O Supremo Tribunal Federal (STF) descriminalizou o porte de até 40 gramas ou seis plantas fêmeas de cannabis, concluindo na tarde desta quarta-feira (26) o julgamento de repercussão geral que durou mais de dez anos.
Nas teses firmadas, o tribunal afirma que a substância segue proibida no país e que as autoridades policiais devem realizar a abordagem de quem for flagrado consumindo maconha. A diferença é que, a partir de agora, não haverá consequências no âmbito criminal.
Dessa forma, o novo entendimento do STF não legaliza a maconha no país. De acordo com o entendimento, a Corte considera o porte de maconha um ilícito, ainda que para consumo pessoal, como definido pelo Legislativo. A decisão do tribunal apenas modifica a definição natureza da ilicitude, antes considerada de natureza criminal, e agora administrativa.
"Não significa que você pode sair fumando na rua, porque a polícia ainda vai poder te abordar, fazer a apreensão da substância e te notificar. Ainda pode, por exemplo pagar multa. Tem municípios que inclusive, cobram uma multa bastante alta para o caso de pessoas que são pegas consumindo droga na rua", alerta o advogado e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), Bolívar Kokkonen dos Santos.
Ainda de acordo com o novo entendimento, a presunção de que a pessoa é apenas usuário é relativa, já que a autoridade policial pode concluir que uma pessoa que porta quantidade inferior a 40 gramas ou 6 plantas seja traficante, caso existam outras evidências disso, como o porte de balança, variedade de tipos ou mesmo contatos realizados com usuários e traficantes.
O STF também determinou o descontingenciamento do Fundo Nacional Antidrogas (Funad) e proibiu novos contingenciamentos para que os recursos sejam efetivamente aplicados em ações educativas e de acolhimento aos usuários.
A Corte decidiu ainda que o Ministério da Saúde, a Anvisa, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, além dos Tribunais e o Conselho Nacional do Ministério Público devem adotar de medidas para permitir o cumprimento da decisão tomada pelo plenário. E estabeleceu a necessidade de criação de um protocolo próprio para a realização de audiências envolvendo usuários dependentes.
Avanços
Para Gabriel Sampaio, diretor de Litigância e Incidência da ONG de Direitos Humanos Conectas, a fixação de uma quantidade é um instrumento contra a arbitrariedade.
"A fixação da quantidade não é definitiva para a classificação. Mas ela é um passo e um instrumento muito grande em defesa de usuários contra qualquer tipo de arbítrio", destaca o advogado, afirmando ainda que a decisão do STF deverá servir de parâmetros para outros agentes públicos tomem decisões no mesmo sentido.
Na mesma linha, Bolívar Kokkonen opina que o estabelecimento de um parâmetro pode contribuir para um maior acesso a tratamentos médicos a partir de substâncias da cannabis, algo que já é permitido, sob regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
"O uso medicinal não é crime [no Brasil], mas a legislação, a regulamentação da Anvisa não permite ainda a produção em solo nacional do medicamento", disse o advogado, em referência à possibilidade do porte de até seis plantas para consumo próprio.
No entanto, o advogado pondera que para a produção de insumos seria preciso estabelecer uma política nacional com impacto mais significativo, já que a quantidade estabelecida pelo STF pode ser insuficiente.
Nos votos de vários ministros favoráveis à descriminalização, houve menção aos efeitos do atual modelo, como o encarceramento em massa, sobretudo de jovens, negros e pobres. Para Kokkonen, a medida altera essa realidade, mas não de maneira significativa.
"Não é uma guerra às drogas, é uma guerra contra pessoas negras, jovens e periféricas. Então a luta antiproibicionista continua. A decisão do STF não altera de maneira significativa o problema do proibicionismo do Brasil", analisou.
Como era
Embora hoje a legislação brasileira não preveja pena de privação de liberdade para usuários, antes da decisão do STF uma pessoa flagrada com poucos gramas de maconha era encaminhada à delegacia, onde era registrado um auto de flagrante com o registro na ficha criminal.
Esse registro fica disponível nas declarações de antecedentes penais e, em caso de reincidência, poderia provocar a perda da guarda de filhos e dos poderes políticos.
Outro fator questionado durante o julgamento é a discricionaridade do ato de detenção, já que cabe à autoridade policial definir, a partir de parâmetros vagos, quem é usuário e quem é traficante. Segundo os ministros, isso, somado às desigualdades estruturais da sociedade, tem provocado situações de absoluta arbitrariedade.
"O negro de 18 a 26 anos, analfabeto, é ele é condenado com 20 gramas. O branco, [com] curso superior, mais de 30 anos, com 57 gramas", disse o ministro Alexandre de Moraes, ao fazer uma defesa enfática da fixação de parâmetros. O magistrado citou estudos que demonstram que em 72% dos casos de condenação por tráfico de drogas, o porte de pequenas quantidades e o relato policial foram as únicas provas apresentadas.
Reações
Na noite desta terça-feira (25), após a formação de maioria no plenário do Supremo, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou que a decisão da Corte seria uma "invasão de competência" sobre o Poder Legislativo.
"Eu discordo da decisão do STF. Já falei mais de uma vez sobre isto: uma descriminalização só pode se dar através do processo legislativo, e não por uma decisão judicial. Há razões inclusive expostas nesse sentido", disse Pacheco.
No início da sessão desta quarta, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, rebateu as críticas sobre uma suposta incompetência do STF para fixar os parâmetros.
"Quem recebe os habeas corpus que envolve as pessoas presas com drogas é o Supremo Tribunal Federal. E, portanto, nós precisamos ter um critério que oriente a nós mesmos. Em que situações se deve considerar tráfico em que situação se deve considerar o uso. Portanto, não existe matéria mais pertinente à atuação do Supremo do que essa, porque cabe ao Supremo manter ou não uma pessoa presa, como cabe aos juízes de primeiro grau", defendeu.
Senadores e deputados federais criticam a medida por considerarem um exemplo de "ativismo judicial" e de usurpação de poderes próprios ao Legislativo.
Quem também reagiu à decisão do Supremo foi o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que formalizou, na noite de ontem, a criação da comissão especial que irá analisar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45/2023, conhecida como PEC das Drogas.
A proposta criminaliza a posse e o porte de drogas sem autorização e em qualquer quantidade, chocando diretamente com o entendimento firmado pelo STF. A medida já foi aprovada no Senado e recebeu aval da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados no último dia 12.
Para Bolívar Kokkonen dos Santos, a aprovação da PEC, com a inclusão da criminalização do usuário na Constituição Federal poderia invalidar a decisão tomada pelo STF. No entanto, ainda haveria uma análise de constitucionalidade da emenda aprovada, caso o Supremo seja provocado a fazê-lo.
Parlamentares contrários à PEC argumentam que o texto modifica cláusulas pétreas da Constituição Federal, que somente podem ser modificadas para a ampliação de direitos, e não para restringi-los.
Nas redes sociais, o deputado Henrique Vieira (PSOL-RJ) comemorou a decisão e rebateu as críticas sobre um suposto "ativismo judicial" por parte do STF.
"O Supremo apenas cumpriu seu dever e não está legislando no lugar do Congresso, nem cometendo abuso de autoridade. Ainda estamos longe de encontrar soluções ideais, mas esse é um passo importante para diminuir injustiças e combater desigualdades em nosso país", escreveu.
Edição: Thalita Pires