Coluna

Não existe a ideia de uma guerra nuclear pequena

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People in the Landscape [Pessoas na paisagem], 1976. - Erik Bulatov (URSS)
O uso de armas da Otan para atacar a Rússia arrisca uma reação russa equivalente

Queridas amigas e amigos,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Houve uma época em que os apelos por uma Europa livre de armas nucleares ecoavam por todo o continente. Começou com o Apelo de Estocolmo (1950), que se iniciou com as poderosas palavras “Exigimos a proibição das armas atômicas como instrumentos de intimidação e assassinato em massa dos povos”, e depois se aprofundou com o Apelo para o Desarmamento Nuclear Europeu (1980), que emitiu o alerta assustador “Estamos entrando na década mais perigosa da história da humanidade”. Cerca de 274 milhões de pessoas assinaram o Apelo de Estocolmo, incluindo – como frequentemente relatado – toda a população adulta da União Soviética. No entanto, desde o apelo europeu de 1980, parece que cada década tem sido mais e mais perigosa do que a anterior. Ainda faltam 90 segundos para a meia-noite”, escreveram os editores do Bulletin of the Atomic Scientists (os guardiões do Relógio do Juízo Final) em janeiro. A meia-noite é o Armagedom. Em 1949, o relógio marcava três minutos para a meia-noite e, em 1980, havia se afastado um pouco do precipício, voltando para sete minutos para a meia-noite. Em 2023, no entanto, o ponteiro do relógio havia se movido até noventa segundos para a meia-noite, onde permanece, o mais próximo que já estivemos da aniquilação em escala total.

Essa situação precária está ameaçando chegar a um ponto crítico na Europa atual. Para entender as perigosas possibilidades que podem desencadear com a intensificação das provocações na Ucrânia, colaboramos com Basta de Guerra Fria para produzir o briefing n.14, As ações da Otan na Ucrânia são mais perigosas do que a crise dos mísseis de Cuba. Por favor, leia este texto com atenção e divulgue-o o mais amplamente possível.

Nos últimos dois anos, a maior guerra da Europa desde 1945 está ocorrendo na Ucrânia. A principal causa dessa guerra é a tentativa dos EUA de expandir a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para o território ucraniano. Isso viola as promessas que o Ocidente fez à União Soviética durante o fim da Guerra Fria de que a Otan não se moveria “nem um centímetro para o leste”, como o Secretário de Estado dos EUA, James Baker, garantiu ao presidente soviético Mikhail Gorbachev em 1990. Durante a última década, o Norte Global tem repetidamente desprezado as solicitações russas de garantias de segurança. Foi essa desconsideração pelas preocupações russas que levou à eclosão do conflito em 2014 e à guerra em 2022.

Hoje, uma Otan com armas nucleares e uma Rússia com armas nucleares estão em conflito direto na Ucrânia. Em vez de tomar medidas para pôr fim a essa guerra, a Otan fez vários novos anúncios nos últimos meses que ameaçam transformar a situação em um conflito ainda mais sério, com potencial para ultrapassar as fronteiras da Ucrânia. Não é exagero dizer que esse conflito criou a maior ameaça à paz mundial desde a Crise dos Mísseis de Cuba (1962).

Essa escalada extremamente perigosa confirma a correção da maioria dos especialistas estadunidenses sobre a Rússia e o Leste Europeu, que há muito tempo alertam contra a expansão da Otan para o Leste Europeu. Em 1997, George Kennan, o principal arquiteto da política dos EUA na Guerra Fria, disse que essa estratégia é “o erro mais fatídico da política estadunidense em toda a era pós-Guerra Fria”. A guerra na Ucrânia e os perigos de uma nova escalada confirmam plenamente a seriedade de seu alerta.

Elif Uras (Turkey), Kapital, 2009.

Como a Otan está aumentando o conflito na Ucrânia?

Os desenvolvimentos recentes mais perigosos nesse conflito são as decisões dos EUA e Grã-Bretanha em maio, de autorizar a Ucrânia a usar armas fornecidas pelos dois países para realizar ataques militares dentro da Rússia. O governo da Ucrânia imediatamente usou isso da forma mais provocativa possível, atacando o sistema de alerta antecipado de mísseis balísticos da Rússia. Esse sistema de alerta não desempenha nenhum papel na guerra da Ucrânia, mas é uma parte central do sistema de defesa da Rússia contra ataques nucleares estratégicos. Além disso, o governo britânico forneceu à Ucrânia mísseis Storm Shadow, que têm um alcance de mais de 250 km e podem atingir alvos dentro da Rússia. O uso de armas da Otan para atacar a Rússia arrisca uma reação russa equivalente, ameaçando espalhar a guerra para além da Ucrânia.

Isso foi seguido pelo anúncio do Secretário-Geral da Otan, Jens Stoltenberg, em junho, de que uma sede da aliança militar para operações na guerra da Ucrânia havia sido criada na base militar dos EUA em Wiesbaden, Alemanha, com 700 funcionários iniciais. Em 7 de junho, o presidente francês Emmanuel Macron disse que seu governo estava trabalhando para “finalizar uma coalizão” de países da Otan dispostos a enviar tropas para a Ucrânia para “treinar” as forças daquele país. Isso colocaria as forças da Otan diretamente na guerra. Como a Guerra do Vietnã e outros conflitos demonstraram, esses “treinadores” organizam e dirigem os combates, tornando-se assim alvos de ataques.

Nadia Abu-Aitah (Suíça), Breaking Free [Libertando-se], 2021

Por que a escalada na Ucrânia é mais perigosa que a crise dos mísseis de Cuba?

A Crise dos Mísseis de Cuba foi o produto de um erro de cálculo aventureiro da liderança soviética de que os EUA tolerariam a presença de mísseis nucleares soviéticos a apenas 144 km da costa mais próxima dos EUA e a cerca de 1.800 km de Washington. Essa implantação teria impossibilitado a defesa dos EUA contra um ataque nuclear e teria “nivelado o campo de jogo”, uma vez que os EUA já tinham essa capacidade em relação à União Soviética. Os EUA, como era de se esperar, deixaram claro que isso não seria tolerado e que o impediriam por todos os meios necessários, inclusive a guerra nuclear. Com o Relógio do Juízo Final a 12 minutos da meia-noite, a liderança soviética percebeu seu erro de cálculo e, após alguns dias de intensa crise, retirou os mísseis. Em seguida, houve um relaxamento das tensões entre os EUA e a União Soviética, o que levou ao primeiro Tratado de Proibição de Testes Nucleares (1963).

Nenhuma bala voou entre os EUA e a URSS em 1962. A Crise dos Mísseis de Cuba foi um incidente de curto prazo extremamente perigoso que poderia ter dado início a uma guerra em grande escala, inclusive nuclear. Entretanto, diferentemente da guerra da Ucrânia, ela não decorreu de uma dinâmica de guerra já existente e intensificada pelos EUA ou pela URSS. Assim, embora extremamente perigosa, a situação também poderia ser, e foi, rapidamente resolvida.

A situação na Ucrânia, bem como o crescente conflito em torno da China, são estruturalmente mais perigosos. O confronto direto está ocorrendo entre a Otan e a Rússia, em que os EUA acabaram de autorizar ataques militares diretos (imagine se, durante a crise de 1962, as forças cubanas armadas e treinadas pela União Soviética tivessem realizado ataques militares na Flórida). Enquanto isso, os EUA estão aumentando as tensões militares com a China em torno de Taiwan e do Mar do Sul da China, bem como na Península Coreana. O governo dos EUA entende que não pode suportar a erosão de sua posição de primazia global e acredita, com razão, que pode perder seu domínio econômico para o gigante asiático. É por isso que cada vez mais ele transfere as questões para o terreno militar, onde ainda mantém uma vantagem. A posição dos EUA em relação a Gaza é significativamente determinada por sua compreensão de que não podem permitir um golpe em sua supremacia militar, incorporada ao regime que controlam em Israel.

Os EUA e seus parceiros da Otan são responsáveis por 74,3% dos gastos militares globais. No contexto do crescente impulso dos EUA para a guerra e o uso de meios militares, a situação na Ucrânia e, potencialmente, na China, é, na realidade, tão ou mais perigosa do que a Crise dos Mísseis de Cuba.

Tatiana Grinevich (Bielorrússia), The River of Wishes [O rio dos desejos], 2012.

Como as partes em conflito devem negociar?

Horas depois que as tropas russas entraram na Ucrânia, os dois lados começaram a falar sobre uma diminuição das tensões. Essas negociações se desenvolveram na Bielorrússia e na Turquia antes de serem arruinadas pelas garantias da Otan à Ucrânia de apoio infinito e sem limites para “enfraquecer” a Rússia. Se essas negociações iniciais tivessem sido desenvolvidas, milhares de vidas teriam sido poupadas. Todas essas guerras terminam em negociações, e é por isso que, quanto mais cedo isso ocorrer, melhor. Essa é uma visão que agora é abertamente reconhecida pelos ucranianos. Vadym Skibitsky, vice-chefe da inteligência militar da Ucrânia, disse ao The Economist que as negociações estão no horizonte.

Há muito tempo, a linha de frente entre a Rússia e a Ucrânia não se move dramaticamente. Em fevereiro de 2024, o governo chinês divulgou um conjunto de doze pontos de princípios para orientar um processo de paz. Esses pontos – incluindo “abandonar a mentalidade da Guerra Fria” – deveriam ter sido seriamente considerados pelos lados beligerantes. Mas os países da Otan simplesmente os ignoraram. Vários meses depois, uma conferência conduzida pela Ucrânia foi realizada na Suíça, de 15 a 16 de junho, para a qual a Rússia não foi convidada e que terminou com um comunicado que tomou emprestado muitas das propostas chinesas sobre segurança nuclear, segurança alimentar e troca de prisioneiros.

Velislava Gecheva (Bulgária), Homo photographicus, 2014.

Embora vários países – da Albânia ao Uruguai – tenham assinado o documento, outros países que participaram da reunião se recusaram a assiná-lo por uma série de motivos, incluindo a percepção de que o texto não levava a sério as preocupações de segurança da Rússia. Entre os países que não assinaram estão Armênia, Bahrein, Brasil, Índia, Indonésia, Jordânia, Líbia, Ilhas Maurício, México, Arábia Saudita, África do Sul, Tailândia e Emirados Árabes Unidos. Poucos dias antes da conferência na Suíça, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, declarou suas condições para a paz, que incluem a garantia de que a Ucrânia não se juntará à Otan. Essa opinião é compartilhada pelos países do Sul Global que não aderiram à declaração da Suíça.

Tanto a Rússia quanto a Ucrânia estão dispostas a negociar. Por que os países da Otan deveriam ter permissão para prolongar uma guerra que ameaça a paz mundial? A próxima cúpula da Otan em Washington, de 9 a 11 de julho, deve ouvir, em alto e bom som, que o mundo não quer sua guerra perigosa ou seu militarismo decadente. Os povos do mundo querem construir pontes, não explodi-las.

Maxim Kantor (Rússia), Two Versions of History [Duas versões da história], 1993.

Esse Briefing, uma avaliação clara dos perigos atuais da escalada na Ucrânia e em seus arredores, ressalta a necessidade, como Abdullah El Harif, do partido marroquino Workers’ Democratic Way, e eu escrevemos no Apelo de Bouficha contra os preparativos para a guerra em 2020, para os povos do mundo:

  • Enfrentar o belicismo do imperialismo estadunidense, que busca impor guerras perigosas em um planeta já frágil.
  • Enfrentar a saturação do mundo com armas de todos os tipos, que inflamam os conflitos e muitas vezes levam os processos políticos a guerras intermináveis.
  • Se posicionar contra o uso do poder militar para impedir o desenvolvimento social dos povos do mundo.
  • Defender o direito dos países de construir sua soberania e sua dignidade.

As pessoas sensíveis de todo o mundo devem fazer com que suas vozes sejam ouvidas nas ruas e nos corredores do poder para acabar com essa guerra perigosa e, de fato, para nos colocar em um caminho além do mundo de guerras intermináveis do capitalismo.

Cordialmente,

Vijay.

Edição: Nathallia Fonseca