Programa pode servir para fortalecer as centralidades existentes na zona norte e zona oeste do Rio
Adauto Lúcio Cardoso*, Luciana Alencar Ximenes**, Ivan Zanatta Kawahara***, Samuel Thomas Jaenisch**** e Thais Velasco*****
O governo federal anunciou a retomada do Programa Minha Casa Minha Vida em fevereiro de 2023, cumprindo com uma das principais promessas da campanha conduzida pela coalizão de centro-esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na última corrida presidencial. O programa reafirmou sua promessa de produzir moradia acessível para a população de baixa renda, reconhecendo as limitações de sua primeira versão, vigente entre 2009 e 2018, buscando ampliar o pacote de benefícios para garantir uma produção de maior qualidade.
Diante deste anúncio, é necessário que retomemos as avaliações críticas à sua versão anterior, especialmente tendo em vista os resultados da implementação do programa em sua primeira versão na cidade do Rio de Janeiro, quando mais de R$ 9 bilhões foram investidos.
A implementação do programa na cidade do Rio de Janeiro foi muito criticada pela localização dos empreendimentos financiados, em sua grande maioria construídos em frentes de expansão no limite da área urbanizada, principalmente nos bairros da zona oeste. Como mostram dados levantados junto ao antigo Ministério do Desenvolvimento Regional, entre os anos de 2009 e 2018, foram construídas na cidade do Rio de Janeiro cerca de 38 mil unidades habitacionais destinadas à população de baixa renda (antiga Faixa 1).
Desse total, cerca de 55% foram construídas nas regiões de Santa Cruz e Campo Grande. Essas novas moradias foram instaladas em áreas precárias em termos de oferta de infraestrutura urbana, mal servidas pelas redes de transporte público, distantes dos principais polos de emprego e renda, além de mais expostas ao controle armado de grupos criminosos. Problemas que muitas vezes se somaram à baixa qualidade arquitetônica e construtiva dos empreendimentos, que reproduziam em larga escala soluções padronizadas alheias às demandas cotidianas dos seus futuros moradores.
Esses problemas já foram amplamente relatados pela imprensa e discutidos por especialistas nos últimos anos. Com a retomada do programa, é importante que esse debate siga sendo feito na cidade, ressaltando o papel dos poderes locais para garantia de maior efetividade no atendimento às demandas habitacionais existentes. Este artigo pretende apresentar algumas propostas nesse sentido, tendo como horizonte as eleições municipais de 2024.
Poder público municipal
Um elemento fundamental para garantir a efetividade da política habitacional é a presença de uma estrutura administrativa, na prefeitura municipal, que seja compatível com a complexidade da demanda por moradia existente na cidade. Para isso é importante fortalecer os órgãos competentes, em especial a Secretaria Municipal de Habitação, valorizando seu corpo técnico e garantindo os recursos orçamentários necessários.
A política de habitação de interesse social deve ser permanente e continuada, orientada por um planejamento de longo prazo que identifique as demandas e proponha soluções, tratando o desenvolvimento urbano da cidade de forma integrada. Nesse sentido, um instrumento fundamental é o Plano Local de Habitação de Interesse Social, que até então segue inconcluso. Também é importante ressaltar a urgência de garantirmos a efetividade de mecanismos de participação popular e de controle social na política habitacional a fim de integrar a sociedade civil organizada nas ações de planejamento.
Localização dos empreendimentos
A nova versão do Programa Minha Casa Minha Vida incorporou em sua normativas mecanismos para incentivar a produção em áreas urbanas dotadas de infraestrutura, prevendo subsídios adicionais para os empreendimentos enquadrados nessas condições. Ela contempla o estímulo a políticas fundiárias que garantam a oferta de terra em áreas urbanas consolidadas para produção de habitação de interesse social, prevendo também a requalificação de imóveis subutilizados em áreas centrais.
Essa é uma iniciativa importante, pois busca evitar o processo de periferização da população de baixa renda verificado na primeira versão do programa. Mas cabe ao poder público municipal assumir isso como diretriz central de sua política urbana e elaborar estratégias adequadas para tal. Devem ser consolidados mecanismos de mapeamento de terrenos e imóveis que possam ser utilizados no programa e que estejam integrados às áreas mais dinâmicas da cidade. Já possuímos instrumentos de zoneamento urbano destinados para isso e que devem ser aplicados, demarcando áreas prioritárias para a produção de moradia popular. O próprio Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro já prevê a possibilidade do uso de instrumentos como as Áreas Especiais de Interesse Social para a demarcação de áreas prioritárias para produção de habitação social, no entanto, isso segue ocorrendo de forma muito tímida na cidade.
Vale ressaltar que a região central e portuária da cidade deve ter protagonismo nessas propostas. Trata-se de uma área que recebeu volumosos investimentos públicos em infraestrutura na última década e que conta com um grande estoque de terras públicas disponíveis. A região vem sendo alvo de programas de renovação urbana, primeiro com o Projeto Porto Maravilha e agora com o Reviver Centro, sem que tenha sido tomada qualquer medida concreta para a garantia da produção de habitação de interesse social. Os efeitos desses programas seguem no caminho inverso, intensificando a elitização da região, criminalizando a presença dos espaços populares de moradia e trabalho, inclusive com um número expressivo de ameaças de remoções em curso.
Além de incentivar a produção de moradia de habitação de interesse social na região central e portuária, outra alternativa a ser considerada na cidade é o uso da política para fortalecer as centralidades existentes na zona norte e zona oeste. A cidade do Rio de Janeiro possui uma estrutura urbana complexa, com polos de grande dinamismo econômico em diversos bairros (Bonsucesso, Penha, Madureira, Bangu, Taquara, Campo Grande) que podem se beneficiar de investimentos em infraestrutura urbana associados a projetos de provisão habitacional. Essa seria uma forma de integrar os investimentos do Programa Minha Casa Minha Vida a uma política mais ampla de desenvolvimento urbano.
Violência e precarização da vida
Um dos principais pontos críticos da primeira versão do Programa Minha Casa Minha Vida foi sua vulnerabilidade frente aos grupos armados que atuam na cidade do Rio de Janeiro, tanto facções ligadas ao tráfico de drogas quanto milícias, conforme amplamente divulgado pela imprensa nos últimos anos, inclusive em textos publicados nesta mesma coluna. Esse problema está diretamente ligado à adoção do modelo de produção de conjuntos habitacionais de grande escala e ao processo de periferização dos empreendimentos, que foram construídos nas mesmas frentes que estavam sendo disputadas por esses grupos, principalmente na zona oeste, deixando seus moradores em situação de extrema vulnerabilidade.
Isso reforça a importância de manter uma política de habitação de interesse social que esteja integrada a ações mais amplas de planejamento urbano, inclusive dialogando com as políticas de segurança pública e de garantia de direitos humanos. A retomada do programa na cidade deve incorporar isso em suas prioridades, ampliando os mecanismos de proteção aos moradores e revendo suas diretrizes à luz da experiência acumulada.
Auxílio Habitacional Temporário
Na cidade do Rio de Janeiro, a retomada do programa encontra ainda o desafio de atender ao grande número de inscritos no Auxílio Habitacional Temporário, política conhecida popularmente na cidade como “Aluguel Social”. Essa política municipal prevê o pagamento de auxílio mensal para custear o aluguel da população de baixa renda que tenha passado por deslocamentos forçados, tanto nos casos de remoções promovidas pelo próprio poder público municipal quanto em consequência de vulnerabilidade socioambiental e risco.
Como mostram os dados mais recentes fornecidos pela Secretaria Municipal de Habitação, mais de 3.000 famílias foram atendidas mensalmente por esse auxílio ao longo do ano de 2023. Restou a elas buscar moradias de aluguel contando apenas com R$400,00 mensais recebidos para esse fim. Para além do valor insuficiente para a garantia de moradia adequada diante dos preços praticados no mercado imobiliário da cidade, essa situação é agravada pelo longo tempo de permanência das famílias como beneficiárias do auxílio enquanto aguardam o reassentamento definitivo. Há casos de mais de dez anos de espera.
Diante dessa retomada do Programa Minha Casa Minha Vida, o poder público municipal deve assumir o compromisso de contemplar a população que vem recebendo esse auxílio. Tendo em vista que tratam-se de famílias que já sofreram com deslocamentos forçados, é importante articular a produção dessas novas moradias com ações que visem manter as famílias próximas de seus locais de origem, onde moravam anteriormente, preservando seus laços de pertencimento com o território e suas redes de sociabilidade.
Protagonismo dos movimentos sociais
O poder executivo municipal tem um papel central na implementação do Programa Minha Casa Minha Vida na escala local, mas cabe à sociedade civil cobrar soluções que sejam adequadas às demandas habitacionais da população, inclusive valorizando a atuação das organizações populares engajadas com o debate sobre a Reforma Urbana e o Direito à Cidade. A nova versão do programa manteve em seu escopo a modalidade Entidades, voltada para o financiamento da produção habitacional conduzida por movimentos sociais organizados. Essa modalidade apresentou resultados muito satisfatórios na versão anterior do programa, devendo ser incentivada e viabilizada nesta retomada.
A cidade do Rio de Janeiro ainda mantém uma produção tímida nessa modalidade, quando comparada com outras cidades do país. Cabe, portanto, ao poder público municipal criar condições favoráveis para a atuação dos movimentos engajados na luta pela democratização do acesso à moradia e das assessorias técnicas que prestam o suporte necessário. É possível, por exemplo, implementar ações articuladas à liberação de terrenos e imóveis em áreas bem inseridas na dinâmica urbana, concedendo benefícios para complementação dos valores financiados.
A retomada do Programa Minha Casa Minha Vida pelo governo federal foi um passo importante no sentido de oferecer novas possibilidades para diminuir as desigualdades que marcam o processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro. Mas é fundamental que o executivo municipal conduza a sua execução produzindo uma cidade mais justa e igualitária, democratizando o acesso aos mecanismos de planejamento e gestão, tendo o acesso à moradia digna como prioridade. Para isso é fundamental que o programa cumpra seu papel social, operando como uma política efetivamente inclusiva e redistributiva.
Revisão: Renata Melo.
*Adauto Lúcio Cardoso é arquiteto e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP. É professor titular do IPPUR/UFRJ.
**Luciana Alencar Ximenes é arquiteta e urbanista. Mestre e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ
***Ivan Zanatta Kawahara é arquiteto e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFF.
****Samuel Thomas Jaenisch é sociólogo. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR/UFRGS, Doutor e Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. É professor colaborador do GPDES/UFRJ.
*****Thais Velasco é arquiteta e urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP.
******Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Mariana Pitasse