A primeira secretaria municipal de meio ambiente, em Porto Alegre, a primeira lei para controlar os agrotóxicos e o mais avançado código ambiental do Brasil, no Rio Grande do Sul. Boa parte desse pioneirismo se deve à Associação Gaúcha de Proteção do Ambiente Natural. O advogado e ambientalista Caio Lustosa, 90 anos, é o último dos históricos da Agapan, fundada por José Lutzenberger, Augusto Carneiro, Hilda Zimmermann e outros desbravadores em 1971 no auge da ditadura.
Vice-presidente daquela que era, então, a mais conhecida organização de combate à pilhagem ambiental do país, Lustosa foi também o primeiro vereador com uma plataforma ecológica e secretário municipal do meio ambiente da capital gaúcha. Parte de sua jornada está descrita em Luta Ambiental e Cidadania, livro que escreveu com a publicitária Eva Benites.
Retirado do front de batalha, continua militante debatendo a devastação da cidade e do estado, decorrência da ação ou inação dos gestores que não ouviram as advertências feitas lá nos anos 1970 sobre os riscos do assalto à natureza, exacerbado nos últimos anos pelo protagonismo dado ao mercado nos rumos ambientais de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul.
BdF RS: Em 1989, quando assumes a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, de Porto Alegre, qual era a tua proposta?
Caio Lustosa: O meu lema era "Contra o poder da poluição e a poluição do poder". Fui apoiado pelo pessoal da Agapan e do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), do Jair Krischke.
Foi a primeira secretaria de meio ambiente do Brasil?
Foi. Criada em 1976.
Quando te elegeste vereador?
Em 1982. Fui o primeiro vereador com uma proposta ecológica. Fiquei de 1983 a 1988. E, depois, em 1989, o [então prefeito] Olívio [Dutra] me chamou para ser secretário do meio ambiente.
E te elegeste por qual partido?
Pelo antigo MDB. Naquele tempo, o MDB era um frentão. Tinha comunistas que nem o Lauro Hagemann, a Jussara Cony...
E no período do Olívio...
Não houve enchente. Mas estávamos atentos à questão. Foi a primeira vez em que se falou em áreas de risco. Tive um coordenador na SMAM, o engenheiro, Volney Zanardi que, depois, chegou a ser presidente do Ibama. Sempre tivemos uma visão interdisciplinar. Então, fizemos um trabalho de levantamento das áreas de risco na cidade, principalmente dos morros. Houve uma atuação dos diversos órgãos do município. Não era só a SMAM. Era o DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), o DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana)...
O extinto DEP.
Fizemos um trabalho para evitar os desmoronamentos. Outra coisa que nos preocupou muito foi a arborização do município. Inclusive foi nessa época em que o Olívio criou o parque Chico Mendes.
Foi na tua gestão?
Sim, na zona Norte. Lá não tinha nenhum parque. Foi o primeiro parque dirigido àquela população da periferia. Os parques que existiam, a Redenção e o Marinha eram mais para a classe média e a elite. E nós atentamos muito para isso, para a questão do parque Chico Mendes. E de outras áreas.
És fundador da Agapan?
Entrei logo depois. Nos anos 1960, eu me entrosei com essa questão ambiental após o problema da instalação da Borregaard [indústria de celulose da Noruega implantada em Guaíba em 1972, junto ao rio, e cujo mau cheiro que expelia motivou campanha massiva em Porto Alegre].
Ah, ali começou a luta mais ambiental com o [José] Lutzenberger...
É, aí eu me integrei. Primeiro entrei solitário, como advogado, em uma ação criminal contra a instalação da Borregaard. Foi a primeira ação.
Era uma ação criminal?
Criminal contra os diretores da Borregaard. Inclusive um deles era irmão do [futuro presidente Ernesto] Geisel. Era um engenheiro, Bernardo Geisel, na verdade, era um dos acionistas da fábrica norueguesa, assim como Fernando e Luis Henrique Geisel, ambos sobrinhos de Ernesto Geisel, além do ex-governador gaúcho Peracchi Barcelos.
Em que áreas advogavas?
Sempre advoguei para sindicatos, para o pessoal das periferias.
Mas essa foi em teu nome?
Foi em meu nome. Uma ação criminal que acabou não dando em nada. O tribunal aqui entendeu que a poluição era de Guaíba, mandaram o processo para [a cidade de] Guaíba e lá morreu. Inclusive houve o episódio do comandante do 3º Exército [general Breno Borges Fortes] que, na época, saiu do comando para ser diretor da Borregaard. Inclusive com um desfile de tropas no dia que ele assumiu. Botaram ele para garantir a coisa. Ganhava dez vezes mais como diretor do que no quartel...
Aí entrou a Caldas Júnior [companhia editora dos jornais Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã] na discussão...
É, eu tive muito apoio do doutor Breno Caldas [dono da Caldas Junior]. Eles publicava as minhas petições na íntegra no Correio...
Breno Caldas também tinha interesse por conta do fedor que atingia seu haras em Belém Novo, não é?
Os cavalos deles sentiam...
E acabou com a vitória do movimento ambientalista, não? A história da Borregaard.
Não, acabou não.
O cheiro acabou, pelo menos.
É, mais tarde o Lutz foi para lá (contratado como consultor da Riocell, sucessora da Borregaard). Foi para lá e fez um acordo de paisagismo com eles. Foi acusado de ter maneirado. Inclusive a Magda Renner – que era nossa companheira, que tinha sido de direita e até apoiou a ditadura mas depois evoluiu – ela se virou para o Lutz e disse assim: "Tu nos entregaste para os inimigos".
Numa reunião da Agapan?
Não me lembro onde ela disse isso mas sei que disse.
Magda Renner era da ADFG, a Ação Democrática Feminina Gaúcha que, na origem, surgiu para combater o governo João Goulart e que, nos anos 1970, passou a lutar pelo meio ambiente...
No início, elas participaram do golpe [de 1964]. Depois foram evoluindo. Ela e a Giselda Castro. E outras mulheres da elite. Tanto é que, certa feita nos anos 1980, a Magda foi ameaçada de processo pelo então diretor-presidente da Volkswagen, o Wolfgang Sauer.
Tinha havido um incêndio na Amazônia em área que pertencia à Volkswagen, junto ao rio Cristalino, com milhares de hectares. Meteram fogo. E a Magda se posicionou. Denunciou para o próprio Geisel, que era o presidente na época. E daí o Sauer ameaçou ela de processo por injúria e difamação. Então, a família Renner me convocou para uma reunião. Estavam temerosos que o Sauer processasse a Magda. Aí eu tranquilizei, dizendo: "Não, quem cometeu o crime foram eles. Ela se rebelou contra o crime".
É uma tese que sustentei mais tarde: a legítima defesa ambiental. Ninguém tinha levantado isso. Sustentei em um processo que o [ex-governador] Jair Soares moveu contra o Lutz.
Na época, o Jair era secretário de saúde e estavam fazendo uma aplicação de veneno em Porto Alegre. Jogavam o herbicida Paraquat [hoje de uso banido do Brasil por sua alta toxicidade].
O Lutz assistiu aquilo e chamou o Jair de "filho da p***". Depois, houve outra defumação na rua do Lutz, a Jacinto Gomes, no Bom Fim, e ele chamou de novo o Jair de filho da puta. E o Jair entrou com processo contra ele.
Chamou de filho da p*** de novo?
É, fui advogado de defesa do Lutz. Sustentei que o criminoso, no caso, era o secretário que mandava fazer aquele tipo de aplicação. Arrolei como técnico, o doutor Milo Raffin, uma criatura que me deu muito apoio. Era um químico, engenheiro civil, da Corsan [Companhia Riograndense de Saneamento]. No mérito do processo, eu tentava justificar essa questão. E o Millo Raffin foi testemunha do Lutz. Mas aí eles acabaram o processo com a minha intervenção, não sei exatamente...
Era um processo por injúria?
É, injúria, difamação, calúnia, essas coisas. O doutor Milo foi uma pessoa... Ele e o [geneticista] Flávio Lewgoy foram dois...
Foram testemunhas?
Não. Com o Flávio atuei mais no projeto da Lei Estadual dos Agrotóxicos, do [deputado] Antenor Ferrari. O Flávio me ajudou muito nisso. E o Raffin me acompanhou tanto na Câmara quanto na SMAM sem nunca receber um tostão. E foi vítima de demissão da Corsan. Denunciava a poluição do Guaíba. E daí a Corsan, na época dirigida pela ditadura, afastou ele. Aí entrou na Justiça trabalhista. E sabe quem foi a juíza que decidiu a seu favor? A Weber, essa que foi ministra.
Rosa Weber, ex-ministra do STF?
Rosa Weber. Uma sentença maravilhosa. Ela dizia que, inclusive, estava arriscando a posição dela e tudo, mas deu o ganho de causa ao Millo e mandou reintegrar na Corsan. E ele se aposentou. Morreu mais ou menos moço, um ano depois. O governo Olívio Dutra concedeu a ele o título de cidadão emérito de Porto Alegre.
Lutz falou alguma vez do Henrique Luiz Roessler para ti?
Falou muito. Era um dos ídolos dele, o Roessler.
Porque pouca gente sabe disso, mas o Roessler é dos anos 1950. Quando nem existia a palavra ecologia, ele já era um militante ambiental, tipo exército de um homem só.
Ele era de São Leopoldo, era fiscal do antigo IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), que hoje é o Ibama.
Vendo este quadro de agora por que você acha que a gente regrediu tanto? Afinal, o Rio Grande do Sul teve a secretaria do meio ambiente que foi pioneira no Brasil.
É, Roberto Eduardo Xavier foi o primeiro secretário da Smam, criada em 1975, no governo do prefeito Guilherme Vilela.
Depois, teve a Lei Estadual de Agrotóxicos, que é pioneira também. Surgiu a Agapan que se tornou a entidade ambientalista mais conhecida no Brasil. Houve a luta contra a Borregaard. Lutzenberger virou uma figura nacional, foi ministro no governo Collor. E por que temos agora um processo de destruição de tudo isso?
Essa questão ambiental surgiu no início dos anos 1970 com o James Lovelock, que era um cientista inglês. E o Lutz se abeberou muito na chamada Teoria da Gaia.
Sim, é o cara que formulou essa teoria.
Que é entender o planeta como um conglomerado tanto geológico como vegetal, animal, humano. Que é uma intersecção de todos esses fatores. Daí o Lutz, o Edgar Morin, na França, e outros se posicionaram. O Edgar Morin tem até uma obra que se chama Ciência com Consciência, onde assumiu uma postura ambientalista.
E tem aquele livro famoso, Primavera Silenciosa, da Rachel Carson. Também naquele momento – a Agapan é de 1971 – era muito difícil falar de outros temas. Então, o meio ambiente foi uma espécie de desaguadouro das insatisfações com a ditadura.
É. Era praticamente o único fórum... E eles botavam espiões lá nas nossas reuniões da Agapan. Depois, o governo federal até criou a Sema [Secretaria Especial do Meio Ambiente, implantada em 1974], onde o secretário era o Paulo Nogueira Neto.
Agora não tens militância, não?
Tenho. Agora, por exemplo, você está me entrevistando.
Sim. Mas tu estás relacionado ainda com a Agapan e tal?
Estou com 90 anos.
Noventa? Estás bem para 90.
Na reta final.
Lembro que nos encontramos na frente da Assembléia Legislativa em uma manifestação contra o governo Yeda Crusius. Ela queria fazer negócio com aquela área atrás do Asilo de Mendigos, defronte ao Beira-Rio. Havia ideia de fazer um monte de edifícios ali mas o pessoal da vila Cruzeiro se levantou contra. Lembro que perguntei como estavas e tu respondestes: "Batendo em retirada e com pouca munição".
É, uma frase daquele líder revolucionário, o Honório Lemes: "Batendo em retirada e com pouca munição mas lutando sempre".
Como vês essa situação do Rio Grande do Sul hoje? Quem é que tem a culpa no cartório nessa história toda? É muita gente?
Todos e ninguém. Houve um descaso pelas medidas que podiam tornar paliativas a situação. No controle das bombas, dos diques e tudo. Aqui em Porto Alegre, uma das coisas erradas foi a extinção do DEP. Colocaram o DEP dentro do DMAE. Os técnicos do DEP até hoje não se fecham com os do DMAE. É um descaso total no controle. É isso que aconteceu. Houve uma falta de monitoramento da situação.
Já no ano passado, aconteceu algo horrível no Vale do Taquari. E agora se repetiu. O pessoal fala muito que isso tem a ver com a derrubada das matas ciliares, com o uso de agrotóxicos...
É, desrespeito às áreas que não deviam ser construídas, construções na beira de rio, tudo isso. Aqui nas nossas ilhas, por exemplo, é um flagelo, porque o pessoal fica à mercê dos alagamentos.
Como é que você vê o mundo todo hoje? Está pior do que você imaginava?
Agora mesmo deu uma enchente lá em Santos, em São Paulo. Em Minas também. É geral. Na Europa também está dando problema. Nos Estados Unidos nem se fala.
No Canadá, teve floresta devorada por fogo. Na Austrália e nos Estados Unidos também...
Fogo e água. É um horror isso aí.
Você acha que dá para a gente dizer que os ecologistas, há 50 anos, já estavam dando o recado que não foi ouvido?
É bem isso. Nos anos 1950, eu era partidário do desenvolvimento econômico. Nem se falava em sustentabilidade.
Eras um desenvolvimentista...
É. Depois eu reneguei isso aí, como várias pessoas, vários pensadores. Tem que mudar o modelo, a dominação. Por exemplo, Porto Alegre. Quer ver? Aqui perto, o Morro do IPA. Quando eu estudei ali, de 1946 a 1952, só tinha aquela construção do IPA [Instituto Porto Alegre, que fechou as portas neste ano].
O resto era tudo mata...
Hoje aquilo é um paliteiro, cheio de construções. A lei impede a construção em topo de morro mas nada é obedecido. Esses prefeitos todos aí licenciam essas obras. Agora mesmo queriam fazer um espigão ali ao lado do Museu Júlio de Castilhos, na rua Duque de Caxias. A Justiça barrou. O Internacional, por exemplo, está numa área alagadiça.
E o Grêmio também.
E o Grêmio também. E depois ficam reclamando 'ah, isso é coisa dos céus, castigo de Deus'. Deus não tem nada a ver com isso. O que tem que mudar é o modelo urbanístico. A [construtora] Melnick fez um espigão na [avenida] Protásio Alves, a 100 metros daqui. São dezenas de apartamentos. Inclusive estão ao léu pois não se consegue alugar nem vender. Esse sistema...
O sistema é muito materialista, no pior sentido da palavra?
Esse neoliberalismo está levando o mundo à breca. Isso aí tem que superar, tem que trocar de foco. A base está aí.
Ficaste surpreso com o que aconteceu no Rio Grande do Sul?
Não, a gente já previa que alguma coisa ia dar errado.
Que outra memória você tem da Agapan? Havia reuniões semanais?
Semanais. Na rua da Praia, na Associação dos Orquidófilos.
E quantas pessoas juntavam no início? Em 1971, por exemplo, você já estava lá. Trinta pessoas?
Às vezes mais. E sempre vigiados pelo sistema.
Vigiados? Como é que era essa vigilância?
Os penetras iam lá para vigiar. Apareciam do nada. O cara aparecia e a gente desconfiava dele.
Você chegou a ser preso alguma vez?
Não. Eu não sei se eles me... Porque eu fui secretário de Câmara no Tribunal de Justiça, né? Eu acho que isso aí...
Olhas a situação de hoje com pessimismo, então?
Eu me guio por aquela frase do Ariano Suassuna que dizia que ele era um pessimista esperançoso. Eu sou o pessimista esperançoso. Você é aposentado em alguma coisa?
Sou jornalista aposentado porém na ativa. É mais ou menos como um pessimista esperançoso.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira