Não sei como ser amigo de alguém que quer te matar, roubar sua casa, te expulsar da sua terra natal
"Hoje em dia, não dá para colocar pessoas em caminhões e jogá-las para fora das fronteiras, como foi feito em 1948. Mas dá para criar condições positivas para convencê-las a ir embora", disse o ex-premiê israelense Ariel Sharon no final dos anos 80. A frase repleta de eufemismos é nada menos do que as diretrizes de um plano que vem sendo posto em prática sistematicamente pelos governos israelenses, especialmente neste século.
A opinião é de Jamal Juma, ativista palestino que é o convidado do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Nascido nos arredores de Jerusalém em 1962, ele viu de perto os principais acontecimentos da ocupação israelense, desde a primeira intifada (levante palestino ou rebelião popular), ainda na década de 1980, a quase paz do Acordo de Oslo nos anos 90, a segunda intifada, os ataques do 11 de setembro, a prisão domiciliar e morte do grande líder Yasser Arafat, a disputa violenta entre Fatah e Hamas e o bloqueio de Gaza e a série de massacres ocorridos desde então, que culminaram no atual genocídio.
Em visita à redação do Brasil de Fato em São Paulo (SP), Jamal abordou muita coisa: desde a infância e os primeiros episódios de violência dos quais foi vítima, as realidades diferentes mas igualmente desesperadoras das ocupações nos territórios palestinos, o panorama político dentro de Israel e, principalmente, o que o resto do mundo pode fazer a respeito. Confira a íntegra da entrevista a seguir.
Brasil de Fato: Vamos começar falando do genocídio, do atual genocídio. Onde você estava no dia 7 de outubro de 2023 e o que pensa da operação do Hamas daquele dia?
Jamal Juma: Naquele dia eu estava em Ramallah, onde moro. Estou vivendo entre Ramallah e Jerusalém. Fiquei sabendo pelo noticiário e foi chocante, totalmente inesperado. Eu conheço muito bem o contexto político, sei como é tensa a situação na Palestina.
Nós, na Cisjordânia, estamos sob ataque pesado há dois anos, pessoas são mortas todos os dias. Os colonos atacam as pessoas, há gangues de colonos que, claramente, iniciaram um processo de limpeza étnica contra os palestinos, principalmente os beduínos.
A situação em Gaza está terrível há 17 anos, não só desde outubro, vivendo um inferno. Imagine 2,3 milhões de pessoas morando em 360 km², totalmente isoladas. Israel controla cada coisa que entra em Gaza, principalmente comida. Eles contam as calorias e só permite, que entre em Gaza o suficiente para as pessoas sobreviverem.
A fome é um projeto político?
É um projeto, desde o início. Em 2008, Gaza viveu um massacre de um mês, com ataques aéreos, bombardeio pesado, milhares de pessoas mortas, milhares de casas destruídas. Depois devastaram a vida das pessoas por mais dois ou três anos. Em seguida, veio outro ataque a Gaza, em 2012, e foram cinco ataques até 2023, o último em 2021.
Assim estava a situação em Gaza. Aquela área cercada vem sendo bombardeada sistematicamente, com caças destruindo milhares de casas e matando milhares de pessoas. Até mesmo os relatórios da ONU e dos organismos internacionais vêm dizendo que Gaza está se tornando inabitável por conta da contaminação da água, de um problema geral de energia, da fome generalizada, falta de esperança. Então todo mundo, de alguma forma, vinha esperando essa eclosão.
Somado a isso, está o fato de Israel negar totalmente os direitos da Palestina e até eliminar direitos. No último discurso de Netanyahu na ONU, dois ou três meses antes de outubro de 2023, ele mostrou um mapa de Israel onde não havia a Palestina...
A "Grande Israel"...
Sim, a "Grande Israel" até ultrapassa as fronteiras da Palestina Histórica. Enquanto isso, o governo estadunidense trabalha agressivamente para normalizar as relações com o mundo árabe, em particular, pressionando para a Arábia Saudita normalizar a relação com Israel.
Isso significaria o fim da causa Palestina. Tudo isso vem acompanhado de grandes projetos para o Oriente Médio, liderados pelos EUA. Eles querem fazer uma espécie de Otan árabe, liderada por Israel, para integrar o país na região.
E isso é para fazer oposição aos interesses da China, Rússia, Irã, que se tornaram monstros para os EUA. Então eles começaram a falar, planejar e já estavam até prontos para a implementação de uma alternativa à Rota da Seda, que começaria em Dubai, depois Arábia Saudita, Jordânia até Haifa.
Há outro grande projeto, que é o Canal Ben Gurion. Eles querem abrir uma alternativa para o Canal de Suez, do Mar Vermelho ao Mediterrâneo. Aliás, esse trajeto passa exatamente por Gaza. Mas, considerando isso seriamente, esses projetos e todos esses acordos não vão funcionar enquanto houver resistência palestina.
Eles teriam que se livrar dos palestinos?
Exato. O Hamas sabia e todos os palestinos sabiam - e estou falando de rumores que circulavam - que depois de outubro e das festividades judaicas iria haver um enorme ataque à Gaza. O que o Hamas fez, na verdade, não só eles, mas a resistência palestina de Gaza, foi quebrar as paredes da prisão.
Foi um ataque preventivo da Palestina contra Israel?
Exato.
Mas, quando você viu esse ataque, imaginou que a reação de Israel seria tão terrível, tão horrenda?
Não a esse ponto, sinceramente. Pessoas sob ocupação têm o direito de resistir, romper o cerco e escapar de suas prisões. Isso é assegurado pelo direito internacional. Lutar e resistir por todos os meios, até mesmo com armas, combatendo seu ocupador. Quando eles saíram dessa prisão, os militantes do Hamas foram para a base militar israelense, que é responsável pelos ataques a Gaza, e para o ponto de controle aéreo, que também é uma base militar, que controla todo o aparato militar sofisticado que é levado à Gaza.
Quando romperam o muro, o problema foi que a população de Gaza fugiu, e aí começou o caos. Toda a população de Gaza quer vingança.
Para começar, são como refugiados, foram expulsos de sua terra natal. Muitos deles, senão todos, perderam parentes, filhos, nos ataques constantes perpetrados por Israel, de tempos em tempos. Essas pessoas estão em uma espécie de prisão, as portas abriram e elas saíram.
Mas a reação de Israel... Quando analisamos a fundo por que reagiram assim, vemos que os israelenses jamais esperaram um ataque como esse dos palestinos. Para eles, para os EUA e todos os que defendem Israel...
Foi o maior ataque já visto em Israel
Para eles, foi inaceitável porque sacudiu todo o sistema, toda a ocupação.
Por que Israel está destruindo tantos prédios, matando tantas crianças e mulheres? Onde você acha que Israel quer chegar com isso?
Limpeza étnica e o fim do povo palestino. E, pode acreditar, depois que acabarem com Gaza... Já começaram na Cisjordânia, mas não em grande escala. Até agora, fizeram a limpeza étnica de 26 comunidades palestinas. Esses grupos terroristas de colonos na Cisjordânia se esforçam para destruir todos os meios de vida, tudo o que o ser humano precisa para sobreviver, tornar a vida impossível.
Em Gaza não restam casas, só pilhas de escombros, destroços. Não sobraram escolas, nem universidades, nem clínicas, nada, em absoluto. Seria preciso duas ou três décadas só para trazer a vida de volta a Gaza. Eles perseguem pessoas em direção às fronteiras com o Egito, esperando que elas se abram e as pessoas fujam. Não é algo que o governo egípcio queira, ou o povo palestino.
Porque nós vivenciamos a expulsão e a limpeza étnica em 1948, onde 85% da nossa população foi dizimada. Sabemos o quanto a vida dos palestinos foi ruim nos campos de refugiados no Líbano, na Síria, na Jordânia. Sabemos o quanto os palestinos sofreram mundialmente com a diáspora, 60% da nossa população é composta por refugiados. Há mais de 75 anos, pessoas vivem em campos de refugiados, o período mais longo de refúgio desde o século 20. Esses campos, aliás, não estão só na Jordânia e na Síria, mas na Palestina, na Cisjordânia, onde há 14 grandes campos de refugiados.
Essas pessoas originalmente fugiram ou foram expulsas das cidades e vilarejos destruídos em 1948, quando 530 cidades e vilarejos foram totalmente eliminados. Essa é a causa Palestina.
Israel não quer ver palestinos ali. Esse projeto colonial foi desenhado para acabar com a existência dos palestinos da histórica Palestina. Netanyahu está negando a existência dos palestinos e isso remonta a Golda Meir [premiê entre 1969 e 74] quando o mundo perguntou a ele sobre os palestinos e ele disse: "Podem me dizer quem são os palestinos? Onde vivem?"
Uma tática de desumanização?
Sim, e como é possível que pessoas invisíveis e desumanizadas promovam um ataque como o do 7 de outubro? Isso chocou os israelenses. Eles então usaram o ataque para dar continuidade ao plano.
Mas, na sua opinião, o plano de Israel saiu pela culatra e não está funcionando bem para os israelenses?
Se há algo de positivo no que aconteceu, que nos dá esperança, é que o mundo ficou realmente sacudido, fala de nós pela primeira vez na história. Você vê na TV todos os dias um genocídio televisionado, pessoas despedaçadas diante dos seus olhos. Acho que isso balança a consciência da humanidade e das pessoas. A questão da Palestina está no topo da agenda mundial. Os EUA jamais esperaram essa solidariedade massiva com a Palestina.
Há protestos em todo o mundo, começando pelas universidades dos EUA.
Sim, os EUA, para nós, eram um caso perdido, jamais esperávamos ter multidões nas ruas lá e na Europa. E isso prova que nosso inimigo é o mesmo, é o imperialismo, esses monstros escondidos detrás dos "humanitários", dos "direitos humanos", das "leis humanas" e da "democracia" são os que estão fazendo essas atrocidades contra os povos.
Para eles, a gente não conta. Somos um povo que tem que ir embora porque estamos em uma terra que eles podem usar para lucrar, especialmente os EUA.
Você é da Cisjordânia, não é? Já esteve do lado de dentro da Faixa de Gaza?
É, sou de Jerusalém. Eu já pude ir a Gaza, inclusive, de carro até os Acordos de Oslo, em 1991, precisamente. Depois pude ir com autorização. Fui duas vezes, até 1999, depois, nunca mais. Você tocou em um ponto muito importante, o plano israelense é fragmentar o povo palestino, as gerações que têm menos de 30 anos de idade, pelo menos, que nunca estiveram juntos. Gente da Cisjordânia, Gaza, Jerusalém e das terras que hoje estão dentro de Israel. Esse pessoal nunca se visitou nem se viu. Isto faz parte do controle colonial, dividir as pessoas.
Quais as principais diferenças que esse processo de isolamento causou nessas populações palestinas?
Eu não vejo que há diferenças entre o povo da Cisjordânia, Jerusalém e Gaza. Somos iguais, temos os mesmos princípios, história, língua e nos comunicamos. Nossos partidos e movimentos em Gaza e na Cisjordânia se comunicam. Não podemos nos ver presencialmente, mas nos comunicamos.
A diferença é que Gaza é muito mais oprimida, massacrada. Está em uma situação pior do que a da Cisjordânia, bloqueada. É uma área costeira, como você disse, uma região arenosa.
Mas não dá para desfrutar do mar, dá? As pessoas em Gaza não podem fazer isso como qualquer pessoa no mundo faria.
Não, e nós, da Cisjordânia, não podemos desfrutar do mar em Gaza. Mas, Gaza, antes de Oslo, nos anos 1970 e 1980, exportava cítricos, legumes e frutas para a Jordânia e para o outro lado do golfo, em grandes quantidades.
Então é possível?
Era possível, mas Israel desertificou tudo. Destruíram mais de 1 km ao longo de todo o entorno de Gaza, derrubaram todas as árvores, alegando que os guerrilheiros palestinos se escondiam atrás delas. O objetivo era acabar com os recursos de subsistência dos palestinos. Para poder matá-los de fome, se assim quisessem.
Em relação à sua infância e juventude, quais as lembranças mais queridas e marcantes que você tem da Palestina?
Sabe, eu cresci em uma família de camponeses, originalmente beduínos. Nasci em 1962, perto de Jerusalém, uns 7 km em direção ao mar e Jericó. Passei a vida rodeado de ovelhas, cabras, foi esse tipo de vida. Mas foi a vida de uma testemunha da ocupação. Essa é a vida de qualquer palestino, não importa seu estilo de vida, a ocupação sempre está lá.
A primeira experiência que abriu os meus olhos foi quando tinha 15 anos e estava indo do meu vilarejo para Jerusalém quando soldados entraram no ônibus e pediram nossa identidade... Aliás, na Palestina, a coisa mais importante da sua vida é seu documento de identidade, é preciso provar quem você é a todo momento. Então, eu disse que eu era muito novo e não tinha identidade e o soldado achou que era mentira: "Levante-se". Eu me levantei, mas sou alto, ele pensou que eu estava mentindo e me deu um tapa no rosto. Não conseguia aceitar esse tipo de humilhação e devolvi um soco. Apanhei um dia inteiro. Ainda me lembro da bota deles no meu rosto.
Desde 1970 até hoje, mais de um milhão de palestinos passaram pela prisão. Você não encontra uma única família na Palestina que não tenha um parente, hoje ou no passado, na prisão. Em relação às casas destruídas, só em Jerusalém, mais de 15 mil casas já foram demolidas desde 1967 e o mesmo vale para a Cisjordânia. Não há família cujo filho não tenha visto o pai ser espancado por soldados. A desumanização e o nível de opressão você vivencia desde o nascimento e nas últimas décadas se tornaram ainda mais brutais.
Prisioneiros que saem das prisões, saem quase mortos de fome, meses depois. Tenho amigos que estavam irrreconhecíveis ao deixar a prisão, perda de peso de 90kg para 60kg. Envelhecidos décadas. Eles não nos veem como seres humanos e acham que têm o direito de nos matar. Os colonos judeus, na Cisjordânia, podem matar um palestino e ir para casa, ninguém o questiona. Mas se uma criança palestina atira uma pedra pega pelo menos dois anos de prisão.
Israel trata criminalmente adolescentes como adultos, não é?
Não só adolescentes, crianças também. Temos crianças de 10, 11, 13 anos sendo presas. Elas saem para ir à escola e são presas. Em Silwan, um bairro próximo a Jerusalém, em 2008, foram registradas 1 mil detenções infantis.
Por que são presas?
Para desestimular seu futuro engajamento, aterrorizá-los desde cedo, criar trauma. Acho que é o único país no mundo que prende crianças contínua e sistematicamente.
No Brasil, algumas pessoas têm dificuldade de entender as causas e a realidade do conflito entre palestinos e israelenses e toda a opressão envolvida. E é comum no Brasil ouvir pessoas dizendo coisas simplistas, como 'por que eles não podem relaxar e ser amigos, conviver bem?'. Gostaria de te pedir pra explicar por que é impossível para um jovem palestino ser amigo de um jovem israelense.
Não sei como ser amigo de alguém que quer te matar, roubar sua casa, te expulsar da sua terra natal, não te enxerga como ser humano. Os israelenses querem que os palestinos se comportem como escravizados, limpe seu lixo, trabalhe em suas fábricas, em suas casas. Na sociedade israelense, aliás, o racismo não é só contra os palestinos, há diferentes níveis. Você tem os europeus, como os judeus brancos asquenazes, depois os judeus russos, os etíopes, os árabes, judeus que vieram de países árabes. Os palestinos estão por último,
Por isso há rupturas dentro da sociedade israelense, estão se voltando uns contra os outros. A primeira lei promulgada em Israel quando ocuparam a Palestina em 1948 já é muito racista. Ela oferecia e assegurava o direito dos judeus, em qualquer lugar do mundo, de morar lá e proibia os palestinos - que haviam sido expulsos havia duas semanas - de voltar.
Assim começaram os assentamentos e nossas terras foram roubadas e colocadas em um fundo chamado Fundo Nacional Judeu para serem distribuídas para novos imigrantes.
Você está fazendo uma campanha contra o muro que vem sendo construído por Israel na Cisjordânia. Por que esse muro é tão ruim?
O muro é um dos maiores passos dados pelo colonialismo na Cisjordânia, um antes da expulsão, a versão do século 21 da limpeza étnica. O ex-premiê Ariel Sharon disse em 1989 que "hoje em dia, não dá para colocar pessoas em caminhões e jogá-las para fora das fronteiras", como foi feito em 1948. "Mas dá para criar condições positivas para convencê-las a ir embora".
Esse muro representa as tais "condições positivas". Cercá-las com um muro, fragmentar a sociedade. Você não tem só Gaza, Jerusalém, Cisjordânia, mas Cisjordânia do Norte, do Meio, do Sul, do Leste, do Oeste. Então, mesmo se você for palestino e morar a Cisjordânia, não pode se comunicar com seu vizinho, seus amigos.
Principalmente depois do 7 de outubro, usam a guerra em Gaza para consolidar esse apartheid colonial. Não podemos usar mais nossas rodovias principais como queremos, há colonos armados lá, pontos de controle para todo lado e você pode levar um tiro a qualquer hora.
Os índices de violência na Cisjordânia cresceram muito?
Cresce todos os dias, ontem seis pessoas foram mortas em Jenim. No dia anterior, foram quatro em Ramallah, dois ou três dias, outras seis pessoas em Jenim. Morreram 14 pessoas em Tulkarem uma semana antes. Do dia 7 de outubro até hoje, mais de 600 palestinos foram mortos.
Eles estão matando pessoas todos os dias. Todas as comunidades beduínas estão fora de alcance, isoladas e sendo eliminadas com o fim de, até agora, 26 delas.
Os colonos não têm medo da lei, de serem responsabilizados?
A polícia os apoia, receberam 30 mil metralhadoras após o 7 de outubro. Estamos falando de mais de 60 mil colonos muito bem organizados, militarizados, treinados, que estão servindo ao Exército israelense. São o braço armado do governo. Legalmente, o governo demoraria mais, teria que passar por todo um processo legal, justificar o confisco com provas. Os colonos apressam o processo. Eles vão até as comunidades armados, expulsam as pessoas e se apropriam da terra.
Jamal, um dos grupos que facilitou a sua vinda ao Brasil foi o Vozes Judaicas pela Libertação, coletivo formado por judeus que se opõem à ocupação e ao governo de Israel. Eles também têm uma pergunta para você: "Como um grupo de judeus que entende o judaísmo como uma tradição de igualdade, justiça, união e oposição à violência, nós apoiamos o BDS: Boicote, Desinvestimento e Sanções como importante ferramenta de justiça social, sem ligação com o antissemitismo ou o ódio aos judeus. Mais importante, vislumbramos um futuro em que essa tradição sirva como uma base sólida para o mundo em que vivemos, e não apenas como um conceito abstrato honrando a ideia do nosso excepcionalismo. Boicote e desinvestimento são práticas não violentas que visam desmantelar o apartheid. Como um exercício de futurologia, além da tarefa essencial de minar empresas e políticas cúmplices do genocídio e da colonização palestina, é possível sonhar uma vida naquele lugar baseada na coexistência e coabitação, na sua opinião?"
Sabe, meu pai me dizia que, antes de 1948, havia judeus palestinos que viviam conosco. Durante o Shabat, como eles não podiam acender o fogo, os palestinos acendiam e cozinhavam para eles. Historicamente, morávamos juntos, muçulmanos, cristãos, judeus, na Palestina, como irmãos, camaradas, vizinhos.
Até que o sionismo veio e destruiu esse mosaico de relações. Nosso problema não é com os judeus, mas com o sionismo como ideologia colonialista, que infelizmente usa a roupagem do judaísmo. Os palestinos hoje estão prontos para viver juntos sob um único Estado, com igualdade entre as pessoas como era antes de 1948. O que nos aproxima é a nossa humanidade. Pessoalmente, sou contra ter dois Estados. Não é uma solução.
Por que não?
Não é justo. Eu, como um palestino que sacrificou, nos Acordos de Oslo, 78% da minha terra originária para ter dois Estados, o meu na Cisjordânia, nos 22%. A parte mais bonita, fértil e rica da Palestina sob controle deles. A Cisjordânia é montanhosa, com clima semiárido e Gaza fica no litoral. Mas sacrificamos até isso para conseguir viver lado a lado. Mas o que aconteceu no fim? Fomos perseguidos até dentro dos 22% e criaram para nós um sistema colonial de apartheid.
Portanto, o problema está na mentalidade e essa é uma das responsabilidades do povo judeu consciente da situação, que está se posicionando agora e somos muito gratos por isso. Nós os consideramos nossos companheiros de luta.
Em relação ao movimento BDS, é possível medir o quão eficaz tem sido quanto aos danos que tem causado aos interesses israelenses em todo o mundo até o momento?
A primeira movimentação palestina para o BDS começou em 2005, e a razão pela qual isso aconteceu com rapidez foi o muro do apartheid. Nossa resposta como palestinos é convocar o mundo inteiro para se solidarizar, trabalhar em conjunto para pôr fim a essa atrocidade.
O BDS foi criado com base nos direitos humanos. Três que queremos alcançar e que irão resolver as questões da ocupação em 1967, da discriminação racial contra palestinos em 1948, e do direito de retorno para os refugiados palestinos. O que chamam de conflito mas não é um, mas guerra genocida.
Netanyahu parece estar, neste momento, perto do fim de seu mandato, enfraquecido internamente e externamente. Se seu governo terminar em breve, o que você acha que irá substituí-lo? Um governo extremista de direita ou há alguma esperança de que os israelenses mudem de direção e instalem um governo de direita menos brutal e violento?
O problema é que o atual governo fascista e fanático de Israel faz o mundo achar que a oposição em Israel seria a "pomba da paz" ou uma esquerda progressista que realmente quer a paz e morreria por isso. Mas não.
O conflito em Israel se dá entre estes dois lados: o liberalismo sionista que se identifica e se vincula mais à "questão liberal e branca" e quer cooperar com o estilo da política europeia e estadunidense por um lado. E do outro lado, a ideologia de direita de grupos fascistas que estão no poder agora, na pessoa de Smotrich, Ben-Gvir, Netanyahu e outros.
Eles não ligam para o que os EUA e a Europa vão falar deles, só querem atingir seus objetivos, dizer que a terra é deles e todo o resto deve desaparecer. Não podemos esquecer que os massacres com o maior número de mortos em Gaza foram feitos pelos sionistas liberais. Estima-se que 80% da sociedade israelense se inclina à direita. Foi assim que os grupos fascistas chegaram ao poder. A chamada esquerda desapareceu de Israel. Você tem antissionistas e anticolonialistas, mas são pouquíssimos.
Por que isso ocorreu?
Eu não sei. A máquina sionista israelense foi capaz de aterrorizar a população israelense o tempo todo, criando essa espécie de paranoia de que o futuro deles está totalmente ameaçado e que serão mortos, eliminados e jogados ao mar. É assim que eles mobilizam a sociedade israelense para sentir ódio.
São criados em uma cultura de ódio contra os palestinos e outros da região. Tudo isso para que possam atingir seus objetivos. Mobilizam o povo para que se unam contra os palestinos e árabes, porque estão amparados pelos mais poderosos, como os EUA. Os países imperialistas que compõem a Otan e têm interesse na região para sustentar esse regime querem que Israel continue dominando a área, não para entrar em harmonia ou ser parte da região, mas dominar. Eles não se sentem parte, dizem que se identificam com a Europa.
Para encerrar, como os brasileiros poderiam ajudar os palestinos, demonstrar solidariedade à causa?
Só agora que temos um genocídio, as pessoas veem a realidade. O mais importante é parar o genocídio e isolar Israel, desfinanciar, pressionar todos os projetos em curso entre Israel e o Brasil. Temos muito respeito pelo governo brasileiro, Lula é amigo dos palestinos, mas ainda há contratos militares. É preciso parar, pelo menos, a cooperação militar, os projetos com a Elbit Systems, com a indústria israelense.
Os brasileiros poderiam exigir que seu governo gastasse esses milhões de dólares com o povo, não enviar para Israel. Eles só vão entender quando ouvirem que não podem mais fazer parte da comunidade internacional.
Edição: Martina Medina