A visita do presidente russo, Vladimir Putin, à Coreia do Norte na semana passada, nos dias 18 e 19 de junho, marcou um importante passo de aproximação entre os dois países. o estreitamento da parceria entre Moscou e Pyongyang representa um fortalecimento da construção de laços com o Sul Global por parte da Rússia, e, consequentemente, o fortalecimento da retórica anti-ocidental.
Do lado da Coreia do Norte, o logo no início da reunião bilateral, o líder norte-coreano fez um enfático aceno ao seu colega russo, manifestando um apoio explícito à Rússia no contexto da guerra da Ucrânia. De acordo com ele, Pyongyang “estima a importante missão e o papel desempenhado pela poderosa Federação da Rússia na manutenção da estabilidade estratégica e do equilíbrio do mundo”.
“A Coreia do Norte expressa total apoio e solidariedade ao governo, ao exército e ao povo russo na condução da ‘operação militar especial’ na Ucrânia para proteger a sua soberania, os interesses de segurança, bem como a sua integridade territorial”, disse Kim.
Vale fazer um paralelo com a China, que mantém fortes laços políticos, econômicos e diplomáticos com a Rússia, e estabelece uma sólida posição conjunta com Moscou na defesa de um mundo multipolar contra os ditames da hegemonia ocidental, no entanto, em relação à guerra da Ucrânia, Pequim adota um tom mais diplomático e não manifesta uma defesa explícita de nenhum dos lados em conflito.
Só o efeito simbólico da visita já seria digna de uma análise atenta para os sinais enviados para o mundo. Fora a pompa com que Putin foi recebido por Kim Jong-un - com direito a recepção no desembarque do avião, troca de presentes, multidão nas ruas, cartazes e bandeiras da Rússia espalhadas por toda a cidade -, chama a atenção para a raridade deste tipo de encontro. A última visita de Putin ao país havia acontecido 24 anos atrás. Antes disso, nenhum líder soviético ou russo havia realizado uma visita oficial à Coreia do Norte, contrastando com as regulares visitas que líderes norte-coreanos fizeram à União Soviética e depois à Rússia.
Mas o encontro foi para além do simbolismo de aproximação entre dois países isolados do Ocidente. A visita serviu para ser assinado um histórico acordo de parceria estratégica que pode alterar as relações de poder na região. Trata-se do “Acordo de Parceria Estratégica Abrangente”, que prevê uma "assistência mútua em caso de agressão contra uma das partes do tratado". O novo tratado substituiu uma série de documentos assinados pela Rússia e pela Coreia do Norte, incluindo o Tratado de Amizade, Boa Vizinhança e Cooperação, ainda de 2000, ano da última visita de Putin ao país.
O pesquisador sênior da Universidade de Kookmin (Seul). Fiodor Tertitskiy, em artigo publicado pelo Centro Carnegie de Estudos de Rússia e Eurásia, observou que “em essência, o acordo revive o tratado sindical de 1961 assinado sob Khrushchev, que incluía uma obrigação de defesa mútua em caso de ataque a uma das partes”. Segundo pesquisador, “o texto deste parágrafo foi copiado da versão de 1961 com alterações mínimas”.
Imediatamente o acordo recebeu críticas por parte dos EUA e, especialmente, da vizinha Coreia do Sul, com quem a Coreia do Norte vive uma crescente tensão. A diplomacia sul-coreana afirmou que “qualquer assistência ou cooperação direta ou indireta que melhore a capacidade militar da Coreia do Norte é uma violação clara das múltiplas resoluções do Conselho de Segurança da ONU”.
Vladimir Putin reagiu à posição de Seul e rechaçou que a assinatura do acordo represente alguma ameaça à estabilidade na região.
“A Coreia do Sul, a República da Coreia, não tem nada com que se preocupar, porque a nossa assistência na esfera militar, de acordo com o tratado que assinamos, surge apenas se a agressão for levada a cabo contra um dos signatários deste documento. Tanto quanto sei, a República da Coreia não está planejando uma agressão contra a República Popular Democrática da Coreia, o que significa que não há necessidade de temer a nossa cooperação”, afirmou.
Vale notar que esta troca de declarações acontece em contexto de positivos acenos mútuos nas relações entre Moscou e Seul. No início de junho, Putin fez comentários favoráveis em relação à Coreia do Sul, afirmando que “apreciou muito o fato” de Seul não fornecer diretamente armas e equipamento militar a Kiev, apesar das repetidas visitas dos Estados Unidos.
O líder russo fez a ressalva de que Seul está indiretamente envolvida no conflito na Ucrânia, mas, ao mesmo tempo, manifestou esperança de que o nível das relações russo-sul-coreanas alcançadas nas décadas anteriores seja mantido para permitir trabalhar na sua restauração no futuro. Agora, com a assinatura do acordo entre Moscou e Pyongyang e ênfase que o governo da Coreia do Sul tem dado na aliança com os EUA e o Japão, as relações entre Rússia e Coreia do Sul podem entrar em um novo estágio de deterioração.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora de política russa e doutoranda em Ciência Política da USP, Giovana Branco, declarou que é “um novo passo” nas relações entre Rússia e Coreia do Norte. De acordo com ela, a interação entre os dois países deixa de ser meramente econômica e “passa a ter um alinhamento político muito mais forte, embora já fossem parceiros há algum tempo, neste momento se comprometem a longo prazo”.
A pesquisadora aponta que a aproximação que a Rússia faz em relação à Coreia do Norte pode aumentar a instabilidade entre as duas Coreias, considerando a constante troca de farpas entre os dois países pelo menos desde o final do ano passado e se intensificando na primeira metade deste ano.
“Com certeza este maior alinhamento que a Coreia do Norte tem em relação à Rússia, aumentando a sua própria segurança, causou bastante tensão nesta região, provocando até o pronunciamento norte-americano em relação a manter justamente a sua atuação militar na região para garantir a segurança da Coreia do Sul. Veremos também os EUA cada vez mais preocupados na medida em que percebem que estão perdendo influência nesta região”, argumenta.
Reforço da aliança anti-Ocidente
Junto com a Rússia e o Irã, a Coreia do Norte é um dos países mais sancionados do mundo. O país asiático vem sendo sistematicamente alvo da ONU e do Ocidente nas últimas décadas por conta do desenvolvimento do seu programa de armas nucleares. Ao comentar a viagem do líder russo a Pyongyang, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, declarou que ela representa "um desafio à segurança global".
Para a pesquisadora de política russa, Giovana Branco, o pacto assinado por Putin e Kim Jong-un é uma oposição à aliança militar ocidental e “representa esse novo momento nas relações de poder na região da Ásia”.
Segundo a analista, a movimentação russa na Ásia tem como objetivo expandir a sua influência, “mas, mais do que isso, de afirmar, ou se reafirmar, enquanto uma grande potência neste momento, neste contexto em que este status vem sendo questionado a todo momento, principalmente pelos países ocidentais”. “Então esta aliança agora, este pacto, de defesa mútua, é muito parecido com o que a gente vê entre os países membros da Otan”, acrescenta.
Na véspera da visita, o presidente russo publicou um artigo na mídia norte-coreana destacando que considera a Coreia do Norte uma “firme aliada na luta contra a hegemonia ocidental” e na defesa de uma ordem multipolar. Para a pesquisadora Giovana Branco, a aproximação com a Coreia do Norte busca reforçar o status de potência da Rússia junto aos países do Sul global.
Neste sentido, para Giovana Branco, a aproximação com a Coreia do Norte tem dois aspectos importantes. O primeiro é o de colocar a Rússia como uma potência “capaz de trazer outros países para a própria esfera de influência, de ter uma atuação política, econômica e militar em várias regiões do mundo”.
“Mas também tem uma questão simbólica e política, que é a escolha de fato de qual país o Putin está indo fazer visitas e criar alianças. Então, ao escolher a Coreia do Norte, que é compreendida como um Estado pária para os países ocidentais, a Rússia também dá um recado de que agora esses outros países que foram deixados de lado pelo sistema ocidental de poder poderiam sim ser alvos importantes da parceria da Rússia”, completa a pesquisadora.
Edição: Rodrigo Durão Coelho