São fundamentais as instâncias de participação popular para a implementação do Plano Diretor
Adauto L. Cardoso*, Samuel Thomas Jaenisch**, Luciana Ximenes***, Ivan Zanatta****, Thais Velasco***** e Lucas Faulhaber******.
O Plano Diretor, consolidado pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 182 e regulamentado pelo Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001), é o instrumento básico de planejamento urbano. Ele é parte da estrutura institucional que visa o cumprimento da função social da propriedade, em oposição à sobreposição do direito privado sobre o interesse público que, de forma geral, rege o mercado imobiliário.
Nele, são estabelecidas as diretrizes da política urbana municipal, influenciando a gestão de diferentes áreas: política, ambiental, sanitária, cultural, de transportes, habitacional, de acesso à terra e a equipamentos urbanos. No documento são determinados também os parâmetros que regulam o uso e ocupação do solo, além dos instrumentos de planejamento responsáveis por viabilizar a execução da política urbana.
O Plano Diretor é fundamental para o planejamento e controle da distribuição dos investimentos públicos no território.
Essa questão ganha importância se considerarmos a enorme desigualdade presente nas cidades brasileiras. O déficit de infraestrutura e serviços urbanos é gerador de grandes vulnerabilidades, que vão desde a falta de acesso às oportunidades de trabalho e lazer até a inexistência de serviços básicos e sujeição a risco geológico.
As desigualdades de condições de vida e de acesso à infraestrutura são consequências, para além dos problemas de distribuição de renda, da concentração de investimentos públicos em porções do território que concentram populações de alta renda. Aprofundando esse ciclo vicioso de geração de desigualdades, o setor imobiliário opera fundamentalmente na produção de empreendimentos que se beneficiam das condições de valorização das áreas já valorizadas. Nesse sentido, o debate sobre o planejamento interfere nas condições de vida de uma camada mais ampla da população que é, continuamente, pressionada pelos ciclos de valorização imobiliária que encarecem custos de acesso à moradia e à cidade.
Um dos aspectos mais relevantes do Estatuto da Cidade foi a inserção dos princípios de gestão democrática para a construção da política urbana. Passa a ser compreendido, então, que a concentração das decisões nos governos ou no corpo técnico pode ser um fator de favorecimento de grupos específicos, dificultando o reconhecimento das demandas da população de um modo mais geral. Nesse sentido, o processo de revisão do Plano Diretor deve ser uma oportunidade para a sociedade civil intervir sobre os rumos da cidade. A participação popular tem um papel importante na formulação da política pública e não deve se restringir ao cumprimento burocrático das exigências da lei.
O Plano Diretor do Rio de Janeiro
No dia 11 de dezembro de 2023 a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro aprovou o novo Plano Diretor da cidade (Lei Complementar n.º 270/2024) em um processo conturbado. A etapa de elaboração conduzida pelo poder executivo foi realizada em meio à pandemia de Covid-19 e sem a apresentação de um diagnóstico que qualificasse o debate público sobre a proposta.
Se o Plano Diretor já é um documento básico e, por isso, define a política urbana apenas em âmbito geral, dependendo da vontade política, da capacidade técnica do poder executivo e de uma série de regulamentações posteriores para sua implementação, seu processo de revisão na cidade do Rio de Janeiro evidenciou como o poder público municipal buscou evitar que o documento delineie a política urbana e defina obrigações para o município. Na prática, isso resulta no enfraquecimento do Plano Diretor como instrumento de planejamento, fortalecendo políticas urbanas baseadas em decisões “no varejo”, centralizadas na figura do poder executivo ou, no limite, do prefeito.
Essa prática de delegar definições mais precisas para o poder executivo já está presente nos princípios, diretrizes e objetivos do Plano Diretor aprovado.
Por exemplo, há uma diretriz de “não remoção das favelas e dos loteamentos irregulares”, mas acompanhada da condição genérica de que “não estejam situados em áreas impróprias à ocupação”, o que pode resultar na autonomia do poder executivo para definição da legitimidade da remoção, já que, em grande medida, compete ao município definir quais seriam as áreas próprias e impróprias à ocupação. Nos princípios e diretrizes, nos pontos que tratam de justiça e direitos sociais, em lugar da menção a grupos específicos já consolidados nas políticas afirmativas (populações negras, indígenas, moradores de rua e LGBTQIAP+), delega-se ao Instituto Pereira Passos a função de arbitrar sobre quais seriam as parcelas comprovadamente marginalizadas da população.
Os instrumentos urbanísticos
Esse tipo de indefinição, que abre espaço a ações discricionárias do Executivo, também se fez presente nos instrumentos urbanísticos. No plano diretor aprovado, o zoneamento, no geral, define parâmetros, como taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento e gabarito, bastante permissivos. Por exemplo, em partes da Zona Norte, onde é previsto o incentivo à produção imobiliária, os parâmetros foram flexibilizados sem que os anteriores tenham sido aproveitados.
Em partes da Zona Oeste, onde a ocupação do solo, segundo o próprio Plano Diretor, deve estar condicionada a melhorias em serviço e infraestrutura, a flexibilização da legislação é ainda mais incoerente ao legitimar as fronteiras de expansão do capital imobiliário. Essa região, de modo geral, exige maiores investimentos do poder público para sua adequação ao adensamento, mas desperta interesse do setor imobiliário por ter grande oferta de terra barata, isto é, com potencial de valorização.
Essa expansão anunciada para a Zona Oeste da cidade exemplifica o modo clássico de o setor imobiliário capturar os investimentos públicos em benefício de seus negócios. O caráter pouco restritivo do zoneamento enfraquece sua função de orientar a ocupação do território, impedindo a realização das diretrizes estabelecidas. Afinal, se na cidade como um todo o potencial construtivo está acima da expansão prevista, a ocupação pode ser efetivada de acordo com interesses imediatos, tendendo a favorecer o setor imobiliário, mesmo que em oposição aos interesses públicos e às diretrizes presentes no Plano Diretor. Além disso, instrumentos urbanísticos que poderiam contribuir para a democratização do acesso à terra e o combate à especulação imobiliária, como o Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios e o Termo Territorial Coletivo, foram expressamente condicionados à regulamentação posterior, levantando dúvidas sobre sua aplicação.
A Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) vem sendo defendida, ao longo dos anos, como um importante instrumento de redistribuição dos ganhos dos proprietários imobiliários decorrentes dos investimentos públicos e das mudanças de legislação. A partir da instituição de um coeficiente máximo e um básico de aproveitamento, o instrumento determina uma contrapartida a ser paga pelos construtores que ultrapassarem o coeficiente básico. Esse recurso deve ser investido na distribuição de infraestrutura e equipamentos urbanos e em políticas de democratização do acesso à terra em áreas bem servidas.
A aplicação da OODC foi bastante reivindicada nas audiências públicas e considerada prioritária, tendo em vista o atraso de mais de vinte anos para sua regulamentação e aplicação. No Plano Diretor aprovado, a efetivação do instrumento passa a obedecer à moratória de cinco anos para o início da cobrança e aumento gradual, completando sua implementação apenas 10 anos após a aprovação. Além de ser um prazo longo para que os objetivos benéficos desse instrumento sejam alcançados, ele coincide com o prazo estabelecido para a revisão do Plano Diretor, deixando margem para que a OODC volte a ser debatida e até mesmo excluída da legislação. Para completar, a aplicação desse instrumento, que foi defendida para a cidade inteira, passa a excluir a Zona Norte da cidade, a região central e seu entorno, ou seja, ficam de fora justamente as áreas que reúnem potencial construtivo e oferta de serviços e infraestrutura. Essas áreas, onde a ocupação deve ser incentivada, têm o maior potencial de contribuir com a redistribuição dos investimentos e com a produção de habitação social em terrenos bem servidos na estrutura existente através da outorga.
A vinculação de recursos captados pela OODC também foi bloqueada pelo poder executivo.
Ao longo do processo de revisão do Plano Diretor foi colocada a proposta de destinação desses recursos para o Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano e para o Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social, sendo metade para cada um. Porém, no texto final, restou apenas 5% para cada fundo. A desvinculação dos recursos captados agrava a situação, permitindo que possam ser direcionados para outros fins.
O caso da Operação Urbana Consorciada (OUC) evidencia um conflito ainda mais direto entre os critérios de equidade e justiça social e os interesses do setor imobiliário. De acordo com a previsão do Estatuto da Cidade para o instrumento da OUC, os recursos captados pela operação devem ser investidos na sua área previamente delimitada. O sucesso da operação depende fundamentalmente dos investimentos e da valorização imobiliária concentrados, o que significa que a vinculação de parte dos recursos para a distribuição de terra e produção de habitação de interesse social é o único refúgio para a socialização dos ganhos da operação. No entanto, assim como no caso da OODC, não foi aprovada a proposta de destinação de 30% dos recursos da aplicação da OUC para a habitação de interesse social.
Em suma, a forma como esses instrumentos urbanísticos foram incorporados à revisão do Plano Diretor evidencia o distanciamento dos princípios da justiça social e da equidade. A distribuição dos investimentos públicos não é apenas uma forma de buscar reduzir as disparidades sociais, mas também um meio de controlar a valorização exponencial da terra urbana que acaba por atingir, ainda que de modo bastante desigual, a grande maioria da população, inclusive setores da classe média. Como trazido brevemente nos exemplos dos parâmetros urbanísticos propostos, da OODC e da OUC, há uma opção por viabilizar a atuação do mercado imobiliário, potencializando seus ganhos, em detrimento de medidas que visem a redução das desigualdades urbanas e a melhoria das condições de moradia e de vida da população.
Consolidação da legislação urbanística
No novo Plano Diretor, outro aspecto que pareceu servir mais para garantir a liberdade do poder executivo do que para determinar, de fato, a política urbana do município foi a proposta de consolidação da legislação urbanística. Trata-se da revogação do conjunto normativo em vigor até então a partir da incorporação de seus instrumentos, parâmetros, regras e da atualização e padronização das suas nomenclaturas e conceitos. Essa consolidação seria fundamental para facilitar a compreensão da legislação, o que poderia ser um elemento importante na busca por uma implementação mais ampla das regras, além de possibilitar uma intervenção mais efetiva da sociedade civil na fiscalização e no planejamento. No entanto, seu modo de construção foi arbitrário e seletivo.
Exemplo disso é que um conjunto amplo de Projetos de Estruturação Urbana foi revogado, com pouca transparência no que diz respeito às mudanças e permanências estabelecidas, enquanto o Plano Piloto da Barra da Tijuca foi mantido. O Projeto Reviver Centro, que a prefeitura, também em contradição com a proposta de consolidação, se negou a incorporar no debate do Plano Diretor, tornou-se outra zona de exceção no planejamento da cidade. Além de se destacar com incentivos e normas específicas, o Reviver Centro tem sido um meio para o setor imobiliário, através da venda de potencial construtivo possibilitada pelas Operações Interligadas, obter benefícios para construção em outras áreas, em especial na Zona Sul.
As Áreas de Proteção do Ambiente Construído (APACs), que são estabelecidas por normativas muito mais frágeis que o Plano Diretor, foram mantidas, mas, convenientemente, não foram incorporadas no zoneamento do plano, o que poderia fortalecê-las. Pelo contrário, em alguns bairros há uma sobreposição de parâmetros diferentes: os definidos pela nova lei, que são muito mais permissivos, e os vigentes de acordo com as APACs, que são mais restritivos e têm preponderância.
Dessa forma, a partir de agora, basta a decisão do prefeito de revogar o decreto que institui a APAC para que fiquem abolidas as regras de proteção do patrimônio histórico. O Projeto de Lei Complementar nº 163/2024, recentemente encaminhado pelo executivo à Câmara de Vereadores, é mais um golpe na proposta de consolidação. Com a justificativa de regulamentar os instrumentos do Plano Diretor, o Projeto de Lei contradiz diversas de suas disposições.
O esvaziamento do planejamento na estrutura municipal
Essa concentração das decisões no poder executivo através do esvaziamento de normas e instrumentos já é uma prática corrente nos governos de Eduardo Paes. Soma-se a isso um processo de esvaziamento do planejamento na estrutura da prefeitura, que já vem de outros governos e se tornou mais evidente nos últimos anos. No início da atual gestão municipal, a terceira de Paes, as secretarias de Planejamento Urbano e de Meio Ambiente perderam o controle sobre os licenciamentos urbanísticos e ambientais para a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação.
A pasta foi, ao longo do tempo, assumindo também as rédeas do processo de aprovação do Plano Diretor e do planejamento urbano, de modo geral, até incorporar por completo a própria Secretaria Municipal de Planejamento Urbano. Além disso, cabe ressaltar que a Secretaria Municipal de Habitação vem sendo progressivamente esvaziada e teve pouca influência na formulação do Plano Diretor.
O planejamento nunca garantiu avanços efetivos ou democratização da política urbana, o modelo tecnocrático da Ditadura Militar é um claro exemplo dessa insuficiência. No entanto, também parece evidente que o esvaziamento do planejamento, nesse contexto, favorece decisões autocráticas que podem beneficiar interesses econômicos e uma lógica de administração que favorece o mercado em detrimento dos princípios do Direito à Cidade e do Direito à Moradia.
O Plano Diretor, apesar de não garantir, permite a implementação de instrumentos urbanísticos que podem ser fundamentais para a democratização das cidades a partir de uma distribuição mais justa da terra urbana. É fundamental, portanto, a construção e fortalecimento de instâncias de participação popular e controle social com poder de influenciar de forma decisiva a regulamentação e a implementação do Plano Diretor e das normas e instrumentos urbanísticos. Além disso, a implementação da política urbana depende da reestruturação e fortalecimento dos órgãos ligados ao planejamento urbano e da imediata regulamentação e aplicação dos instrumentos previstos no Plano Diretor.
*Adauto Lúcio Cardoso é arquiteto e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP. É professor titular do IPPUR/UFRJ.
**Samuel Thomas Jaenisch é sociólogo. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR/UFRGS, Doutor e Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. É professor colaborador do GPDES/UFRJ.
***Luciana Alencar Ximenes é arquiteta e urbanista. Mestre e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
**** Ivan Zanatta Kawahara é arquiteto e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFF.
***** Thais Velasco é arquiteta e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP.
****** Lucas Faulhaber é arquiteto e urbanista. Mestre e doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ
*******Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Revisão: Renata Melo
Edição: Mariana Pitasse