O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou nesta segunda-feira (10) um debate sobre o cenário e os riscos para a população do uso de ferramentas de invasão e monitoramento de dispositivos eletrônicos pelo poder público no país. Como pano de fundo do evento, existe uma disputa no STF entre a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Congresso.
De um lado, a PGR aponta “omissão” e “inércia” do Legislativo na regulação do uso de ferramentas espiãs pelos agentes de segurança pública e inteligência. O Congresso abriga a única comissão com poder de controle externo sobre as atividades de inteligência no Brasil – que, no entanto, não se reúne desde novembro de 2023.
Por que isso importa?
Ainda não é de conhecimento público a real dimensão do uso de ferramentas de monitoramento sem autorização judicial por agentes públicos no Brasil, mas já há casos de abusos sendo avaliados na Justiça.
Câmara se defende
Nos autos, a Câmara se defendeu das alegações. A defesa da Casa presidida por Arthur Lira (PP) ganhou o reforço do governo Lula no caso, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU). O ministro da AGU, Jorge Messias, afirmou na ação que “não há qualquer fundamento” no que alega a PGR, defendendo que “o Poder Legislativo está atento” às atividades de inteligência no país.
Para o ministro relator do caso no STF, Cristiano Zanin, as posições contrárias ressaltam a complexidade do tema. Zanin convocou a audiência desta segunda e terça-feira, com participação de especialistas, membros do governo federal, das Forças Armadas e pesquisadores.
Conforme apurado pela Agência Pública, representantes de empresas do ramo de inteligência e espionagem também falariam no evento, mas a participação não foi confirmada. Uma delas seria a filial brasileira da israelense Cognyte, uma das principais fornecedoras de tecnologias espiãs para o poder público no país e uma das protagonistas do caso First Mile, investigado pela Polícia Federal.
Para Pedro Saliba, coordenador na ONG Data Privacy, participante da audiência no STF, existe um descontrole no uso de ferramentas espiãs por serviços de inteligência e agentes públicos. “Nosso trabalho mostra que tem havido uma proliferação dessas ferramentas no país, operadas pelos agentes numa lógica de busca por inimigos internos – desembocando no que chamamos de tecnoautoritarismo”, disse à Pública.
Para Saliba, o debate servirá de alerta para a Corte quanto aos riscos ligados ao crescimento do setor no Brasil. “Muitos dirão que é um problema o STF entrar nessa seara, mas o atual estágio das coisas demanda que a Corte entenda a gravidade dos fatos e estabeleça critérios para uma legislação capaz de prevenir abusos ligados a essas ferramentas, cada vez mais pulverizadas pelo Brasil”, avaliou.
“Uso secreto e abusivo” de ferramentas “sem autorização judicial”
A ação em curso no STF foi aberta a pedido da PGR em dezembro de 2023, dias antes da posse do procurador-geral da República, Paulo Gonet. Assinada pela então procuradora-geral Elizeta Ramos, ela mostra que a PGR alega “insuficiência” nas leis atuais – defasadas ante o avanço tecnológico dos produtos à venda no mercado. Com isso, o Congresso estaria “provocando redução arbitrária e injustificada” de direitos fundamentais à privacidade dos cidadãos.
Segundo a PGR, o “ponto central da controvérsia” no caso é o “uso secreto e abusivo desses softwares e ferramentas, sem autorização judicial”, à margem do Código Penal, o que abriria brechas para “graves impactos a direitos fundamentais” da população.
Um estudo do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.Rec) aponta que entre 2015 e 2021 foram localizados mais de 200 contratos de compra, treinamento, termos aditivos, atualização de software e outros atos administrativos relativos a ferramentas espiãs em uso no Brasil, proliferação que vem sendo relatada pela Pública.
Há uma série de denúncias de aparelhamento dos serviços de inteligência e monitoramentos ilegais, seja pelo governo federal, como no caso First Mile, seja por estados comandados por políticos do campo da direita, como Goiás e Mato Grosso.
Rastreabilidade, termo de compromisso para uso e alvos determinados
Como antídoto para o uso abusivo de ferramentas espiãs, a PGR pediu ao STF que estabelecesse, de forma liminar, uma série de medidas para evitar o descontrole dos serviços de inteligência no país.
Além disso, a procuradoria também solicitou que a Corte determine a órgãos de segurança das três esferas federativas, serviços de inteligência e Forças Armadas que não usem ferramentas de invasão e monitoramento sem autorização judicial. O entendimento é que as ferramentas sejam usadas somente contra alvos específicos, sem que haja invasão a dados e aparelhos de pessoas não investigadas.
A solicitação da PGR é também que os órgãos criem termos de responsabilidade e de sigilo aos usuários, com total rastreabilidade; que haja a indicação das investigações ou processos judiciais que justifiquem a obtenção dos dados; que agentes produzam relatórios sobre o uso das ferramentas que deverão ficar salvos por, no mínimo, 30 anos, e que o mesmo ocorra com o registro de uso dos programas espiões.
Sem entrar no mérito do pedido, a AGU defendeu que as medidas sugeridas seriam “incompatíveis” com a ação em julgamento no STF. O órgão justificou sua tese apontando para o equilíbrio entre os três poderes, pois a tomada dessas medidas pelo STF afrontaria a independência do Poder Legislativo, violando “o princípio da separação dos Poderes”.
Legislação e sigilo de dados
A Câmara dos Deputados respondeu à PGR nos autos que a legislação em vigor no país atualmente já possui “uma ampla gama de instrumentos normativos” em defesa da “intimidade e da vida privada”, além da proteção “do sigilo das comunicações pessoais e de dados” dos cidadãos.
A Câmara destacou a vigência de duas leis relativas ao tema e elencou 16 projetos de lei em discussão na Casa. Não há menção ou justificativa, porém, à inatividade da Comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência – a CCAI, responsável por fazer o controle externo do setor – nos últimos seis meses.
Após a manifestação da Câmara, a AGU se posicionou a favor do Congresso. Em manifestação assinada pelo ministro Jorge Messias, a AGU afirma que “o ordenamento jurídico brasileiro é abundante em regras que protegem a intimidade, a vida e a honra privada”, além do sigilo de dados e comunicações dos cidadãos.
CCAI segue em ritmo próprio
A defesa alinhada da AGU e da Câmara destoa do que se vê, na prática, em Brasília. Segundo a legislação brasileira, a CCAI é a única instância externa aos órgãos de controle capaz de fiscalizar as atividades de inteligência, mas não está entre as comissões mais atuantes no Congresso, como mostrou a Pública.
O último encontro da CCAI foi realizado em 22 de novembro de 2023. As reuniões são convocadas pelo presidente da comissão, cargo ocupado neste ano pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), por sua condição de presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado.
Em 2023, ano marcado pelo escândalo First Mile, a CCAI se reuniu oficialmente sete vezes. Ainda assim, parlamentares pouparam órgãos públicos de esclarecimentos – mesmo que muitos deles tenham adquirido a mesma ferramenta espiã usada pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin).