Disputa

Megaprojeto de energia renovável ameaça abastecimento de água no sertão da BA

Plano da Quinto Energy de construir o maior complexo de energia eólica e solar do país gera temor sobre soterramento de

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Os municípios de Jaguarari e Campo Formoso estão localizados integralmente em uma região classificada pelo governo federal como área prioritária para conservação - Mariana Greif/Repórter Brasil

Da janela da casa da professora Maria Rosa Almeida Alves, é possível ver um pedaço da cordilheira do Espinhaço. O verde que toma as montanhas – mistura de Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga – surpreende quem espera apenas secura dessa parte do semiárido baiano. Ali, no município de Jaguarari, ficam ao menos 63 nascentes que abastecem cidades a até 100 quilômetros, fazendo jus ao apelido de “caixa d’água do sertão”.

É também nessa região que se concentram alguns dos melhores ventos para a produção de energia elétrica no país, segundo o Atlas do Potencial Eólico Brasileiro. Foram eles que levaram a companhia de energia renovável Quinto Energy a escolher o local para tirar do papel seu projeto mais ambicioso: o Complexo Manacá.

Segundo a própria empresa, o plano é instalar 405 torres de energia eólica, com a altura de um prédio de 43 andares, além de 476 mil placas de energia solar distribuídas por Jaguarari e pelo município vizinho de Campo Formoso. A estrutura terá capacidade de 3,43 GW – um quarto de Itaipu, a maior hidrelétrica do país. O início da operação está programado para 2027 e o investimento previsto é de R$ 10 bilhões.

A professora Maria Rosa faz parte do Salve as Serras, movimento que em janeiro de 2023 encaminhou uma denúncia formal contra o projeto ao Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA). O documento cita a necessidade de preservação das áreas remanescentes de Mata Atlântica e o risco de desaparecimento de nascentes de água, dentre outros problemas que teriam sido ignorados no processo de licenciamento ambiental do empreendimento da Quinto Energy.

“As comunidades podem pagar um preço muito alto por essa energia limpa que, de limpa, não tem nada. É apenas renovável”, afirma Maria Rosa.

Sediada em Salvador, a Quinto Energy tem nove complexos de energia eólica e solar em desenvolvimento na Bahia. O diretor de relações institucionais da companhia é Edson Duarte, ex-deputado federal pelo PV e ministro do Meio Ambiente do governo de Michel Temer.

Procurada, a empresa não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil. A matéria será atualizada se um posicionamento for enviado.
 

Movimento de carretas pode soterrar nascentes
 

O professor da Univasf Gustavo Hees de Negreiros explica como as movimentações de terra para a instalação de parques eólicos podem prejudicar as nascentes da região (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)
O professor da Univasf Gustavo Hees de Negreiros explica como as movimentações de terra para a instalação de parques eólicos podem prejudicar as nascentes da região (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)
 

“A água produzida nessas serras abastece mais de 1 milhão de pessoas nas regiões aqui em torno”, afirma o doutor em ciências florestais e professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Gustavo Hees de Negreiros, responsável técnico pelo relatório “As Nascentes de Jaguarari”.

Realizado em conjunto com a prefeitura do município, o estudo – em andamento – já mapeou ao menos 63 nascentes e serviu de base para a delimitação da da Área de Proteção Ambiental (APA) das Nascentes das Serras de Jaguarari, aprovada pelo poder público municipal no fim do ano passado. Esses nascedouros d’água também são protegidos por legislação federal, que obriga a sua conservação.

No entanto, o parecer técnico do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) para conceder a licença prévia à Quinto Energy cita apenas três nascentes perenes. O secretário de Meio Ambiente do município, José Roberto de Siqueira Lima, questiona esse número. “Basta ir a campo para ver que isso não se confirma”, diz.

Pesquisadores ouvidos pela Repórter Brasil consideram o Complexo Manacá uma grave ameaça aos cursos d’água que nascem na região e dão origem a alguns dos principais rios do estado, como o Itapicuru e o Estiva. O impacto sobre o abastecimento da região é uma das maiores preocupações.

Negreiros explica que a instalação de eólicas nas serras coloca em risco essas nascentes porque, além de desmatar os topos dos morros para a instalação dos equipamentos, é preciso refazer as estradas para garantir o acesso dos caminhões que carregam essas estruturas. Com essas obras, as nascentes podem ser soterradas, diz o professor.

“Nossa maior preocupação não é a torre em si, mas como ela chega até ali. Ela não vem de helicóptero”, ilustra. O projeto básico do empreendimento e a Licença Prévia previam originalmente 690 torres eólicas, com pás com 170 metros de diâmetro e 115 metros de altura. Em seu site, porém, a Quinto Energy anuncia um parque eólico com 405 aerogeradores.
 


“Imagine estradas com 12, 20 metros de largura, que precisam ter poucas curvas para que as carretas monstruosas, que carregam as hélices, possam subir serras com mil metros de altitude”, explica Negreiros. “É preciso fazer uma movimentação de terra muito grande.”

Os planos da empresa descrevem a necessidade de construção de 446 quilômetros de vias internas, com estradas de ao menos 11 metros de largura. “As larguras das pistas de rolamento tendem a aumentar em trechos com curvas horizontais, visto a necessidade de implementar super larguras […] para que o veículo consiga efetuar as manobras”, confirma um trecho do projeto básico do empreendimento. O texto cita ainda necessidade de “movimentações de terra consideráveis, pois a área apresenta heterogeneidade do relevo”.

“Se você desmata os topos das serras e substitui por um deserto de concreto, está cimentando as caixas da água do sertão. E isso não está sendo colocado em pauta”, afirma o ambientalista Juracy Marques, professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e parte do Salve as Serras.

Por e-mail, a assessoria de imprensa do Inema afirmou que a área proposta para implantação do complexo Manacá não está inserida em nenhuma Unidade de Conservação e que a licença prévia do projeto levou em consideração “as restrições ambientais e a preservação dos atributos naturais da região”.

Ainda segundo o Inema, foram solicitadas “demarcação da APPs [Áreas de Preservação Permanente], projeto de drenagem, planos de controle de processos erosivos e assoreamento, plano de revegetação e enriquecimento de APPS além de programa de monitoramento dos recursos hídricos”.

Apesar do grande porte, o empreendimento é considerado de baixo potencial poluidor pelo órgão ambiental. Leia a íntegra da resposta aqui.

O secretário municipal de Meio Ambiente conta que já tentou mais de uma vez alertar o governo estadual sobre a situação das nascentes e se prepara para ir até a capital apresentar os dados pessoalmente, assim que o relatório for concluído. “Conseguimos criar uma APA da prefeitura. Isso não vai impedir que as empresas sejam instaladas, mas vai dar uma oportunidade de a comunidade sentar para negociar e ter condicionantes”, afirma.

Segundo ele, a própria prefeitura já se ofereceu para apontar locais mais indicados à construção dos parques eólicos, mas há pouco diálogo com a Quinto Energy. A autorização para a instalação de empreendimentos de energia renovável depende de anuência estadual, não municipal. “A conversa acaba sempre recaindo na questão dos empregos que serão gerados, o que, é claro, também é importante para o município”, afirma o secretário.

Esses empregos, porém, se concentram na fase de construção do parque eólico, como a própria empresa admite no projeto básico. Segundo o documento, durante os 19 meses estimados para a construção do parque e das linhas de transmissão, serão geradas 2.440 vagas. Já a operação do parque em si empregará no máximo 30 pessoas, metade nas funções de manutenção e a outra metade na vigilância do empreendimento.
 

‘Longe de ser inofensiva’

Os municípios de Jaguarari e Campo Formoso estão integralmente localizados em uma região classificada pelo Ministério do Meio Ambiente como “Área Prioritária para Conservação da Biodiversidade”, segundo os arquivos de localização disponibilizados no site do ministério.

Nessas áreas devem ser implementadas ações de proteção de espécies e ecossistemas, mas isso não impediu a emissão da licença prévia sem considerar todas as nascentes identificadas pela prefeitura nem prever medidas de proteção a elas.

A licença prévia do Complexo Manacá foi publicada no Diário Oficial do Estado da Bahia em setembro do ano passado. Trata-se da primeira das etapas do processo de licenciamento ambiental, em que se definem a localização do empreendimento e as medidas de mitigação de impactos. No entanto, ambientalistas da região cobram estudos mais detalhados sobre os efeitos sobre fauna e flora – e sobre os cursos d’água.

O Ministério Público da Bahia também acompanha o caso. “Nosso objetivo é, primeiro, obter o máximo de informações possível e fazer com que os órgãos ambientais sejam muito criteriosos”, afirma o promotor Igor Clóvis Silva Miranda. “A gente sabe que impedir esse tipo de empreendimento é muito difícil porque a lei permite, e porque a importação desses empreendimentos econômicos não deixa de ser uma política de Estado”, complementa.

“Embora carreguem o rótulo de energia limpa, a forma como as grandes usinas eólicas e solares e suas linhas de transmissão vêm sendo instaladas no Nordeste brasileiro está longe de ser inofensiva”, diz um trecho do documento “Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável”. Assinado por 29 organizações de Meio Ambiente, o estudo aponta medidas de proteção para minimizar os impactos desses empreendimentos.

O professor Negreiros lembra que o relatório do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas, considera a região Nordeste habitat de 60% das espécies de peixes continentais de água doce. “Estamos mudando a condição e as características dos rios e dos corpos d ‘água, sem nem saber quais espécies estão deixando ou não de existir”, finaliza.

* Colaborou Isabel Harari

Esta reportagem foi realizada com o apoio do Instituto Climainfo / Nordeste Potência