"Criança não é mãe", "Estuprador não é pai". O incrivelmente óbvio precisou ser repetido à exaustão nos últimos dias. Um Congresso Nacional que materializa o ódio de parte da sociedade às mulheres aprovou a urgência da votação do PL 1904, projeto do deputado Sóstenes Cavalcante (PL) que propõe equiparar o aborto ao crime de homicídio mesmo em caso de estupro de vulneráveis, o que faz com que a pena para quem aborta possa ser maior do que para quem estupra. Sendo que a legislação atual já é atrasada e cruel com as mulheres que abortam.
No Brasil, o aborto é permitido em casos de estupro, de risco à vida da mãe e de fetos anencefálicos, sem previsão de um tempo máximo da gestação para que seja realizado. O procedimento é punido com penas que variam de um a três anos de prisão quando provocado pela gestante; de um a quatro anos, quando médico ou outra pessoa o fizer com o consentimento da gestante; e de três a dez anos, para quem provocar o aborto sem o aval da mulher.
A legislação proposta retrocede na lei já tão restrita e faz com que nós, mulheres, tenhamos negados os diretos conquistados por nossas avós, como lembrou a deputada Benedita da Silva em entrevista ao programa Bem Viver, do Brasil de Fato.
Importante lembrar que Benedita é evangélica, mas com posições opostas à bancada que propôs e defendeu o que, aqui no Brasil de Fato, vamos chamar de PL do Estupro. Projeto este que, se aprovado, vai afetar principalmente crianças vítimas de violência sexual que demoram para entender a situação.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em seu anuário de 2022, 60% dos registros de violência sexual tiveram crianças menores de 13 anos como vítimas, 64% dos crimes acontecem dentro de casa e 64% dos autores eram familiares. Os dados deixam óbvio a quem o PL protege e quem condena.
O próprio presidente Lula afirmou ser pessoalmente contra o aborto, mas qualificou o PL do estupro como insanidade. O debate do PL virou campo fértil para parlamentares da extrema direita fundamentalista, que transformaram as sessões de discussão em cenas que podiam facilmente ter acontecido em séculos passados.
Chama nossa atenção também a quantidade de desinformação gerada pelos próprios parlamentares. O senador cearense Eduardo Girão (Novo) chegou a comentar em uma rede social que "crianças estão sendo assassinadas com injeção de cloreto de potássio no coração". De nossa parte, a resposta à desinformação tem sido uma intensa cobertura do tema com análises e ao ouvir, sobretudo, fontes mulheres, aquelas que serão diretamente afetadas pela decisão.
Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitiram posições pedindo o arquivamento do PL e alertando que, ainda que aprovado, o tema deve ser submetido ao Supremo Tribunal Federal por meio de uma ação de controle de constitucionalidade.
Por outro lado, a reação das mulheres nas ruas e nas redes foi rápida e está pressionando os congressistas. Já foram dezenas de atos nos últimos dias e há manifestações convocadas para os próximos. O Brasil de Fato acompanhou alguns desses atos reportando das ruas em cidades como Recife, Porto Alegre, Curitiba e São Paulo.
No ato da capital paulista, a professora Márcia Carvalho sintetizou a tônica de quem optou por estar ali: "Temos que derrubar esse PL. Não podemos retroceder dos direitos pequenos que já conquistamos. Todas as mulheres têm que estar nas ruas neste momento. Não dá para acreditar que os extremistas de direita estejam colocando isso em pauta com tanta coisa para resolver no país". Já na capital do Paraná, manifestantes denunciavam também os altos índices de casos de abusos sexuais que acontecem no Brasil todos os dias.
Na noite da terça-feira, o presidente da Câmara Arthur Lira anunciou uma comissão ampla que deve analisar o PL e disse que a votação deve ficar para o segundo semestre, depois de "ameaças" do autor da proposta que o tema seria um "teste" para o governo Lula e sua fidelidade aos evangélicos. A articulação do governo já havia anunciado que trabalharia para adiar a votação.
Os deputados querem testar um governo ao custo do encarceramento e da vida das meninas e mulheres brasileiras. Vale lembrar que Lira virou alvo das manifestações nas ruas e o #ForaLira tem ganhado corpo, já que o deputado também é identificado como inimigo dos direitos das mulheres.
Por fim, quero registrar que não tem sido uma cobertura fácil para nós, mulheres jornalistas. Ver e ouvir ameaças cotidianas aos nossos diretos, aos nossos corpos e às nossas vidas. À vida das mulheres brasileiras.
* Monyse Ravena é coordenadora de áudio e vídeo do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires