Meio Ambiente

Disseminação e uso sustentável da palmeira-juçara

Artigo analisa ação da semeadura no estado do Paraná e os caminhos para sustentabilidade nos sistemas alimentares

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Palmeira juçara em desenvolvimento na comunidade Dom Tomás Balduíno, em Quedas do Iguaçu, no Paraná - Foto: Juliana Barbosa

A palmeira-juçara, patrimônio da biodiversidade brasileira, é também uma espécie-chave na Mata Atlântica. Isso significa que sua presença influencia positivamente, ou mesmo determina, a existência de várias outras espécies, tanto animais como vegetais dentro das florestas. Em alguns locais esta palmeira chegava a representar 50% dos indivíduos arbóreos e cada indivíduo é capaz de produzir milhares de frutos ao longo de praticamente todo o ano, mesmo quando há falta de frutos de outras árvores. Por conta disso é uma fonte de alimento essencial em época de escassez para quase 70 espécies, entre aves e mamíferos. Tucanos, jacutingas, jacus, sabiás e arapongas são os principais responsáveis pela dispersão de suas sementes, enquanto cotias, antas, catetos e esquilos, dentre outros, as utilizam como alimentos.

O Brasil possui uma das maiores diversidades de palmeiras no mundo e esta diversidade se refletia nas práticas de saberes das populações indígenas que se espalhavam pelo nosso território. Os povos de origem Tupi se faziam presentes, em sua grande maioria, no que hoje se conhece como bioma Mata Atlântica, ambiente onde a palmeira-juçara viceja em seu estado natural. A presença de grande quantidade de palmeiras neste bioma se traduziu na própria identidade que os tupis-guaranis desenvolveram em seu território.

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Apesar de recentes, são muitos e variados os estudos que mostram o desenvolvimento civilizacional das populações que habitavam nosso território antes da invasão portuguesa. Por séculos, a racionalidade colonial violentou, subjugou e apagou corpos, florestas e saberes da história do Brasil. O reflexo desta violência e exploração econômica se vê traduzido nos dias de hoje fundamentalmente na expansão do latifúndio, mineradoras e empresas de energia renovável sobre territórios de povos e comunidades tradicionais, terras indígenas e camponesas.

Mas para além do conflito fundiário, a lógica colonial impôs a ideologia da floresta como empecilho ao avanço da agropecuária e do desenvolvimento da nação. Ao negar as racionalidades, saberes, usos e práticas de cultivo e manejo desenvolvidos por milênios pelos povos que aqui habitavam, o pensamento colonial impôs a monocultura sobre a biodiversidade, o desmatamento sobre o convívio com as florestas e a monotonia alimentar sobre a rica diversidade de alimentos que as florestas proporcionam.

A anulação do “outro”, do diferente, se reflete na incapacidade de enxergar outras formas de pensar o mundo e o ambiente, no caso da invasão portuguesa, explícito na carta de Pero Vaz de Caminha, que se ocupava de relatar os momentos da invasão. Em determinado trecho de sua carta, Caminha fala sobre questões relativas à produção agrícola e animal e a alimentação dos indígenas que por aqui habitavam se referindo da seguinte maneira: “Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos”. 

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Ao não conseguir enxergar ou buscar compreender o manejo das florestas feito por aquelas pessoas, Caminha e seus colegas de expedição simplesmente afirmam que “Eles não lavram, nem criam.” ou seja, vivem “dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam” como se isso não fosse resultado de práticas de cultivo e manejo que sim, levaram à uma fartura e diversidade de alimentos que possibilitaram àqueles povos viverem “tão rijos e tão nédios (que reluz ou brilha)” que não o eram os portugueses quanto melhor se alimentassem.

Essa imagem se perpetuou na história, e domina o ideário social e cultural brasileiro, pelo qual aprendemos na escola – ali sempre próximo ao 19 de abril, quando lembramos que há povos que habitavam este país antes da invasão portuguesa – que indígenas vivem de “caça e coleta”, ou seja, apenas extraem o que a natureza lhes oferece, negando o conhecimento acumulado, sua racionalidade na relação com o ambiente, suas formas de pensar o mundo e a sociedade e, portanto, seu modelo de desenvolvimento. A eles relegamos o primitivismo e assim, abrimos caminho para que a ideologia colonial impere e imponha sua racionalidade.


Palmeira juçara semeada em 2023, na comunidade Dom Tomás Balduíno, e monitorada por pesquisadores e técnicos. / Foto: Juliana Barbosa

A agricultura talvez seja onde esta perspectiva ainda se encontra mais enraizada. Questionar a monocultura e o agronegócio no Brasil é tratado com uma heresia pela ideologia dominante – imposta pela aliança entre o latifúndio e as corporações alimentares, cuja representação política mais evidentes se encontra na bancada ruralista do congresso – sustentada no sistema financeiro global. Sob esta ideologia, floresta é entrave, monocultura é desenvolvimento, já sabemos dos efeitos ambientais, sociais, culturais e econômicos deste modelo, que avança com um exército de seres vivos transgênicos munidos de armas químicas (agrotóxicos) responsáveis pela contaminação de pessoas e ambiente, concentração de renda e expulsão de camponeses/as e povos e comunidades tradicionais de seus territórios e pelo comprometimento da saúde humana pela redução de diversidade e comprometimento da qualidade dos alimentos.

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Palmeira-juçara e os caminhos para a sustentabilidade nos sistemas alimentares

Voltando ao nosso escriba Pero Vaz de Caminha vemos, em outro trecho de sua carta, que apesar de se mostrar cego aos sistemas de manejo e produção de alimentos dos tupis, soube ele com seus colegas fartar-se do que estes sistemas proporcionavam. Pouco antes de afirmar que os habitantes desta terra não lavram, nem criam, Caminha relatou a seguinte situação: “Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.”

Curiosamente – ou não, pois pode ser resultado do plantios realizados – Caminha relata especificamente da presença das palmeiras e do consumo de seu palmito, o que pode nos dar um indicativo da farta presença destas naquele território. Para Lima (2023), estudos indicam que Caminha está se referindo à Palmeira-juçara, seja por sua presença abundante nestas florestas, seja por ser o seu palmito um dos mais apreciados em termos de sabor e maciez.


O manejo dos frutos da juçara possibilita a manutenção das árvores. / Foto: Wellington Lenon

Não por acaso, os povos de origem tupi-guarani denominavam esta terra de Pindorama. O termo pode ser traduzido como “terra das palmeiras”, uma clara alusão à grande presença destas, com destaque para a juçara, no que possivelmente se tratasse do território ao leste brasileiro, onde predomina o bioma Mata Atlântica.

Mas para além de seu significado linguístico, a Pindorama também representava a terra sem males tão desejada pelos guaranis. A terra onde há fartura, onde a vida viceja e onde o convívio é harmonioso.

Em busca de sua Pindorama, camponeses e camponesas do Pré-assentamento Dom Tomaz Balduíno, em Quedas do Iguaçu-PR, enxergaram na Palmeira-juçara um caminho para promover sistemas de produção mais sustentáveis, e que tenham na compreensão da dinâmica da floresta a base para a produção de alimentos saudáveis, gerando renda e promovendo conservação florestal.

Em um território onde predominava a monocultura do pinus, dominada pelo latifúndio empresarial, hoje, brotam mudas de palmeira juçara em meio a uma floresta que busca cicatrizar as feridas que a perspectiva do lucro acima de tudo lhe causou.

Porém, assim como nossos antepassados indígenas (e inspirados neles), a disseminação da juçara não se deu somente pelos ciclos ecológicos da floresta, mas recebeu uma importante colaboração humana para que este trabalho fosse acelerado.

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A partir do manejo de juçaras presentes em alguns dos lotes do Pré-assentamento, o/as camponese/as passaram a colher seus frutos, extrair sua polpa e comercializar essa produção. Como “resíduo” deste processo, milhares de sementes que, por conta do tratamento térmico e “raspagem” feitos para extrair a polpa tem sua dormência quebrada, estimulando sua germinação. Em média, para cada quilo de polpa produzida, restam dois quilos de semente.

O manejo dos frutos da juçara possibilita então não somente a manutenção das árvores – à diferença da extração de palmito, que demanda eliminar uma árvore para cada palmito – mas também facilita a disseminação da espécie o enriquecimento de áreas de floresta com as sementes resultantes da extração da polpa.

A polpa produzida se transforma em picolés, sorbets (sorvete sem leite) e doces que são comercializados em conjunto com o “Coletivo das frutas nativas e crioulas” da região Centro do Paraná, onde famílias de outros 4 municípios da região, produzem polpas de uma grande diversidade de frutas nativas como guabiroba, uvaia, cereja-do-mato, jabuticaba, pitanga, araçá, jerivá, butiá, framboesa-silvestre, ananás e outras. Todos os produtos contam com uma marca coletiva, a “Sabores da Agrofloresta: a fruta camponesa”. O coletivo vem se organizando para abastecer com polpas escolas do Estado, via PNAE, e cozinhas solidárias, via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).


No coletivo das frutas nativas e criolas são produzidas polpas e outros produtos para comercialização. / Foto: Juliana Barbosa

A partir deste trabalho realizou-se em junho de 2023 a 1a Festa da Semeadura da Juçara, em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em parceria com um grande conjunto de organizações (UFFS, IBAMA, IAT, ITAIPU) e com a Polícia Rodoviária Federal, que cedeu pessoal e um helicóptero que possibilitou a dispersão de cerca de 4 toneladas de sementes de juçara em uma área de 67 ha de reserva legal do pré-assentamento. 

Disseminação da palmeira-juçara, seus resultados e potencialidades

A partir da festa da Semeadura da Juçara um desafio, entre vários outros, se apresentou. Como avaliar a efetividade deste plantio. Nesse sentido, aprofundou-se a parceria realizada entre o “Coletivo das frutas nativas e crioulas” e o Laboratório VIVAN de Sistemas Agroflorestais da UFFS – Campus Laranjeiras do Sul. Incorporando o Programa de Pós Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável (PPGADR) e a Pontifícia Universidade católica do Paraná (PUC-PR) elaborou-se um projeto de pesquisa para o monitoramento da regeneração da palmeira-juçara semeada em 2023.

Uma estudante do mestrado, formada e Ciências Biológicas, aceitou o desafio e vem, em conjunto com com seu comitê de orientação e camponese/as do pré-assentamento, avaliando os resultados do plantio realizado durante a festa da semeadura da juçara. Para tanto, foram delimitadas cerca de 30 parcelas distribuídas na área semeada (67 ha) onde estão sendo contabilizadas e identificadas o número de mudas presentes, sua altura e medindo a intensidade de luz em cada parcela. Este levantamento foi iniciado em maio deste ano e será repetido em maio/junho de 2025, a fim de verificar taxa de sobrevivência e crescimento das mudas.

Os dados obtidos até o momento são preliminares e não sustentam uma conclusão definitiva ainda, por faltarem parcelas a serem avaliadas. As parcelas avaliadas apontam para uma alta taxa de germinação da juçara em áreas com sub-bosque mais “limpo”. Os resultados indicam que um ano depois da semeadura observa-densidades de até 11 mil plantas por hectare, aproximadamente uma planta por m2. As mudas estão, no momento, com altura média de 14,5 cm.


Semeadura aérea de pinhão, no assentamento Nova Geração, em Guarapuava, para testagem da eficácia da germinação. / Foto: Juliana Barbosa

Esta alta densidade é resultado do grande volume de sementes lançadas e reproduz, de certa maneira, o comportamento natural da espécie, onde grande volume de frutos caem do cacho próximo a árvore-mãe. À medida que for se avaliando a taxa de sobrevivência das mudas (há uma tendência de que haja uma taxa relativamente alta, como ocorre na dispersão natural da espécie) irá se avaliando a necessidade ou não de “raleio” (retirada de indivíduos) das áreas, de forma a propiciar um melhor desenvolvimento de cada indivíduo e também permitir a regeneração de outras espécies florestais nas áreas.

Fato relevante neste processo é que os resultados parciais obtidos até o momento, indicam que a ação experimental realizada em 2023 tem surtido efeito, as sementes têm germinado e um ano após há uma alta taxa de sobrevivência até o momento. Isso não quer dizer que não haja ajustes a serem feitos, como por exemplo pensar mecanismos para melhorar a distribuição das sementes nas áreas durante o lançamento via helicóptero.

Um aspecto relevante a ser destacado é que Quedas do Iguaçu encontra-se em uma região de ecótono entre a Floresta Ombrófila Mista (Floresta com Araucária) e a Floresta Estacional Semidecidual (FES), prevalecendo esta última nas matas ciliares da beira do Iguaçu e seus reservatórios. A palmeira-juçara costuma ter presença significativa na Floresta Ombrófila Densa, parte do bioma Mata Atlântica que margeia o oceano atlântico ao leste do país. Sua presença é mais ocasional (ou endêmica) na FES, o que faz com que ações de dispersão como esta fortaleçam a presença e conservação da espécie neste ecossistema.

Mas para além da efetividade da dispersão das sementes, é preciso destacar que o processo gerou resultados para além da germinação e crescimento das mudas. Para as mais de 800 famílias do pré-assentamento e centenas de outras na região, a atividade da semeadura foi fator de sensibilização sobre a importância da conservação da espécie e seu ambiente natural (a floresta), bem como das possibilidades de obtenção de produtos e renda a partir desta. Esta ação rompe com a perspectiva tida como única para a região, do cultivo somente de grãos, em particular a soja.

Da mesma forma, dezenas de crianças das escolas da região presenciaram, tiveram notícia, pesquisaram sobre a semeadura da juçara, despertando curiosidade e, a partir desta, consciência sobre a importância e potenciais da espécie. E da conservação ambiental. 

Por fim, uma projeção pessimista das possibilidades desta ação nos traz números interessantes sobre o potencial da palmeira-juçara. Considerando que somente 10% desses 10 mil indivíduos mapeados até o momento cheguem à vida adulta, teremos cerca de 1 mil árvores de juçara por hectare. A estimativa na região é de que cada indivíduo produza pelo menos 5 kg de polpa, o que renderia 5 toneladas/ha. Hoje, o valor médio comercializado no coletivo das frutas nativas e crioulas pela juçara é de R$ 20/kg, que resultariam, neste desenho, em R$ 100.000,00/ha. 

A comprovação da eficácia levou à organização de novas ações de semeadura aérea, em uma ação batizada como Jornada da Natureza, realizada de 3 a 8 de junho. Ao todo, foram semeadas 12 toneladas de sementes de juçara e também de pinhão, em menor quantidade, para que seja possível o estudo sobre a eficácia do plantio aéreo da semente da araucária. Neste ano, além de várias comunidades da reforma agrária de Quedas do Iguaçu, a ação se expandiu para a Terra indígena Rio das Cobras, em Nova Laranjeiras, e as comunidades do MST Nova Geração, de Guarapuava, Nova Aliança, de Pinhão, José Lutzenberger, de Antonina, e Contestado, da Lapa. 

Somos sabedores de que esta relação não é tão simples, pois depende da disponibilidade de mão-de-obra, estrutura e equipamentos adequados para o processamento e, principalmente, alternativas de comercialização para escoar esta produção (estamos falando de possíveis 67 ha semeados somente na ação de 2023). Porém, a ação tem também a finalidade de explicitar estas questões, propor e demandar políticas públicas que atendam à esta realidade, bem como apresentar uma possibilidade concreta de ação de manejo sustentável e geração de renda para a agricultura familiar e camponesa, que também promova conservação florestal, alimentação saudável e uma ressignificação do papel das florestas no ideário da população brasileira.

Neste país cujo nome e história, antes de depois da invasão portuguesa, estão intimamente ligados às florestas e sua sociobiodiversidade faz-se necessário que voltemos às origens, olhemos para nossos biomas e sistemas alimentares sob uma perspectiva de articulação harmoniosa, orientada pela realização dos direitos constitucionais da função social da terra, a um ambiente saudável e uma alimentação adequada. É preciso nos orientarmos e trabalharmos pela busca da Pindorama do século XXI.

 

*Julian Perez-Cassarinno é engenheiro florestal, doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMADE-UFPR), professor do campus Laranjeiras do Sul-PR da UFFS, membro da direção da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (RedePenssan). 

**Giovana de Deus Carriel é bióloga, mestranda em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável pelo PPGADR-UFFS.

***Rodrigo Ozelame da Silva é gestor ambiental, mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável (PPGADR-UFFS) e doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMADE-UFPR), pesquisador de Pós-Doutorado Capes junto ao PPGADR-UFFS.

****Rodrigo de Andrade Kersten é biólogo, mestre em Botânica (PPGB-UFPR) e doutor em Engenharia Florestal - Conservação da Natureza (PPGEF-UFPR), professor da PUC-PR.

*****Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Fonte: BdF Paraná

Edição: Mayala Fernandes