Em meio às águas, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra se dedica a prestar socorro emergencial.
Queridas amigas e amigos,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Desde 28 de abril, chuvas intensas, ventos fortes e enchentes generalizadas atingiram o estado do Rio Grande do Sul, matando mais de 160 pessoas e afetando 2,3 milhões de pessoas. As águas foram subindo, atravessando casas e campos, apagando não apenas lares e memórias ali construídas, mas também muitas plantações do maior estado produtor de arroz do país, uma potência agrícola, cujos impactos provavelmente repercutirão em todo Brasil.
Agências e autoridades meteorológicas previram os eventos com uma precisão assustadora. Uma semana após a enchente, especialistas apontaram as chuvas extraordinárias como a principal causa. Estael Sias, diretora administrativa da empresa de previsão do tempo MetSul, escreveu que “não se trata de apenas um episódio de chuva extrema”, mas “um evento meteorológico cujos adjetivos são todos superlativos, de extraordinário a excepcional”. A chuva aparentemente interminável, escreveu ela, “foge absurda e bizarramente ao que é normal”. Levará muito tempo para que essa região do Brasil se recupere.
Dentro das águas da enchente há vários acampamentos e assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sobre os quais publicamos um dossiê no mês passado para comemorar o 40º aniversário do movimento. O MST nasceu das lutas pela terra no Rio Grande do Sul, onde mantém uma forte presença e se tornou o epicentro da produção de arroz agroecológico. Essas são as mesmas terras nas quais o MST cultivou grande parte das 13 toneladas de alimentos que doou à Faixa de Gaza de outubro a dezembro do ano passado, e as mais de 6 mil toneladas de alimentos que doou a comunidades carentes durante a pandemia da Covid-19, conforme escrevemos em nosso dossiê. Muitas dessas terras, bem como as instalações usadas para processar suas colheitas, foram danificadas pela enchente. Os moradores de assentamentos do MST, como o Apolônio de Carvalho e o Integração Gaúcha, perderam imensas quantidades de seus recursos.
As imagens desta carta semanal, extraídas de um relatório do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) do Brasil, usam imagens de satélite do Programa Brasil M.A.I.S., do Ministério da Justiça e Segurança Pública, e mostram algumas das terras do MST antes e depois das enchentes – terras agora inundadas pela água que levou materiais tóxicos para o solo. O MST concentrou seus esforços de socorro não apenas em seus próprios integrantes, mas também nas pessoas da região que perderam tudo com as inundações, das quais não podem escapar. Se quiser ajudar o MST em seus esforços de socorro às vítimas das enchentes e na reconstrução dos assentamentos, é possível doar aqui.
No ano passado, depois que uma enchente muito menos grave afetou Porto Alegre (capital do Rio Grande do Sul), a arquiteta brasileira Mima Feltrin, com base no trabalho do professor de hidrologia Carlos Tucci, alertou que o estado enfrentava um risco iminente de inundação igual ou pior do que as enchentes históricas de 1941 e 1967. As análises de acadêmicos como Tucci e Feltrin alertaram repetidamente sobre o impacto e as ameaças iminentes das mudanças climáticas provocadas pelas emissões de carbono em todo o mundo, bem como sobre as deficiências das políticas implementadas por políticos imprudentes que negam as mudanças climáticas.
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Quando as águas das enchentes subiram no Rio Grande do Sul, em 2023, elas também inundaram Derna (Líbia), a Grécia central, o sul da China, o sul do estado de Nevada (Estados Unidos) e o nordeste da Turquia. A explicação imediata para essas enchentes é que elas são causadas por mudanças climáticas impulsionadas pelas emissões de carbono, intensificadas pela recusa dos governos do Norte Global em conter suas emissões excessivas de carbono. Mas a explicação mais ampla é que a catástrofe climática é, em grande parte, o produto do desenvolvimento capitalista imprudente, especialmente em cidades localizadas em áreas previsivelmente perigosas para se habitar (como assentamentos costeiros de planície construídos ao lado de florestas de mangue devastadas e fluxo de rios mal administrados ou ao lado de florestas que enfrentam longos períodos de seca). Esse desenvolvimento imprudente é exacerbado pelo subfinanciamento desenfreado das agências reguladoras ambientais e pelo corte deliberado dos orçamentos que mantêm e revitalizam a infraestrutura que é crucial para proteger as pessoas de eventos climáticos adversos. Com a enchente na Líbia, por exemplo, o Estado – já destruído pelo duro bombardeio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em 2011, e envolto em confusão e corrupção, negligenciou as barragens em ruínas de Derna. O mesmo tipo de atitude tem sido exibido no sul do Brasil nas últimas décadas.
Os dois prefeitos mais recentes de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (2017-2021) e Sebastião Melo (2021-), bem como o governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite, passaram seus mandatos corroendo as instituições de base de suas administrações. O governador Leite, por exemplo, eliminou 480 leis do código ambiental de seu estado como parte da agenda antiambiental propagada pelo presidente de extrema direita Jair Bolsonaro (2019-2022). Enquanto isso, o prefeito Marchezan Júnior ignorou a necessidade de financiar a infraestrutura de prevenção de enchentes, incluindo a reforma de 13 casas de bombas que eram fundamentais para o sistema de drenagem de Porto Alegre, e sua administração fechou todo o Departamento de Sistemas de Drenagem Pluvial (DEP), que havia sido criado em 1973 para gerenciar a drenagem. Marchezan Júnior e Melo, juntamente com seu antecessor José Fortunati, reduziram o número de funcionários nos departamentos que gerenciavam os sistemas de esgoto e água.
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Pessoas como Leite, Marchezan Júnior e Melo têm uma atitude de desconsideração pela maioria da população e de grande consideração pelas contas bancárias offshore dos ricos e de seus amigos, a classe de investidores ocidentais. Essas pessoas foram moldadas pelo grande capital brasileiro, cujos interesses são consolidados por grupos como o Instituto Liberal, criado em 1983 para promover as ideias neoliberais de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, e por intelectuais da ditadura militar (1964-1985), como os ministros da economia Roberto Campos e Hélio Beltrão. Essas ideias foram trazidas para o mainstream pelo ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), cujo Plano de Reforma do Aparelho do Estado (1995) usou a ideia de “modernização” para minar as instituições estatais e iniciar o que a professora Elaine Rossetti Behring chamou de um período de “ajuste fiscal permanente”. Cardoso, Leite, Marchezan Júnior e Melo são os Homens da Austeridade, proponentes de uma contrarrevolução contra a humanidade.
Quando a catástrofe acontece, como foi o caso no Rio Grande do Sul, essas autoridades neoliberais são rápidas em culpar a mudança climática, como se fosse uma espécie de inevitabilidade na qual elas não tiveram nenhuma participação. No entanto, quando se trata do clima, essas pessoas são as primeiras a avançar a agenda das empresas de combustíveis fósseis e a promover ideias e políticas que equivalem ao negacionismo da mudança climática. Seu negacionismo não está enraizado na ciência, mas em interesses de classe que priorizam os grandes negócios em detrimento das pessoas e do planeta. Eles não têm argumentos científicos para explicar a catástrofe climática, já que não há base científica para o negacionismo, que busca – com total desprezo pelo destino do planeta – garantir a distribuição de riqueza para os ricos.
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De 1968 a 1980, o poeta brasileiro Mário Quintana (1906-1994) morou no Hotel Majestic, em Porto Alegre, onde escreveu belos poemas sobre o que ele chamava de “coisas simples”. Pouco antes da morte de Quintana, seus apoiadores e amigos construíram a Casa de Cultura Mário Quintana no Hotel Majestic, que o governo estadual comprou, restaurou e transformou em um centro cultural na década de 1980. Esse hotel, a casa de Quintana, tornou-se um refúgio para escritores e artistas mostrarem seus trabalhos. Ela foi inundada pela enchente deste ano.
Em 1976, a partir desse hotel, Quintana escreveu “A Grande Enchente”, motivado pelas inundações de 1941 e 1967:
Cadáveres de Ofélias e cadelas mortas
virão parar por um instante às nossas portas.Porém —sempre à mercê dos redemoinhos —
prosseguirão depois seus incertos caminhos…Quando a água alcançar as mais altas janelas
Eu pintarei rosas de fogo em nossas faces amarelas.O que importa o que há de vir? Tudo é poupado aos
loucos
e os loucos tudo se permitem. Vamos!Espíritos de deuses, sobre as águas pairamos.
Alguns de nós dizem que apenas somos nuvens…
Outros, uns poucos,
dizem que somos nada mais que mortos…Mas não avisto, lá embaixo, os nossos próprios
defuntos… E em vão, também, olho em redor…Onde é que estão vocês,
amigos, amigas, dos primeiros e dos últimos dias?É preciso, é preciso, é preciso continuarmos juntos!
E, então, num último, e diluído, e triste pensamento
eu sinto que o meu grito é só a voz do vento…
Cordialmente,
Vijay.
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
**Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas