Territórios

Avanço de garimpo em terras indígenas alerta para novos meios de lavagem de ouro

Fim da "regra da boa-fé" levou a queda nos volumes declarados de ouro garimpado, mas imagens de satélite revelam aumento

|
Terra Indígena Munduruku Jacareacanga
Terra Indígena Munduruku Jacareacanga - Christian Braga/Climainfo

Em meio à redução nos volumes declarados de ouro proveniente de garimpos legais no Brasil, as terras indígenas brasileiras perderam mais de 13 mil hectares de floresta para a mineração em 2023. O avanço é mais lento do que em anos anteriores, mas demonstra que a atividade clandestina permanece na Amazônia, já que a exploração mineral em terras indígenas é proibida por lei.

A análise exclusiva feita para a Repórter Brasil pelo jornalista ambiental Edward Boyda, da organização não-governamental Earth Genome – que, junto com o Pulitzer Center mantém a plataforma Amazon Mining Watch – acende um alerta de que os meios de lavagem de minério ilegal podem estar mudando após o fim da “regra da boa-fé”, que era apontada por especialistas como facilitadora do contrabando do minério precioso no país.

“Se os dados apontam para um aumento ou manutenção dos valores de áreas destinadas ao garimpo, isso pode indicar que a exploração de ouro segue no ritmo de anos anteriores. Logo, o ouro pode ser contrabandeado, sem passar por nenhum processo de lavagem e consequentemente sem ser registrado em dados oficiais”, afirma o pesquisador Bruno Manzolli, do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), autor de estudos sobre a produção de ouro no país.

Um exemplo do crescimento dos garimpos em áreas protegidas é a retirada irregular de ouro em área próxima da aldeia Homoxi, na terra indígena Yanomami. Imagens de satélite mostram que a área minerada cresceu entre 2018 e 2023. E especialistas consultados pela reportagem avaliam que a turbidez da água nas cavas é um indício de que o garimpo segue em atividade.

“Restringir ao máximo a comercialização de ouro oriundo de terras indígenas e unidades de conservação, instituir regras para combater a lavagem de dinheiro, e revogar dispositivos na Lei 12.844, de 2013, que enfraquecem a fiscalização – todas essas medidas inseridas no projeto de lei – trará um grande avanço no combate desses crimes”. A matéria já foi aprovada pelo Senado e agora segue em tramitação na Câmara de Deputados.

Autor de um projetos de lei que cria a Guia de Transporte e Custódia de Ouro – documento de rastreabilidade que almeja ampliar o controle e a transparência da cadeia produtiva do minério –, o senador Fabiano Contarato (PT-ES) defende que a aprovação de seu seu texto pode trazer mais controle sobre a atividade ilegal em áreas proptegidas.

O secretário de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Marivaldo Pereira, coordenou a elaboração do PL e defendeu a medida como “essencial para fortalecer o combate ao garimpo ilegal em terras indígenas e em áreas de preservação”.

Brasil pode estar esquentando ouro fora do país

Pesquisadores e agentes que combatem o garimpo ilegal na Amazônia apontam que as mudanças legais nas normas de comércio de ouro no Brasil dificultaram a contravenção, ao exigir das compradoras, as DTVMs (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários), maior responsabilidade na aquisição do minério de garimpos. “As transformações no mercado do ouro não são reflexos da diminuição da exploração ilegal, que foi pouco expressiva, mas de uma menor facilidade para lavar o minério”, afirma o pesquisador Rodrigo Oliveira, do Ministério Público Federal do Pará.

Segundo investigações de autoridades, antes da mudança, o minério vinha de outros países ou era retirado de uma área protegida – como as terras indígenas – e registrado em um processo de mineração de fachada. Em 2021, o MPF no Pará pediu a suspensão das três principais DTVMs em atuação no país após uma pesquisa da UFMG identificar a suspeita de lavagem em 49 toneladas de ouro ilegal em garimpos na Amazônia, entre 2019 e 2020.

Mas, com as mudanças na legislação e o aumento de operações de órgãos de controle, o ouro ilegal pode estar fazendo um caminho inverso. Em novembro do ano passado, a PF desbaratou um esquema de transporte de ouro ilegal “frio”  [minério ilegal não lavado] para a Venezuela. Um mês antes, aquele país teve o embargo do comércio de ouro aliviado pelo governo dos EUA, mas a restrição voltou a ser aplicada em janeiro deste ano após suspeitas do governo Maduro perseguir opositores políticos.

Barras de ouro apreendidas pelo governo federal em Boa Vista (RR), cuja origem é atribuída a garimpos ilegais na TI Yanomami (Secom/Divulgação)

“A nota fiscal eletrônica e o fim da presunção da boa fé dificultaram significativamente a lavagem de ouro. Com isso, o comércio desse ouro ilegal migrou para a tentativa de venda totalmente sem documentos, e houve várias apreensões de ouro que vinha sendo transportado e comercializado totalmente frio, às escondidas”, revela o perito criminal da Polícia Federal em Santarém (PA), Gustavo Geiser.

Oliveira, do MPF, também notou “um crescimento da circulação e da exportação de ‘ouro frio’ , para ser esquentado nos países vizinhos ou mesmo em centros consumidores com legislação mais frouxa, como nos países asiáticos”.

Recentemente, a Repórter Brasil revelou que fiscais da Receita Federal identificaram 5 quilos de ouro em pó não declarados, misturados a uma carga de 15 toneladas de carvão ativado que acabou retida no Porto de Santos (SP) sob suspeita de ilegalidade no comércio do minério precioso.

Nesta semana, a colaboração internacional Opacidade Dourada: o mecanismo do tráfico de ouro latino-americano, liderada pela organização de jornalismo investigativo do Peru Convoca, e que tem a participação da Repórter Brasil e de outros veículos da Colômbia, do Equador e da Venezuela, publica uma série de reportagens revelando as formas de lavagem de dinheiro em cinco países da América do Sul.

Alta recorde na cotação estimula ilegalidade e desafia fiscais

Em março de 2024, o preço do ouro no mercado internacional bateu um recorde, atingindo a maior cotação da história, o que pode estimular o aumento de garimpos ilegais na Amazônia. “É necessário manter o alerta na fiscalização”, conclama Bruno Manzolli, da UFMG.

O caminho para aperfeiçoar a fiscalização passa pela imposição de regras mais rígidas para licenciamento ambiental no setor, defende Hugo Loss, coordenador de operações de fiscalização do Ibama. “O nosso desafio é transformar o regime de lavra garimpeira e o licenciamento ambiental em medidas de efetivo controle dos impactos que essas atividades causam, pois hoje a regulação ambiental de municípios e estados é muito precária para garimpos”, diz.

O agente do Ibama lembra ainda que o país peca no controle de comércio e uso de equipamentos utilizados em garimpos. Investigação recente da Repórter Brasil mostrou que, no último ano, 90 retroescavadeiras foram apreendidas em terras indígenas e unidades de conservação na Amazônia. “Não há controle no uso de máquinas como dragas, motores e escavadeiras, a exemplo do que ocorre com o uso de motosserra, em que o órgão ambiental está habilitado a controlar a comercialização e o porte desse equipamento”, observa o agente ambiental.

O senador Contarato concorda: “O crime está em constante evolução e novas formas de investigação e controle de fiscalização são necessárias para tentar coibir a sofisticação da prática ilícita desses atos. É necessário um esforço conjunto para que haja uma política eficaz de combate ao contrabando de ouro ilegal”.

Edição: Naira Hofmeister