Rio de Janeiro

Coluna

Urbanização de favelas no Rio de Janeiro: uma agenda prioritária

Situadas em terrenos vagos nas áreas centrais, espalharam-se pelo território, sempre em proximidade a locais com oferta de oportunidades de trabalho e renda - Fernando Frazão/ Agência Brasil
Programas de urbanização de favelas necessitam ser colocados de forma permanente na agenda pública

Adauto L. Cardoso*, Samuel Thomas Jaenisch**, Luciana Ximenes***, Ivan Zanatta**** e Thais Velasco*****.

Favelas, loteamentos periféricos, conjuntos habitacionais precarizados e cortiços constituem o universo da moradia popular na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Loteamentos e conjuntos estão majoritariamente concentrados em áreas mais distantes do centro da capital, particularmente na Zona Oeste do município do Rio, na Baixada Fluminense ou na periferia da região Leste Fluminense.

Já as favelas estão distribuídas ao longo do território, com uma parcela expressiva inserida nas áreas mais centrais da metrópole, particularmente no município do Rio de Janeiro e de Niterói, embora desde os anos 1980 tenham também se espalhado pelos municípios da Baixada, mais próximos da fronteira do município polo.

As favelas têm estado presentes na paisagem da cidade desde o final do século XIX.

Originalmente situadas em terrenos vagos nas áreas centrais, espalharam-se pelo território, sempre em proximidade a locais com oferta de oportunidades de trabalho e renda. Assim irão se desenvolver em regiões de concentração industrial, como foi o caso da Maré, do Alemão e do Jacarezinho, ou próximo a áreas de moradia das camadas médias e superiores, que ofereciam e oferecem ainda possibilidades de trabalho nos setores de comércio e serviços.

Nessa crescente expansão, as favelas acabaram sendo responsáveis por abrigar, ainda que de forma precária, mais de 20% da população do município. Trata-se de um universo marcado pela heterogeneidade, em termos de tamanho e densidade, localizando-se em áreas mais densas e de encosta ou em terrenos planos em áreas mais distantes dos centros, muitas vezes suscetíveis à inundação. 

Se a localização em áreas de maior centralidade ou na proximidade de áreas de oferta de emprego torna as favelas mais atrativas, ao mesmo tempo esses territórios tendem a se caracterizar por um conjunto importante e diverso de precariedades habitacionais, tanto em relação às moradias quanto em relação ao assentamento como um todo. Essas características tornam as favelas territórios que precisam ser priorizados nas políticas públicas locais.

Entre as fragilidades, podemos destacar: condições precárias de saneamento básico; alta densidade construtiva; precariedade das edificações; adensamento intradomiciliar; infiltrações na fundação, paredes ou chão, acentuando a exposição das famílias às doenças respiratórias; pouca iluminação e ventilação natural, dada a morfologia de ocupação com edificações contíguas, em pequenos lotes, muitas vezes já apresentando vários pavimentos, com vias de acesso estreitas, o que também dificulta a circulação; situação fundiária também precária dado o não reconhecimento jurídico da propriedade da terra, dos logradouros e domicílios pela Prefeitura; e, como um processo que se torna cada vez mais significativo frente à emergência climática, a suscetibilidade de parcelas desses territórios a deslizamentos de encostas e alagamentos. 

Nesse sentido, as políticas e programas de urbanização de favelas necessitam ser colocadas de forma permanente nas agendas públicas, nas três esferas de governo, sendo a alçada municipal uma das mais estratégicas.

Essa priorização torna-se mais complexa tendo em vista a escala do problema na cidade do Rio de Janeiro. Se, em 1950, segundo os dados do Censo Demográfico, a população residente em favelas no município do Rio de Janeiro correspondia a 7% do total, o crescimento que se verificou dali em diante tomou contornos impressionantes. No início da década de 2020, o Sistema de Assentamentos de Baixa Renda da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro (SABREN) possuía em seu cadastro 1.018 favelas que totalizam 440.552 domicílios, com uma estimativa de quase 1.400.000 moradores. As favelas do Rio de Janeiro se caracterizam também por terem alta densidade demográfica, segundo dados do Instituto Pereira Passos (257 hab/ha) e por possuírem uma alta taxa de verticalização.

O desmonte das políticas de urbanização de favelas

Diferentemente da maioria dos demais municípios da região metropolitana, a cidade do Rio de Janeiro acumula um histórico de políticas voltadas para a urbanização e promoção de melhorias em suas favelas. Tais políticas consolidaram-se a partir da década de 1980, no contexto da redemocratização e de fim do regime militar, contrapondo-se aos intensos processos de remoção em massa e construção de grandes conjuntos habitacionais na periferia.

Desde esse período, alguns programas de urbanização de favelas foram implementados pelo Governo Estadual, mas o protagonismo evidente nesse campo de atuação vem sendo da Prefeitura Municipal. Em meados da década de 1980 foi criado o pioneiro Projeto Mutirão e, na década de 1990, iniciativas de maior escopo começaram a tomar forma. Durante o primeiro mandato de Cesar Maia (1993-1997) à frente da Prefeitura Municipal, foi criado o Programa Favela-Bairro, que previa obras de acessibilidade e saneamento, além da construção de equipamentos sociais e espaços de lazer em diversas favelas da cidade. 

O Programa Favela-Bairro teve continuidade nas gestões seguintes de Luiz Conde (1997-2000) e Cesar Maia (2001-2004 e 2005-2008), passando a ser considerado pelas agências de fomento e parte da literatura especializada como uma referência nacional nesse campo de atuação. Ele foi mantido no início da primeira gestão de Eduardo Paes (2009-2012) e posteriormente substituído pelo Programa Morar Carioca. A partir de 2007, a cidade passou também a receber um volume significativo de recursos do Governo Federal por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para investimento em obras de urbanização de suas favelas. 

A partir da gestão do Prefeito Marcelo Crivella (2016-2019), no entanto, foram interrompidos os programas voltados para as favelas cariocas, verificando-se um progressivo esvaziamento da organização institucional, centralizada na Secretaria de Habitação. Houve, inclusive, a aposentadoria de quadros técnicos responsáveis pelo desenvolvimento dos programas de urbanização de favelas anteriores, sem a sua substituição a tempo para que seu conhecimento fosse passado para uma nova geração.

Constata-se ainda a ausência de alocação permanente de recursos, o que acaba gerando deterioração das infraestruturas e dos equipamentos construídos nas favelas que passaram por processos de urbanização. Além disso, o agravamento da crise climática aliado ao progressivo crescimento e adensamento dos territórios populares agrava significativamente as situações de risco e vulnerabilidade dessas populações.

A crise sanitária e social decorrente da pandemia de Covid-19 mostrou também a precarização das condições de vida nesses assentamentos e a necessidade de que as políticas públicas para as favelas passem a incorporar a articulação com programas de saúde pública e ações de mitigação e adequação à mudança climática, com medidas de prevenção à ocorrência de desastres e situações de calamidade. Por fim, as avaliações das experiências de urbanização de favelas desenvolvidas em períodos anteriores, particularmente em relação ao PAC, deixaram lições e recomendações que precisam ser levadas em conta na retomada de novas políticas para as favelas.

Proposições

A importância e a gravidade das condições de vida dos moradores das favelas requerem a adoção de uma política pública que seja permanente e continuada, pensada enquanto uma política de Estado e não apenas como uma plataforma de governo, com planejamento a longo prazo que permita a previsibilidade das intervenções, com alocação regular e substantiva de recursos. Para isso é necessário, em primeiro lugar, investimento em capacidade institucional, com a contratação e formação de técnicos qualificados, escolha de gestores que tenham experiência no tema e investimento em construção e atualização de bases de dados que subsidiem de forma adequada as decisões técnicas e políticas.

O município do Rio de Janeiro tem um acúmulo importante na produção e gestão de dados sobre territórios populares e políticas urbanas.

Isso que pode e deve ser continuamente aprimorado, mas outros municípios da região metropolitana não dispõem dos mesmos recursos. O fortalecimento institucional deve ser pensado considerando a adoção de uma política amplamente participativa, tanto no âmbito do planejamento e das decisões de investimento, quanto em relação às intervenções nos territórios.

É fundamental que os municípios mantenham uma busca ativa por outras fontes, além dos recursos orçamentários próprios, colocando-se em condições para a possibilidade de captação junto aos outros níveis e órgãos de governo ou a organizações internacionais de fomento.

A (re)construção de políticas de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro deve levar em conta, de forma constitutiva, a criação de instâncias de participação popular, com autonomia e amplo acesso à informação, avançando no sentido do desenvolvimento de soluções de urbanização que contemplem modelos de cogestão, incluindo com poder decisório as organizações locais dos territórios.

A complexidade dos problemas locais e, consequentemente, das soluções de projeto e dos processos de intervenção a serem adotados, exige a ampliação e o aprofundamento de intervenções baseadas na intersetorialidade e na transversalidade, articulando de forma estrutural as ações de urbanização com as intervenções de preservação ambiental, de saúde pública, de regularização fundiária. Nesse sentido, é fundamental que o trabalho técnico social seja privilegiado com investimentos adequados e com a formação de equipes que tenham autonomia ampla em relação às empresas contratadas, ao contrário do que ocorreu na implementação das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-Favelas), estando presentes no território durante as etapas de elaboração de projeto, de construção e no pós-obra.

Considerando o tamanho da demanda por urbanização de favelas existente na cidade, a complexidade das soluções necessárias e os limites dos recursos para as intervenções, é importante que haja uma organização a partir de um plano que preveja ações de curto, médio e longo prazo. Esse plano deve ser elaborado de forma participativa, incluindo ações de prevenção ao risco socioambiental e sanitário. Deve apresentar também medidas visando a requalificação e as melhorias das moradias, incluindo Assistência Técnica (ATHIS), buscando soluções adequadas para os casos que exijam reconfigurações de quadras ou alterações no viário.

Tendo em vista a importância das Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) como instrumento urbanístico de zoneamento inclusivo voltado para a garantia da segurança da posse e para a efetivação da regularização urbanística e fundiária dos territórios populares, é fundamental, particularmente no caso do município do Rio de Janeiro, que a delimitação e a regulamentação das AEIS sejam feitas a partir de diagnósticos técnicos e debatidas com a população. 

Por fim, embora fora do escopo específico deste texto, é fundamental a adoção de políticas de segurança pública e garantia dos direitos humanos que sejam efetivas no combate ao controle dos grupos armados sobre os territórios populares, mas pautadas no respeito aos direitos fundamentais dos moradores. Cabe lembrar que têm sido recorrentes os episódios de violência nos territórios populares, particularmente nas favelas, em grande medida decorrentes de confrontos que envolvem agentes do poder público, sem que sejam considerados os diversos impactos negativos à população local. Nesse sentido, as políticas de segurança devem respeitar, sobretudo, os direitos fundamentais dos moradores, buscando soluções que resguardem a vida e a segurança dessa população.

*Adauto Lúcio Cardoso é arquiteto e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP. É professor titular do IPPUR/UFRJ.   

**Samuel Thomas Jaenisch é sociólogo. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR/UFRGS, Doutor e Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. É professor colaborador do GPDES/UFRJ. 

***Luciana Alencar Ximenes é arquiteta e urbanista. Mestre e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ

****Ivan Zanatta Kawahara é arquiteto e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFF.  

******Thais Velasco é arquiteta e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP.

******Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Revisão: Renata Melo 

Edição: Mariana Pitasse