescimento é contínuo e vem se acentuando nos últimos anos. A série histórica dos Censos revela que a cidade de São Paulo é a única capital do país que possui 20 anos de dados uma vez que esse segmento populacional não é contabilizado pelo Censo IBGE.
Chama atenção o aumento da Taxa de Crescimento da População em Situação de Rua em São Paulo (5,12% a.a. entre 2000-2009, de 2,56% a.a. entre 2009-2015, de 11,23% a.a. entre 2015-2019 e 6,98% a.a. entre 2019-2021) sempre muito superior à taxa de crescimento geográfica da população total do município (0,76 % a.a. entre 2000-2010, 0,56% a.a. entre 2010-2015, 0,49% a.a. entre 2015-2020 e 0,38% a.a. entre 2020-2021), com maior disparidade no período 2015-2019 e 2019-2021. Enquanto a Taxa de Crescimento da População de São Paulo vem apresentando quedas sucessivas, a População em Situação de Rua apresenta aumento exponencial com oscilações. Daí a necessidade de se apontar que as pesquisas revelam as crises econômicas como principais fatores desse crescimento, tendo um agravamento ocorrido pela pandemia da Covid-19.
De todo modo, de forma resumida, os dados revelam que, se olharmos o perfil a partir da média, seguimos identificando homens negros, sozinhos, em média 40-42 anos de idade e em empregos precários, ou seja, o mesmo sujeito que teve sua cidadania mutilada no início do processo de industrialização e desenvolvimento do capitalismo à brasileira. Por isso, a situação de rua entendida como condição social verticalizada tende a ocultar experiências e subjetividades.
Podemos dizer que, quando a população em situação de rua é entendida como posições sociais horizontalizadas, aflora um universo de elementos de distinção e disputas que melhor subsidiam respostas públicas. Por isso, quando olhamos os resultados dos Censos da Situação de Rua por segmentos específicos, podemos identificar diferentes perfis de deslocados urbanos em situação de rua ao longo da série histórica: 1) como nos anos de 2000, os catadores que permaneciam a semana nas ruas para coleta e venda de seus trabalho; 2) ou, ainda no ano de 2009, idosos que vivenciam a rua já em idade avançada por não conseguirem manter os padrões assumidos durante a vida ativa como trabalhador; 3) ou, nos anos de 2011, com o aumento da presença de mulheres, muito em razão da saúde mental e violência doméstica; 4) nos anos de 2015, o aumento da presença de barracas de camping assumindo a prevalência das conhecidas barracas improvisadas de material reciclável; 5) ou, em 2019, um olhar cada vez mais aprofundado para a comunidade LGBTQIANP+ que vivencia mais violência do que outros na mesma condição; 6) em 2021, o aumento mais expressivo de famílias inteiras nessa condição.
A rua vira “casa para a população de rua, a partir de uma ressignificação que se faz do espaço público dada pela necessidade de sobrevivência. Ressignificação que resiste à institucionalização e às violências (física e simbólica) do poder público, da população residente, da iniciativa privada e dos serviços de acolhimento” (LANFRANCHI, 2022). A rua traduz-se também em potencialidade, pois, segundo Frangella (2016), habitar as ruas , fazendo delas o seu lugar de trabalho, de moradia e de sociabilidade, significa contrapor-se à ideologização da cidade, por serem pessoas vistas “fora do lugar”, constituindo novas e moventes territorialidades nas ruas, e criando um duplo movimento de exclusão e vivência nômade.
As ofertas socioassistenciais, de maneira geral, no Brasil e em São Paulo, foram sendo ampliadas e unificadas à Tipologia Nacional do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Também foram ampliados os acessos aos benefícios de transferência de renda condicionados e continuados. Contudo, seguem uma lógica de escada ou graduação, com abordagem tutelar dos sujeitos e docialização de corpos. A grande maioria das ofertas socioassistenciais pauta-se em Casas de Passagens e Serviços de Acolhimento Institucionais, sendo quase nulo o investimento em iniciativas de maior autonomia como as Repúblicas.
A ampliação da rede de acolhimento resultou em muitos moradores buscarem um serviço de acolhimento e não dormirem na rua? De imediato, aponta-se o número insuficiente (mais pessoas pernoitando nas ruas do que acolhidas) e a inadequação das formas de acolhimento socioassistenciais que são oferecidas pelo poder público para essa população. Estudos qualitativos realizados pela Organização do Auxílio Fraterno (OAF), em 2021 e 2023, demonstram que muitos residentes, principalmente homens, não gostam dos Centros de Acolhida por falta de privacidade, por serem espaços coletivos que abrangem muitas pessoas, que dormem e circulam juntas, com hábitos diferenciados, falta de autonomia ou elevado grau de tutela, entre muitos outros fatores restritivos, ou mesmo de resistência à institucionalização. Daí a identificação da insuficiência da assistência social, uma política setorial historicamente responsabilizada por apresentar resolutividade à situação de rua.
A população em situação de rua não constitui uma população homogênea. Há uma variedade de soluções dadas à sobrevivência e formas de abrigo, o tempo de permanência na rua, a trajetória anterior à situação de rua, a herança cultural e social (os valores vividos anteriormente), o tempo e as formas de rompimento dos vínculos familiares e/ou comunitários, os tipos de socialização que se consolidam na rua, a rotina do uso abusivo de substâncias psicossociais (álcool e/ou outras drogas) e o seu grau de comprometimento, as condições de autoestima, o gênero e as possibilidades de vivência de violências, a idade e a capacidade de proteção, a escolaridade e as formas de reintegração que almejam, entre outros aspectos. Ou seja, as expectativas de futuro e as possibilidades de ampliação da experiência cidadã são fatores que dificultam uma conceituação que não seja reducionista ou mesmo unifocal.
Apesar da diversidade de situações e características, estas pessoas possuem em comum a condição de pobreza que as torna vulneráveis e as fragiliza em situações de crise. As suas condições sociais reduzem a capacidade de proteção e de absorção dos impactos das crises econômicas. Em geral, vieram de habitações precárias, desempenhando atividades de trabalho não especializado de baixíssima remuneração, alguns dependendo de benefícios de aposentadoria ou BPC (idoso ou pessoas com deficiência), entre outros capitais acumulados na condição de cidadãos mutilados. O mercado informal de trabalho, no qual a maioria das pessoas de rua trabalha, depende justamente dessa mão de obra em relações de trabalho de superexploração para redução de seus custos produtivos, não oferecendo estabilidade e nem garantias de direitos.
Quando chegam à rua, enfrentam a luta pela sobrevivência imediata em um universo mais ou menos desconhecido, além de carregarem o peso do rompimento que vivenciaram, desencadeado pela situação anterior. A maioria desconhece os serviços de acolhimento, alimentação e higiene, entre outros. Enfrentam situações de insegurança, medo, violência e desconforto nas ruas e mesmo nos abrigos.
Muitos em situação de rua têm dificuldade para ter acesso à moradia e, principalmente, a postos de trabalho, sendo que um fator retroalimenta a possibilidade do outro. Os que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas ou apresentam outros sofrimentos de saúde mental e física, têm dificuldades de se enquadrarem em esquemas rígidos de trabalho que exigem regularidade, disciplina e força física. Grupos como os LGBTQIANP+, negros, idosos, egressos do sistema penitenciário, são discriminados antes e nas ruas, enfrentando dificuldades para serem aceitos antes e mais ainda depois. Tratam-se de dificuldades que são somadas e que afetam o conjunto das pessoas em situação de rua.
Diante desse cenário, é importante fazer algumas observações sobre a trajetória de experimentação da situação de rua. Por meio de pesquisas qualitativas, alguns dos sujeitos em situação de rua dizem que nem sempre é a primeira vez que ficam sem moradia e, mais, revelam que, muitas vezes, combinam no seu cotidiano pernoite em hotéis, quartos alugados e centros de acolhida. Essa situação aponta para a importância de pesquisas longitudinais que acompanhem a trajetória dos moradores, não restringindo o entendimento da situação de rua a uma variável dicotômica.
Já as pesquisas de perfil amostral indicam como os principais motivos para a ida para rua: conflitos familiares, dependência de álcool e/ou outras drogas, perda de trabalho/renda, questões de saúde física e mental. Contudo, é preciso reconhecer que, quando questionados sobre a principal solução para a saída dessa situação, esses cidadãos apontam a habitação.
Por isso, é importante destacar a centralidade da política de habitação para a organização de diversos aspectos da vida social. É a insegurança habitacional que acaba por agravar conflitos familiares decorrentes da precariedade das fontes de renda ou quando essas sofrem reduções, ou mesmo o uso abusivo de substâncias psicoativas como alternativa à indisponibilidade de acompanhamento de saúde mental para os sofrimentos de ordem ético-política.
A perda da moradia não significa apenas a perda da habitação, mas também a separação de um grupo de referência, geralmente familiar, o rompimento de vínculos, de relações que organizam o cotidiano e que garantem a sobrevivência física e psíquica dos indivíduos, cabendo entender como estavam organizados, antes da ida para a rua. O conjunto de dados ajuda a entender esse percurso reforçando a centralidade da demanda por serviços habitacionais que superem as alternativas focadas no acesso à propriedade, além da necessidade de enfrentamento de uma realidade cada vez mais precária do trabalho e rendimentos insuficientes para a reprodução. Nesse contexto, especial atenção deve ser dada para as iniciativas de Moradia Social ou Locação Social, por compreenderem a oferta de serviços habitacionais, com igual acompanhamento psicossocial.
Diante da recente notícia de Projeto de Lei no 445/2023 da Câmara Municipal de São Paulo que multa em R$17 mil as instituições que doarem alimentos para os cidadãos em situação de rua, é importante pontuar a relevância dessas ações e as omissões do poder público diante da necessidade de garantir segurança e autonomia alimentar. Um projeto como esse representa uma violência e uma violação de direitos que demanda elucidação.
Tomando o Censo de 2019 e 2021 como referência, verifica-se que, apesar de 35,% em 2019 e 28,9% em 2021 apontarem ter ficado nos últimos sete dias um dia inteiro sem comer, no geral as fontes de alimentação foram agravadas. Como, por exemplo: de 21,6% em 2019 para 33,6% em 2021 que ganham ou pedem de pessoas nas ruas; de 21,6% em 2019 para 24,1% em 2021 que recebem de grupos que distribuem comida nas ruas; de 2,7% em 2021 para 3,8% que coletam ou catam nos lixos; ou ainda de 49,8% em 2019 para 42,5% em 2021 que se alimentam em serviços socioassistenciais da prefeitura.
Uma parte desse agravamento pode ser apontada pelas medidas recentes assumidas pelo poder público. Como, por exemplo, transformar serviços de acolhimento 16 horas em serviços 24 horas que acabam ficando vazios no período diurno, não servindo de referência para os não vinculados e ainda consumindo uma parcela significativa dos recursos de repasse mensal. Também pela quase nula expansão de ofertas diurnas, denominados Núcleos de Convivência, que passaram de 7 unidades em dezembro de 2005 com 1.477 vagas, para 12 unidades em dezembro de 2023 com 3.662 vagas.
Para enfrentar adequadamente a situação de rua é urgente uma reformulação da rede de políticas públicas que permita realizar um atendimento que propicie maior privacidade e autonomia aos usuários e que realize um trabalho social ao mesmo tempo individualizado e comunitário com os participantes, buscando apoiar seus projetos de saída das ruas e construção de agendas coletivas, tendo o acolhimento como ponto de partida e não como um degrau a ser conquistado no processo de vinculação.
Um dos modelos que pode responder a essa necessidade, especialmente para homens sós, é o das Repúblicas, que já existem atualmente e que atendem número limitado de pessoas (aproximadamente 10 pessoas por casa) e são acompanhadas por profissionais da assistência social. Segundo Lanfranchi (2022, p.135) “essa modalidade, com maior autonomia, maior privacidade e maior potencial de capilaridade imobiliária no território da cidade, tem custo per capita menor que um Centro de Acolhida 24 horas. Nas Repúblicas, apesar das dificuldades inerentes a um serviço que atende um coletivo, o número menor de pessoas, dispostas em espaços mais individualizados, permite uma outra abordagem, sendo possível criar um ambiente que se aproxima de um espaço doméstico, mantendo as regras de distanciamento. Isto aponta a necessidade de superação de modelos de maior tutela para expansão de modelos de maior autonomia, com maior eficiência e eficácia”.
Contudo, é preciso pontuar a necessidade de revisão das expectativas de aquisições dos usuários, dos quadros de profissionais envolvidos e a metodologia de trabalho para sua completa efetivação. Por outro lado, é indispensável garantir programas ou projetos dirigidos ao acesso à moradia, ao trabalho e complementação de renda. Dando, assim, sustentabilidade aos projetos de saída das ruas dos cidadãos.
Além disto, com maior ou menor intensidade, o acesso a programas de saúde ambulatoriais também foram precarizados e comprometidos nos últimos anos, com o avanço de pautas moralistas que desviaram investimentos em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Residências Terapêuticas, para investir em Comunidades Terapêuticas, que em sua maioria violam direitos humanos básicos. A pandemia também revelou uma atuação dos Consultórios nas Ruas muito centrada nas situações de uso abusivo de substâncias psicoativas e baixa atuação nas campanhas de imunização e vacinação, entre outras medidas de caráter mais preventivo.
Assim, é oportuno apontar que, como ocorreu no campo da saúde mental, é preciso e urgente uma LUTA ANTI-ALBERGUE no SUAS. Cabe, ainda, observar que esses programas devem ser elaborados conjuntamente por outros setores responsáveis pelas políticas de habitação, trabalho, cultura, educação e saúde, bem como devem contar com a participação de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais.
A situação de rua é a clara materialização de uma geografia da acumulação de capital; a cada nova fase de crise uma nova forma de refugo humano se apresenta nas ruas e um conjunto de ofícios e aparelhos são criados para controle desses corpos, sem manifestação clara de uma atuação que enfrente suas causas, sendo as principais a ausência do direito à moradia digna e da função social da propriedade.
Além disso, esse campo social guarda relação direta com a agenda de direito à cidade, pois além de ser um desafio para as políticas de proteção social, suas demandas revelam a necessidade de retomada do espaço público resilientes e inclusivos, com banheiros públicos, bebedouros, ressignificação dos territórios subutilizados dos processos de desindustrialização, entre outros aspectos.
A situação de rua tem como causa o modelo de sociedade excludente, segregadora e mão de obra trabalhadora superexploradora. Portanto, não cabe a uma única política setorial seu enfrentamento. Daí a recomendação de que nas próximas eleições pensem com mais cuidado nos planos de governo de seus possíveis candidatos ao executivo e nos princípios que regem a atuação dos indicados para o legislativo. Busque identificar nesses projetos os princípios pautados nos direitos humanos e que torne as cidades inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis para aqueles em situação de rua. Afinal, atender aos extremos da privação irá também atender aos que vez ou outra possam precisar.
* Graduada em Ciências Sociais (PUC-SP), mestrado em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) e doutora em Ciências Sociais (PUC-SP). Docente de graduação em Psicologia e Serviço Social (UNIP-SP). Pesquisadora da Rede Brasileira de Pesquisadores da População em Situação de Rua e do Observatório das Metrópoles de São Paulo. Coordenadora do Observatório da Vigilância Socioassistencial da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (COVS/SMADS).
** Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais (PUC-SP). Mestre e Doutora em Ciências Sociais (PUC-SP) e Pesquisadora do Núcleo São Paulo do INTC Observatório das Metrópoles e da Rede Brasileira de Pesquisadores da Situação de Rua.
***Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Nathallia Fonseca