No Brasil, o aborto é autorizado por lei desde 1940 em casos de gravidez decorrente de estupro e risco à vida da gestante, bastando para isso o consentimento dela ou de seu responsável legal (Decreto-Lei nº 2.848, Art. 128).
Desde 2012, por entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), o aborto também é permitido em casos de anencefalia do feto – um tipo de má-formação congênita incompatível com a vida fora do útero e caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo.
Não há prazo limite para a realização do aborto nessas três situações.
As penas para gestantes que abortem fora dessas condições variam de um a três anos de reclusão. No caso dos que participam do aborto, quem ajudar a gestante com o consentimento dela está sujeito a pena de um a quatro anos de reclusão. As penas são maiores em casos não consensuais ou que tenham como consequência lesões graves ou a morte da gestante, podendo chegar a 20 anos.
Apesar das três hipóteses legais de aborto, é comum que crianças e mulheres nessas situações tenham o acesso ao procedimento dificultado.
Veja abaixo momentos em que o aborto avançou ou retrocedeu no Brasil.
2005: Proposta para descriminalizar aborto mobiliza conservadores
Em 2005, durante a primeira presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o governo criou uma comissão para elaborar uma proposta de revisão da lei que pune o aborto. Após ficar quase 15 anos parado no Congresso, o PL 1135/1991, que propunha a descriminalização da interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação, quase foi a votação.
A movimentação acabou contribuindo para a organização de setores conservadores contrários ao aborto. Desde então, diversas propostas para restringir o aborto legal ou bani-lo completamente tem tramitado na casa, sempre com o patrocínio da bancada evangélica. O tema também é frequentemente evocado em época de campanha eleitoral.
2012: STF descriminaliza aborto de anencéfalos
Em 2012, o STF decidiu, por placar de oito votos contra dois, pela descriminalização de abortos de fetos anencéfalos – considerados "natimortos cerebrais" por definição do Conselho Federal de Medicina (CFM) à época.
Até então, mulheres nessa situação estavam sujeitas a ter que levar uma gestação adiante contra sua vontade, mesmo sabendo que seus filhos, se viessem ao mundo, só sobreviveriam por poucas horas ou minutos. Decisões individuais na Justiça já autorizavam o procedimento desde 1989, mas em alguns casos a liminar só saía depois que as mulheres já tinham dado à luz e os filhos já estavam mortos.
"Nós consideramos que essa imposição de um prolongamento do sofrimento inútil dessa mulher viola a dignidade da pessoa humana. Nós sustentamos que esse é um momento de tragédia pessoal na vida da mulher. Algumas mulheres querem levar a gestação a termo, outras não querem. Cada um tem o direito de se comportar de acordo com seu sentimento e sua convicção. O Estado não tem o direito de tomar essa decisão pela mulher", argumentou à época perante o STF o advogado e professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Luís Roberto Barroso, que em 2013 virou ministro da Corte.
2012, 2022: Prazo para a interrupção da gravidez
Embora não exista um prazo limite para a realização do aborto legal, uma norma técnica do Ministério da Saúde publicada em 2012, durante o governo de Dilma Rousseff (PT) recomendava "limitar o ingresso para atendimento ao aborto previsto em lei com 20 semanas de idade gestacional" e orientava os profissionais de saúde a recusarem atendimento após as 22 semanas.
Nesses casos, segundo o documento, "a mulher deve ser informada da impossibilidade de atender a solicitação do abortamento e aconselhada ao acompanhamento pré-natal especializado, facilitando-se o acesso aos procedimentos de adoção, se assim o desejar".
Em 2022, último ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), orientação semelhante voltou a ser repetida em novo manual. O texto destacava que "todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido" – requisito que não existe na lei. Também limitava o aborto até 21 semanas e 6 dias de gestação, sob o argumento da "viabilidade fetal", e recomendando, depois disso, "a manutenção da gravidez com eventual doação do bebê após o nascimento".
O manual de 2022 chegou a ser retirado de circulação depois pelo governo Lula, mas o Ministério da Saúde acabou voltando atrás após repercussão negativa entre setores conservadores.
2016: Primeira Turma do STF decide por descriminalização do aborto até a 12ª semana
Em novembro de 2016, a Primeira Turma do Supremo decidiu pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto até a 12ª semana. Foi a primeira vez que a tese foi defendida na corte, mas o julgamento não teve efeito vinculante – ou seja, valeu apenas para o caso específico julgado à época.
Em reação à decisão, deputados articularam uma proposta para incluir na Constituição o conceito de proteção da vida "desde a concepção". Na prática, a mudança inviabilizaria qualquer interrupção de gravidez, mesmo nos casos hoje considerados legais.
A proposta está parada na Câmara desde 2017, mas deputados têm agido continuamente para tentar desenterrá-la.
Também em 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estendeu a decisão do STF que autorizava o aborto de fetos anencéfalos a outros casos de malformações incompatáiveis com a vida.
2020: Ministério da Saúde orienta médicos a acionar polícia em casos de estupro
Uma portaria de 2020 do Ministério da Saúde, à epoca sob a administração ultraconservadora do governo Jair Bolsonaro, passou a orientar médicos a informarem a polícia caso atendam mulheres que buscam interromper a gestação decorrente de estupro.
Uma primeira versão da portaria também obrigava os profissionais da saúde a oferecer às mulheres vítimas de estupro exames de ultrassom para ver o feto ou embrião antes de interrupção da gravidez, e exigia que fossem mantidas possíveis evidências materiais do crime de estupro, como fragmentos do embrião ou feto.
A medida, que foi revogada logo nos primeiros dias do governo Lula, foi criticada por especialistas por violar a previsão de sigilo em atendimentos de saúde e aumentar as chances de a mulher recorrer ao aborto ilegal.
Técnicos do governo Bolsonaro, porém, argumentaram em 2022 que a orientação aos profissionais de saúde para que notificassem a polícia estava amparada por lei de 2003 que instituiu essa obrigação nos casos "em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher".
Setembro de 2023: Ministra Rosa Weber vota favorável em ação para descriminalizar aborto até a 12ª semana
A ministra Rosa Weber votou favorável à descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (ADPF 442). A ação tramita no STF desde 2017, mas foi pautada no sistema eletrônico da corte por Weber para que ela pudesse dar seu voto antes de se aposentar do STF.
O julgamento da ADPF 442, porém, foi migrado depois disso para o plenário físico, e não tem data para acontecer.
Abril de 2024: Norma do CFM dificulta aborto ilegal
Resolução editada em abril pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) passou a proibir médicos de realizarem a assistolia a partir da 22ª semana de gestação. O procedimento, recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) nesses casos, evita que o feto seja retirado do útero com sinais vitais.
Com isso, médicos que realizassem a assistolia nas hipóteses legais de aborto ficariam sujeitos a punições administrativas e processos criminais.
A resolução foi especialmente criticada porque é nos casos de estupros de crianças e pré-adolescentes que a gravidez costuma ser detectada em um estágio já mais avançado. Além disso, vítimas de estupro não raro enfrentam constrangimentos e percalços ao tentarem interromper legalmente a gravidez. Isso atrasa o processo e leva muitas a abortarem depois das 22 semanas.
A norma do CFM foi suspensa liminarmente em maio por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, e motivou a ADPF 989, que visa garantir o direito ao aborto legal e seguro nos casos já previstos em lei.
Junho de 2024: Deputados querem punir vítima de estupro com pena maior que a do estuprador
Em reação à decisão de Moraes e à ADPF 989, a bancada conservadora no Congresso fez avançar um projeto de lei na Câmara que equipara a homicídio abortos realizados após a 22ª semana de gestação, com pena de 6 a 20 anos de prisão – mesmo em caso de estupro, feto anencéfalo ou risco à vida da gestante.
Se aprovado, vítimas de estupro que abortarem depois desse período estarão sujeitas a penas maiores que as de seus próprios estupradores (6 a 12 anos).
Especialistas apontam que crianças vítimas de violência sexual seriam as mais afetadas pela mudança na lei, já que, justamente por causa da pouca idade, é comum que a gravidez só vá ser percebida num estágio avançado.
Batizado por críticos de "PL do estupro", o projeto de lei é ainda um aceno do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), à base de deputados bolsonaristas que o elegeu em 2023.
Lira, que não vai poder disputar o comando da Casa de novo em fevereiro de 2025 e almeja uma vaga no Senado, quer eleger um sucessor fiel para manter sua influência sobre os deputados.