“É muito triste. A água saía pelo bueiro, não veio pelo muro. Água suja. Quando eu saí, às sete da noite, a água dava na canela dentro da banca. Eu consegui salvar algumas coisas, muitas eu perdi. A chuva levou tudo que tinha. Quando eu abri, tudo revirado. Mas o mais importante é que a vida ficou. O resto a gente trabalha e conquista de novo”.
O desabafo é de José Fernando Araújo dos Santos, 56 anos, dono da banca de jornal e revista que fica na Avenida Borges de Medeiros, no Centro Histórico de Porto Alegre, em frente ao Mercado Público Municipal. Apenas nessa área central, foram mais de 8,7 mil empreendimentos prejudicados com as enchentes, segundo levantamento da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET).
José nasceu praticamente dentro da banca, uma vez que o seu pai, Jorge Alves dos Santos, montou o negócio no início dos anos 60. O estabelecimento, que a princípio vendia apenas jornais, com o passar dos anos, foi diversificando os produtos, com a venda de revistas e livros. Com a morte do pai, o comércio passou a ser administrado pela mãe, e atualmente, José divide com a irmã.
Ao acordar naquela sexta-feira, 3 de maio, o morador do bairro Cavalhada, na zona sul da capital gaúcha, não poderia imaginar o quanto que a rotina e a vida mudariam em um curto espaço de tempo. Passado meio dia, as águas começaram a tomar conta das ruas do entorno da banca. Ao fechar o estabelecimento, às 19h, a água já estava pela canela. “A gente sabe da enchente de 41, sabia que um dia se repetiria, mas que levaria mais tempo para acontecer.”
A primeira vez que ele voltou à banca foi no dia seguinte, sábado (4), já de barco, e o sentimento era de desolação. Quando a água baixou no centro, ele pode voltar e "o cenário foi de terror". “Chorei muito. Eu espero que isso demore a repetir. Agora a gente tem que se cuidar porque, de repente, isso vai ser frequente. Espero que as nossas governanças resolvam esse negócio das bombas, para a água não vir para dentro da cidade de novo. Eu tenho amigo que perdeu a empresa, perdeu a casa, que tudo funcionava junto. Uma amiga teve que ficar em abrigo. Conhecidos que só ficaram com a roupa do corpo”, conta.
José voltou a trabalhar na segunda-feira (3), um mês depois da catástrofe chegar às ruas da capital.
Limpar, limpar e recomeçar
A reportagem do Brasil de Fato RS encontrou José Fernando na última quinta-feira (30), feriado de Corpus Christi. Na ocasião, ao andar pelo entorno da Prefeitura de Porto Alegre, Mercado Público, Voluntários da Pátria e Andradas, o que se via era um grande contingente de pessoas limpando ruas e estabelecimentos. Muito lixo, forte odor e lama. A limpeza do centro, e principalmente do Mercado Público, começou há uma semana.
“Agora é limpar, limpar e recomeçar”, disse um comerciante enquanto varria o estabelecimento na Rua dos Andradas. Um transeunte, passeando devagar pelas ruas do centro diz: “Nem parece a nossa Porto Alegre, né?”. Já na Praça da Alfândega, quando o sol apareceu naquela quinta-feira, dois senhores jogavam damas. Os sentimentos também estão confusos para o funcionário, há 14 anos, da empresa Café do Mercado, Luiz Carlos da Silva.
“Fica um sentimento de perda inenarrável, parece que não vai ser a mesma coisa. Está complicado, é um processo pesado. Sentimento de luto. É muito barro, o cheiro está insuportável. A gente está preocupado com esse cheiro, se vai ficar impregnado ou não”, conta.
Morador do Jardim das Palmeiras, no Cavalhada, Luiz Carlos conta que na sexta-feira dos temporais, no dia 3 de maio, assim que estouraram as bombas começou a enchente. "Foi uma situação de guerra. Saiu todo mundo, fechamos as portas. A gente não acreditou que ia elevar tanto o nível da água. Estamos voltando agora, praticamente quase 30 dias depois nessa situação, com muita lama e cheiro forte. Começamos a limpar faz dois dias. Temos três lojas aqui no Mercado Público, uma torrefação na Cairu, e uma matriz. Foi tudo afetado, são torradores, matéria-prima, embalagens, produto acabado em estoque, sistema, tudo. Além da questão material, a gente tem uma história com o Mercado Público.”
Luiz conta que a história do Café Mercado começou em 1997, com uma pequena loja que foi crescendo durante os anos. A região em que mora, no Cavalhada, não foi atingida, mas ele relata que colegas que moram próximo à Arena e em Eldorado do Sul perderam tudo. “A gente está numa corrente humana entre nós, os funcionários, os colegas, e mais um pessoal ajudando, para que eles voltem da melhor maneira. Agora é levantar a cabeça, força, fé, muita fé”, conclui.
A operação de limpeza no Mercado Público, que havia sido iniciada no dia 23 de maio, foi interrompida pelo temporal que atingiu a cidade naquele dia. O serviço foi reiniciado na terça-feira, dia 28. De acordo com reportagem do site Sul 21, a limpeza inclui a remoção do lodo por meio de hidrojateamento e auxílio de caminhão-pipa, além da desinfecção do local. A Associação do Comércio do Mercado Público Central (Ascomepc) estimou que os primeiros lojistas devem retomar suas atividades na primeira quinzena de junho e reforçou a necessidade de medidas de apoio aos mercadeiros, cujas perdas são estimadas em R$ 30 milhões.
45 mil atividades econômicas foram afetadas na capital
Levantamento da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET) aponta que 45 mil atividades econômicas foram impactadas pela enchente em Porto Alegre, distribuídas em 31 bairros. As informações podem ser consultadas no painel econômico desenvolvido pela secretaria.
O centro histórico lidera o ranking das áreas mais prejudicadas (8.773 empreendimentos), seguido por Navegantes (4.234), Sarandi (4.051), Floresta (3.980) e Menino Deus (3.871).
Os segmentos mais atingidos foram o varejo (7.256 negócios), alimentação (2.973), serviços administrativos (2.568), condomínios prediais e atividades paisagísticas (2.311) e comércio atacadista (2.227).
O governo municipal criou uma série de medidas fiscais para minimizar os efeitos das enchentes na economia e na vida dos cidadãos. Para os contribuintes das áreas atingidas que não conseguirem pagar o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e a Taxa de Coleta de Lixo (TCL), referentes aos meses de maio e junho de 2024, a prefeitura propõe cancelar estas duas parcelas.
Já o Programa de Recuperação Fiscal (RecuperaPOA 2024) permite a renegociação de dívidas, com desconto de 95% das multas e juros para pagamento à vista de dívidas com tributos como IPTU, ISSQN, ITBI e TCL. A Taxa de Fiscalização de Localização e Funcionamento (TFLF); créditos de natureza não tributária inscritos em Dívida Ativa; e Imposto sobre Vendas a Varejo de combustíveis líquidos e gasosos (IVV), exceto óleo diesel, também estão contemplados no programa. O recolhimento do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN), principal tributo do município, será prorrogado por dois meses.
De acordo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), a estimativa é de que 700 mil pequenos negócios tenham sido afetados pelas fortes chuvas no estado até o momento. A instituição fez o aporte de R$ 2 bilhões no Fundo de Aval para a Micro e Pequena Empresa (Fampe) e deve gerar R$ 30 bilhões em empréstimos
Além disso, com o objetivo de apoiar os pequenos empresários gaúchos, o governo federal anunciou, no dia 9 de maio, a Medida Provisória nº 1.213, de 22 de abril de 2024, que institui o Programa Acredita.
De acordo com o Ministério da Fazenda, a medida busca reestruturar parte do mercado de crédito no Brasil, estimular a geração de renda, emprego e promover o crescimento econômico. “Trata-se de um conjunto de ações destinadas a diversos segmentos, com especial atenção à população mais vulnerável e com mais dificuldade de acesso a crédito."
O programa é estruturado em quatro pilares fundamentais. Um programa de microcrédito destinado aos inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) e outro, Procred 360, que foca no apoio a Microempreendedores Individuais (MEIs), Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, incluindo a renegociação de dívidas vinculadas ao Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe). O terceiro pilar visa estimular a criação de um mercado secundário para o crédito imobiliário, melhorando a liquidez e o acesso ao financiamento no setor. O último eixo institui o Eco Invest Brasil, que garante proteção cambial para incentivar investimentos em projetos verdes ambientalmente sustentáveis.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko