China e socialismo

China: O exercício constante de ir às montanhas

Senso comum constrói estereótipos sobre a China para minar experiências na contramão do capitalismo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
É importante o exercício constante de ir às montanhas para compreender a China e o mundo do século 21 - STR AFP

A China, com 9,6 milhões de quilômetros quadrados e 1,4 bilhão de habitantes, é o terceiro maior país em extensão territorial e o segundo mais populoso. Sua geografia diversa, que varia de desertos ao norte a florestas tropicais ao sul, juntamente com uma topografia plural e abundância de recursos hídricos, ilustra os desafios de governança enfrentados ao longo de sua história. 

Antes de 1949, ano da Revolução Chinesa, o país era marcado por pobreza generalizada, disparidades sociais e econômicas extremas, e altas taxas de desemprego. Apesar de sua principal atividade econômica ser centrada na atividade agrícola, era nesse setor e região que se encontravam as piores condições de vida, com baixíssimos níveis de industrialização, infraestrutura e produtividade.

O Partido Comunista Chinês (PCC), fundado em 1921, buscou um modelo de socialismo adaptado à realidade chinesa, inspirado pelas teorias marxistas, pela experiência soviética e movimentos revolucionários chineses anteriores. A "ida às montanhas" simboliza um aspecto cultural, militar, político e filosófico dessa busca, já que elas serviam de refúgio de muitos líderes do Partido para períodos de reavaliação e estratégia. E das montanhas da província de Jiangxi partiu a Grande Marcha, com 86 mil homens em uma jornada de um ano.

Nos últimos 75 anos, políticas públicas, reformas econômicas, investimentos em infraestrutura, industrialização e urbanização, permitiram que a China passasse de um país subdesenvolvido e marcado por extrema pobreza rural, para a segunda maior economia do mundo, centrada no bem-estar da população. Essa posição alterou a estrutura forjada desde o após Segunda Guerra Mundial e da consolidação da predominância dos EUA no cenário global.

A busca por um modelo chinês de desenvolvimento socialista demandou ajustes de rota e constantes reelaborações teóricas. A prática de "ir às montanhas" permanece relevante, simbolizando a necessidade de adaptação e inovação, e faz parte da cultura política chinesa e dos métodos do Partido Comunista Chinês. O conceito de autorreforma, defendido pelo PCCh, enfatiza a resolução dos problemas em governança de longo prazo, a inovação teórica, a independência e a adaptação à realidade chinesa, com sessões de estudo coletivo, pesquisa de campo e autocríticas, complementado por uma intensa produção de publicações oficiais e propaganda. 

Para conhecer melhor algumas das experiências chinesas de tecnologia, cultura, turismo e política, uma delegação com mais de 30 representações de partidos políticos e mídia de diversos países foi recebida em abril no país. Europa, África, América Latina e Ásia, em um grupo heterogêneo de identidades e ideologias. Com uma programação intensa, tivemos a oportunidade de conhecer diversas empresas estatais, privadas, de Inteligência Artificial, carros elétricos, serviços, e pontos culturais importantes. A visita à capital Pequim e algumas cidades das províncias de Henan e Jiangxi permitiram uma melhor compreensão sobre o socialismo com características chinesas.  

Aqui são algumas reflexões dessa visita, aliando parte das teorias que a China vem desenvolvido, seu método de governança, e como foi possível enxergar de perto a aplicação desse conjunto de ideias e seus resultados e desafios.

Desenvolvimento de alta qualidade

Os países capitalistas adotam o conceito e a prática de desenvolvimento centrado unicamente no acúmulo de capitais. Visão que ignora as diferentes perspectivas que o marxismo nos oferece: aspectos sociais, políticos, culturais, ambientais e tecnológicos. A concretização de um desenvolvimento focado na qualidade de vida da humanidade e na preservação do planeta, não é apenas um posicionamento ideológico, mas uma necessidade prática.

Xi Jinping, em seu discurso no seminário temático sobre o estudo e implementação dos princípios orientadores da sexta plenária do 19º Comitê Central do Partido Comunista Chinês, realizado em 11 de janeiro de 2022, pergunta retoricamente: "Por que o PCCh é capaz e por que o socialismo com características chinesas funciona? Em última análise é porque o marxismo funciona. Por que o marxismo funciona? Porque ele é adaptado pelo PCCh à realidade chinesa e às necessidades da época, e usado para orientar a nossa causa".  

Ao longo do discurso, o presidente ressalta como o marxismo oferece uma direção clara para o desenvolvimento e o progresso da sociedade humana, servindo como uma ferramenta teórica poderosa para entender o mundo e suas leis, "buscar a verdade e transformar o mundo". Xi não visualiza o marxismo como um dogma, mas como um método dialético que deve ser continuamente adaptado à realidade chinesa em diferentes tempos históricos.


Xi Jinping: "Por que o marxismo funciona? Porque ele é adaptado pelo PCCh à realidade chinesa" / Jade GAO / POOL / AFP

O conceito chinês de desenvolvimento de alta qualidade compreende uma nova filosofia de desenvolvimento, caracterizada por inovação, coordenação, desenvolvimento verde, abertura e partilha. Em resumo, a busca por um desenvolvimento com crescimento econômico sustentável e inclusivo, sob o regime socialista, não somente para aprimorar a qualidade de vida dos chineses, mas focado em construir modelos viáveis para a humanidade. Aliando tradição e modernidade, ancestralidade e tecnologia, natureza e economia.

Diversos indicadores publicados pelo BBVA Research e China Briefing atestam o sucesso da jornada chinesa. Nos primeiros dois meses de 2024, a taxa de desemprego ficou em 5,3%, apresentando queda em relação aos anos anteriores. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi de 5,2%, comparado a 3% dois anos atrás. A renda per capita aumentou 6,1% de 2022 para 2023.

A expectativa de vida dos chineses hoje é de 77 anos, tendo ultrapassado os EUA em 2022, que apresentavam um índice de 76 anos. Em 1949, era de 35 anos para homens e 40 anos para mulheres, enquanto nos EUA era de 65 e 70 anos respectivamente. A taxa de alfabetização é de cerca de 96,8% para adultos com 15 anos ou mais e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) ficou em 0,769 (na escala de 0 a 1) em 2023, refletindo melhorias nas áreas de saúde, educação e renda. O acesso a água potável e saneamento também apresenta bons números, com mais de 90% da população tendo acesso a esses serviços essenciais. As ferramentas e ações que culminam nesses números devem ser compartilhados. 

O Leste é vermelho 

A China é globalmente reconhecida por seu grande mercado interno e alta capacidade de produção de bens. De acordo com o Escritório Nacional de Estatísticas (NBS, na sigla em inglês), em janeiro e fevereiro deste ano a produção da indústria chinesa cresceu 7% em comparação ao mesmo período no ano anterior. Destaque para os setores de manufatura de alta tecnologia e bens de consumo.  

Um crescimento econômico dessa magnitude e constante, aliado à filosofia de desenvolvimento de alta qualidade, demanda investimentos, parcerias estratégicas e controle do capital, no que é a economia de mercado socialista. O que requer, segundo Xi, regular o funcionamento do capital, aproveitando vantagens e desvantagens. "Não devemos permitir que os magnatas do setor financeiro atuem de forma arbitrária e, por outro lado, devemos assegurar a função do capital como fator de produção. Esta é uma grande questão política que devemos encarar", afirmou em discurso na Conferência Central sobre o Trabalho Econômico, em 2021.  

Em um painel de discussão com membros do círculo econômico em 2022, o presidente explicou que "o sistema básico socialista abrange a propriedade pública que desempenha o papel dominante e se desenvolve junto com outras formas de propriedade; os múltiplos modelos de distribuição com 'a cada um segundo o seu trabalho' como forma principal; e a economia de mercado socialista. Esse sistema é propicio para energizar a vitalidade das entidades do mercado, libertar e desenvolver forças produtivas. Promover a eficiência e a equidade e alcançar prosperidade comum".

Portanto, o Estado investe e conduz suas empresas estatais, além das parcerias com empresas privadas, de diversos setores, de forma estratégica e alinhada com as políticas nacionais e planos quinquenais do governo. No setor automobilístico por exemplo, houve uma guinada para a produção de tecnologias limpas, impulsionado em parte pelo desejo da China em se tornar líder desse mercado, mas também pela urgência da conversão do uso de combustíveis fósseis. A China é o maior produtor e consumidor de carvão do mundo, o que acarreta alto custo ambiental e social. O governo aplicou diversas medidas para a transição energética, incluindo fechamento de usinas de carvão e ampliação da capacidade de energia renovável (eólica e solar). Se pretende, antes de 2030, atingir o pico de emissões de carbono e alcançar a neutralidade de carbono até 2060. A capacidade em energia limpa, em 2020, representou mais de 40% de geração de energia no país, e já apontam mudanças significativas na qualidade do ar de muitas cidades.


China adota e aplica conceito de desenvolvimento de alta qualidade / STR / AFP

Essa política incidiu diretamente no setor de carros elétricos, com a criação do Plano de Ação de Veículos de Energia Nova. O projeto consiste em incentivos fiscais e subsídios para aquisição de carros elétricos e parcerias com empresas de tecnologia, para integração com ferramentas de Inteligência Artificial.  

Uma das principais indústrias automobilísticas da China é a empresa estatal Jiangling Motors Corporation Group (JMCG) - e sua subsidiária Jiangling Group Electric Vehicle (JMVE) -  que foi fundada em 2015, com sede na cidade de Nanchang, capital de Jiangxi. A JMCG se especializou em carros elétricos e tem investido na tecnologia de baterias e autonomia dos veículos, além de já possuir protótipos de carros autônomos com previsão de lançamento no mercado chinês em setembro deste ano. É a visão do futuro.

Um exemplo de integração entre preservação da história recente e desenvolvimento tecnológico é a fábrica de tratores China YTO Group Corporation, localizada na cidade de Louyang, na província de Henan. Além da linha de produção, o local abriga um amplo acervo sobre o desenvolvimento da marca estatal, preservando o papel da Revolução Chinesa na tecnologia agrícola, fundamental para a erradicação da extrema pobreza nas áreas rurais.

A estatal foi fundada logo após o estabelecimento da República Popular da China, em 1949, com o lançamento do primeiro trator, o Dongfanghong-54, que significa "Leste é vermelho", e que faz referência a uma canção popular chinesa, nome também dado ao primeiro satélite da China. Já YTO significa "primeiro trator" em mandarim. 

Antes disso, eram poucos tratores no país e todos de fora, o que impedia reforma ou substituição de peças domesticamente. O custo acessível do trator pela população foi um marco para a mecanização da agricultura, em um cenário onde predominava trabalho manual e com tração animal.

Com rápido crescimento e desenvolvimento tecnológico, a YTO estabeleceu presença competitiva no mercado internacional, especialmente na África e Ásia. Em quase 75 anos, a estatal desenvolveu tratores com direção autônoma, focando em sustentabilidade e aumento de produtividade na agricultura. No Brasil, a YTO opera desde o ano passado e pretende conquistar 20% do mercado nacional em 10 anos.


Papel da Revolução Chinesa na tecnologia agrícola foi fundamental para a erradicação da extrema pobreza / Nina Fideles

O fogo do forno brilha todas as noites  

A província de Jiangxi, localizada no sudeste da China, é conhecida como o berço do primeiro quartel-general do Partido Comunista Chinês e ponto de partida da Grande Marcha em 1934. Situada ao sudeste da China, esta região é predominantemente montanhosa e repleta de belezas naturais.  

Na cidade de Jingdezhen, conhecida como a "Capital da Porcelana", se mantém até hoje a produção de porcelana e cerâmica de alta qualidade. A preservação de sítios arqueológicos e investimentos em museus, galerias e escolas de cerâmica, como o Jingdezhen Imperial Kiln Institute, tornam a cidade o principal polo turístico e educativo relacionado a porcelana no mundo. É um exemplo de como preservar a herança cultural e modernizar a economia local.  

Durante as dinastias Ming (1368 - 1644) e Qing (1644 - 1912), Jingdezhen era o principal centro de produção de porcelana imperial, exportada para várias partes do mundo. Há relatos históricos de que a produção de porcelana na cidade remonta a mais de 1700 anos. As diferentes técnicas de cores indicam, cada uma, um período histórico em seus aspectos sociais, políticos e econômicos. Em uma das vielas repletas de oficinas de cerâmica e olarias, uma inscrição no chão diz: "o fogo do forno brilha todas as noites". E em pleno sábado, jovens lotam o Museu de Cerâmica Jingdezhen, cujo acerco conta com peças de todos os períodos e dinastias chinesas.

A cidade também é conhecida pelo interminável Taoxichuan Market e uma loja estatal onde uma estudante explica as principais características que devem ser preservadas nas peças de porcelana: "fina como papel, branca como jade, brilhante como um espelho e sonora como um sino".

Na província de Henan, localizada no coração da China e considerada um dos berços da civilização chinesa com mais de 4 mil anos de história, encontra-se o Museu Erlitou da Capital Xia, um imenso museu arqueológico. Henan também é a província natal de Mao Zedong, o líder revolucionário e fundador da República Popular da China.

A dinastia Xia, a primeira da antiga China, governou por 400 anos e teve 17 imperadores. Mas também se reconhecem a existência de figuras históricas ou mitológicas pré-Xia. O primeiro imperador, Yu, o Grande, é famoso por ter "derrotado" as inundações do Rio Amarelo, o segundo maior da China, com a criação de um sistema de irrigação.

Foram seis décadas de pesquisas e levantamentos arqueológicos, desde 1959, realizadas no sítio de Erlitou, que revelaram uma sociedade avançada e bem planejada em torno da bacia do Rio Amarelo. A estrutura desta sociedade chinesa milenar é expressa em diversos artefatos – de pedra, bronze, turquesa - preservados para fins ritualísticos, medicinais, além de servir para agricultura e culinária.

E assim como Yu, O Grande, a China continua desenvolvendo soluções para evitar atualmente as consequências do aquecimento global e inundações. Uma delas é a criação das cidades-esponja. Segundo um estudo do Banco Mundial de 2021, 67% da população chinesa vivia em áreas propensas a inundações. O governo chinês determinou que, até 2030, 80% das áreas urbanas sejam do tipo "esponja", capazes de absorver e reutilizar 70% das águas das chuvas torrenciais. 

A rica e milenar cultura chinesa se expressa também por meio da dança, música, roupas, arquitetura e artes marciais. "Sem uma cultura socialista próspera, não haverá a modernização socialista", afirmou Xi Jinping, em setembro de 2020, em um simpósio com representações dos setores da educação, cultura, saúde e esporte. O atual desafio da governança chinesa passa pela tarefa de mesclar a cultura tradicional com os princípios socialistas e marxistas, para formar uma coesa e única identidade nacional.

A Elephant Television em Henan exemplifica essa integração, com um logo e nome que simbolizam o elefante "que persevera carregando o peso de sua história", como menciona a apresentação do canal. Os personagens símbolos representam a história antiga chinesa, mas que utilizam de tecnologia para transmitir a mensagem, inclusive para atingir um público mais jovem.


O maior parque-esponja de Shanghai: "Céu estrelado" / China Daily

Dois pontos

Entre os conhecimentos adquiridos de uma China antiga e ancestral, com museus e sítios arqueológicos, e as maravilhas da Inteligência Artificial, com carros autônomos e instrumentos de ponta para traduções simultâneas, surgem dois pontos da história e filosofia chinesas que formam mais do que uma linha cronológica. Poderiam ser dois pontos que não se relacionam, mas na cultura política chinesa atual, eles coexistem dialeticamente.

Das antigas cerimônias do chá às tecnologias avançadas em simuladores de voo, do berço da civilização chinesa em sítios arqueológicos e museus ao lançamento de foguetes e tradutores simultâneos, a China integra ancestralidade e modernização para a prosperidade comum.

O senso comum sobre a China, influenciado e dominado pela mídia ocidental, constrói estereótipos que tentam minar experiências que se consolidam e crescem na contramão das premissas do modelo capitalista. Especialmente quando enxergamos o Oriente pela ótica do Ocidente. Essas narrativas buscam diminuir qualquer outra experiência para que nunca consideremos romper essas premissas. Afirmam que são experimentos fracassados, comandados por ditadores rígidos e desalmados, que cerceiam a liberdade de expressão e impedem o crescimento econômico e o pleno desenvolvimento dos sistemas.

A contra-narrativa deve expor as realidades dessas nações, destacando experimentos e alternativas viáveis para nossas próprias sociedades. Cada uma a seu modo, como nos ensina a China. E o Brasil de Fato se compromete com essa construção.

Foi possível conhecer muitas experiências de agricultura, turismo e tecnologia, encontrando coerências entre os indicadores chineses, as narrativas das lideranças do PCCh e as vivências nas cidades e lugares visitados. A partilha cultural é sempre uma partilha política. Na busca por uma nova era, dentro dos 75 anos da experiência comunista chinesa, que já nasceu sob seus próprios moldes, mas que não está livre de contradições e novos desafios, é importante o exercício constante de ir às montanhas. Compreender o mundo, não somente a China, sob as chagas do capitalismo do século 21 e dos novos desafios das experiências revolucionárias socialistas, que devem ser propagadas e reconhecidas.

*Nina Fideles é diretora executiva do Brasil de Fato

Edição: Lucas Estanislau