FUTURO

No México, Claudia Sheinbaum inaugura a segunda fase do 'obradorismo'

Presidenta eleita representa o feminismo e a continuidade da obra do atual presidente

Brasil de Fato | Enviado especial à Cidade do México |
Sheinbaum deve prosseguir com o projeto político e Obrador - AFP

Mesmo entre os defensores mais entusiastas da Quarta Transformação - termo usado pelo presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (AMLO) para definir as mudanças políticas, sociais e econômicas de seu governo as eleições no México excederam todas as expectativas. Claudia Sheinbaum não só se tornou a primeira mulher a ser eleita presidente do país, como também a dirigente mais votada da história recente do país.

Após seis anos de governo de López Obrador, a vitória de sua obra - a Quarta Transformação, com a eleição tranquila de sua sucessora -  é feito excecional num contexto internacional em que os governos encontram sérias dificuldades para serem reeleitos. No caso dos governos progressistas, de conseguir cumprir apenas parte das promessas de transformação com que chegam ao poder.

Com quase 60% dos votos, Sheinbaum teve o dobro dos votos obtidos por Xóchitl Gálvez, candidata apoiada por uma ampla aliança dos partidos tradicionais mexicanos -PRI, PAN, PRD-. Inclusive, teve 5 milhões de votos a mais que o próprio Andrés Manuel López Obrador recebeu em 2018.

A derrocada dos partidos conservadores tradicionais do país e a vitória esmagadora das forças da coligação liderada por Morena - partido de Obrador - , Sigamos Haciendo Historia, inauguram uma segunda etapa da Quarta Transformação.



Em entrevista ao Brasil de Fato, Rafael Barajas Durán, mais conhecido como El Fisgón, diretor do Instituto Nacional de Formação Política de Morena, diz que a vitória de Sheinbaum representa situação excecional não só para o país, mas também para todo o continente. Afirma que tem boas razões para estar otimista pois acredita que a esquerda, pela primeira vez em muito tempo, conseguiu construir um movimento político com bases sólidas.

Em relação ao próximo governo, Fisgón diz que “essa ideia que os conservadores têm de que Claudia Sheinbaum é simplesmente um apêndice de López Obrador é estupidez”. 

"Atualmente, há dois grandes movimentos sociais e políticos que estão transformando a sociedade mexicana. Um deles é, o obradorismo. O outro é o movimento feminista. Claudia Sheinbaum encarna estes dois movimentos que estão transformando radicalmente a nação. E os encarna bem, porque ela foi uma chefe de governo de muito sucesso. É uma mulher muito brilhante, muito inteligente, que fez uma campanha impecável".

Entre as conquistas eleitorais de Morena e a encarnação destes dois movimentos, Fisgón destaca também a figura de Clara Brugada, militante proveniente dos movimentos sociais, que foi eleita chefe de governo da estratégica Cidade do México com 51% dos votos.


A revolução das consciências

Rodeado por uma imensa biblioteca que ocupa toda a sala, El Fisgón conversa enquanto o seu telefone celular não para de receber chamadas. As estantes repletas de livros funcionam como amostra do seu vasto universo, onde uma centena de volumes sobre a história do México se espalham entre livros de arte e filosofia, clássicos do marxismo e da literatura mundial, livros infantis, narrativas de povos indígenas e novelas gráficas.

Célebre cartoonista, o trabalho de Fisgón sempre foi uma metralhadora de ideias e sensibilidades de esquerda. Quando tinha apenas 17 anos, os seus desenhos começaram a ser publicados numa revista trotskista chamada Bandera Socialista. Foi nessa época, no início dos turbulentos anos 70, que ele começou a frequentar os primeiros círculos de estudo de esquerda. Uma experiência que o acompanhou durante toda a sua vida. Já no século 21, entre 2004 e 2005, suas publicações no La Jornada serviram de apoio artístico e político a Andres Manuel Lopez Obrador.

"Há uma ideia bastante infantil de como os processos de mudança social ocorrem na história. Como se se tratasse apenas de um momento excecional. Mas não é assim. As mudanças sociais, as revoluções, são processos longos, onde se acumulam forças e experiências. Os processos de mudança têm sempre que ser constantes e contínuos, porque, entre outras coisas, o sistema que se quer desmantelar também funciona e cresce."

Fisgón afirma que a chave para esta segunda fase será “consolidar o que foi feito, mas também continuar a avançar. Porque o que não avança, retrocede."

Chave regional

"No primeiro governo da Quarta Transformação, o México concentrou-se em resgatar a nação mexicana. E eu acredito que agora é o momento de criar laços com o resto da América Latina", assegura.

Nesse sentido, o Instituto Nacional de Formação Política de Morena vem realizando um intenso trabalho de articulação com outras iniciativas progressistas do continente. Não só tentam promover seminários sobre experiências diversas levadas a cabo em diferentes países da América Latina e do Caribe, mas também oferecem seminários para movimentos sociais, partidos de esquerda e ativistas em geral que estejam interessados em conhecer melhor o processo no México.

"E hora de consolidar o movimento da Quarta Transformação entre as comunidades mexicanas que vivem nos Estados Unidos. Estamos falando de quase 12 milhões de habitantes. Se conseguirmos organizar os apoiadores da Morena nos Estados Unidos e treiná-los, a mudança poderá ir além da fronteira latino-americana. E esse é um desafio muito interessante. É claro que acho que precisamos fortalecer os laços com governos progressistas e movimentos progressistas na América Latina."

Acusações de fraude e a volta por cima 

Nas eleições presidenciais de 2006, Andrés Manuel López Obrador esteve a um passo de se tornar presidente do México. No entanto, essa oportunidade foi interrompida pelo que ainda hoje a esquerda mexicana denuncia como fraude. Com menos de um ponto de diferença e no meio de uma eleição cheia de irregularidades, o Tribunal Eleitoral do Poder Judicial decidiu declarar vencedor o candidato da direita, Felipe Calderón, membro do Partido de Ação Nacional. Decisão que provocou enorme indignação no país.

Fisgón afirma que a fraude contra López Obrador não foi apenas questão local. Destaca que, junto com o golpe de Estado que depôs o presidente hondurenho Manuel Zelaya em 2009, foi o início da ofensiva contra o progressismo na região.

"A vitória de López Obrador poderia ter criado sinergia muito eficaz com o bloco progressista no continente e é muito provável que tivesse levado a hegemonia neoliberal a uma crise mundial. Porque era um subcontinente inteiro a romper com essa hegemonia", observa.

Mas isso não aconteceu e o México foi impedido de participar nesse ciclo de governos progressistas. "E o que López Obrador fez, em vez de exigir um processo rápido e violento, o que poderia ter sido feito, foi ir às ruas novamente. Ele procurou reforçar o tecido social não conformista e consolidar um processo de transformação muito mais sólido e muito mais amplo", diz.

O próprio López Obrador viajou por todos os cantos do país. Rindo, Fisgón recorda que, por mais pequena que fosse uma cidade, não importava quantas pessoas fossem convocadas, havia sempre uma reunião, mesmo que fossem apenas duas pessoas.

Foi neste contexto que Fisgón decidiu começar a construir círculos de estudo. Espaços de educação popular a partir dos quais se organizaria o movimento. “Todo o processo de mudança começa com um movimento de ideias”, afirma. Longe do conforto académico, estas lutas culturais e políticas foram organizadas nos territórios e entre os sectores mais humildes. Enfrentando as consequências de décadas de corrupção e neoliberalismo no tecido social.

"E isso deu frutos em 2018, quando Andres venceu", diz com notável orgulho e felicidade. "E ele chegou com um movimento social muito articulado, um tecido social muito ampliado. E foi isso que, sem dúvida, permitiu que López Obrador permanecesse no governo e evitasse a guerra jurídica e midiática que foi travada contra ele nos últimos seis anos, que foi realmente brutal e inclemente."

As eleições de 2018 constituíram um verdadeiro terremoto político. Pela primeira vez na história do México, um partido que surgiu de um grande movimento social conseguiu vencer as eleições contra o sistema partidário tradicional do país. Com 53% dos votos, López Obrador conseguiu ganhar com 30% de vantagem sobre o direitista Partido de Ação Nacional.

Seis anos após a sua vitória, López Obrador deixa a presidência com uma imagem positiva de mais de 60% entre os mexicanos.


E o futuro?

Apesar da imensa incredulidade dos partidos tradicionais e dos seus comentadores políticos, Lopéz Obrador nunca tentou esconder as suas intenções para depois do seu mandato. No dia 1º de outubro, quando Claudia Sheinbaum assumir a presidência, ele vai retirar-se de toda a atividade política para ir viver no seu rancho La Chingada, situado no estado de Chiapas, onde diz querer dedicar-se à escrita depois de uma vida voltada à militância.

O contraste com a política tradicional é evidente. E assume uma dimensão ainda maior num país onde, ao longo das últimas décadas, a corrupção e a mentira do sistema político alcançaram proporções obscenas.

Foi contra essa mesma corrupção sistémica que a figura de Lopéz Obrador conseguiu irromper em nível nacional. Daí que dois dos principais pilares da sua liderança sejam o compromisso com o exercício ético da política e a pedagogia do exemplo, cuja bandeira é a "austeridade republicana": a ideia de que os líderes não devem viver no luxo.

Aqueles que o conhecem dizem que não há dúvidas de que ele cumprirá a palavra. Lopéz Obrador vai retirar-se da política para ir viver em La Chingada quando terminar o seu mandato. No entanto, mesmo que a sua decisão seja um sinal da coerência que tanto preconiza, não deixa de levantar importantes interrogações sobre o futuro do Obradorismo.

Que vazio deixará essa ausência no movimento que tem nele a sua referência? O que acontecerá, especialmente entre os sectores populares, que se identificam com a sua liderança? Será Sheinbaum capaz de preencher, pelo menos parcialmente, essa falta?

Parece não haver dúvidas na resposta de Fisgón. “Acho que ela será muito boa para substituir López Obrador”, afirma sem rodeios. A sua resposta não parece basear-se num otimismo ingénuo, mas ele sabe perfeitamente o que a ausência de uma liderança sua pode significar para os movimentos populares. Conhece as implicações turbulentas das transições de liderança no nosso continente.

"Um líder histórico não é substituído por ninguém. Eles são insubstituíveis. Pessoas como Hugo Chávez ou Mao Tse-Tung não são fáceis de substituir. Só é possível substituí-los com um movimento ativo e com quadros de alto nível. E eu acredito que no México temos um movimento ativo e temos líderes muito bons como Claudia Sheinbaum. E isso é muito encorajador para nós."

Construir este movimento ativo do qual fala sempre foi a obsessão militante de Fisgón. Repete-o uma e outra vez, convencido de que é aí que reside o destino de um processo político.

Uma convicção que o levou a rejeitar a possibilidade de se tornar senador nacional para dedicar os seus melhores esforços na base, acompanhando e construindo os processos de educação popular que permitiriam a construção do movimento.

Com essa certeza, Fisgón explica que "o projeto do Instituto Nacional de Treinamento Político se baseia em duas ideias simples, mas muito eficazes. A primeira é que a educação política transforma o indivíduo. E que a educação política em massa pode transformar a sociedade. E a segunda é que é possível desenvolver a inteligência coletiva. E estamos trabalhando nisso."

Edição: Rodrigo Durão Coelho