Aprovado pelo Congresso Nacional desde maio de 2022 com apoio quase unânime dos parlamentares e convertido em lei em agosto do mesmo ano, o piso nacional da enfermagem ainda esbarra em resistências que dificultam a garantia dos valores estabelecidos em lei a todos os trabalhadores do segmento.
O imbróglio se arrasta desde os primórdios da discussão sobre a criação da norma, quando o lobby do setor empresarial começou a impor barreiras à aprovação do piso sob o argumento de dificuldade de custeio dos valores: R$ 4.750 para enfermeiros, com 70% desse valor (R$ 3.325) para técnicos de enfermagem e 50% (R$ 2.375) para auxiliares e parteiras
A principal decisão em torno do debate salarial da categoria, no entanto, ficou por conta do Supremo Tribunal Federal (STF). No final do ano passado, a Corte selou o destino do piso ao deliberar que os valores mínimos salariais estipulados pela nova lei deveriam se referir à remuneração total dos trabalhadores da enfermagem, e não ao salário-base. Definiu ainda que o salário poderia ser reduzido de forma proporcional, partindo do pressuposto de que o piso seria para uma carga de 44 horas semanais de trabalho.
A decisão caiu como um balde de água fria na categoria, que começou a mobilização pelo piso ainda no final da década de 1980 até obter a aprovação da lei em 2022, bem como irritou os parlamentares. Deputados e senadores interpretaram a deliberação do STF como uma intervenção indevida no trabalho do Congresso Nacional, onde há entendimento majoritário a favor da lei 14.434/2022.
Além disso, a saga legislativa que levou à aprovação da norma envolveu uma série de acordos, costuras políticas pluripartidárias e ainda a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 127/2022, que prevê o repasse de verbas de fundos públicos e do Fundo Social para custear o piso na administração pública, nas entidades filantrópicas e nos prestadores de serviço que tenham um mínimo de 60% de seus pacientes atendidos via Sistema Único de Saúde (SUS).
"Houve um drible em cima daquilo que foi legislado e, ao mesmo tempo, uma desmoralização do Congresso", queixa-se a deputada Alice Portugal (PcdoB-BA). Também incomodou os parlamentares o fato de o Supremo ter definido que o piso para profissionais celetistas deveria ser implementado de forma regionalizada e por meio de negociação coletiva. A lei, apesar disso, fixa que os novos valores devem ser aplicados para servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, dos estados, municípios e Distrito Federal, bem como para celetistas.
"A lei definiu um piso de R$ 4.750, mas agora não é mais esse valor porque, quando o Supremo legislou em 44 horas, criou um problema. Veja: se uma enfermeira trabalha 40 horas, por exemplo, ela não vai receber R$ 4.750, ela vai receber R$ 4.318. O Supremo mudou a lei por interpretar uma carga horária que, no setor público, por exemplo, nem existe. Segundo, o STF regionalizou o piso para o setor privado. Isso é um assunto macroeconomicamente já superado no Brasil, que acabou com a regionalização do salário mínimo há algumas décadas", critica o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), autor da EC 127.
Enquanto a efetivação desses valores não chega para todo mundo, a vice-presidenta da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), Shirley Morales, conta que o desafio político para a categoria tem se ampliado nos bastidores da profissão.
"Do jeito que ficou era melhor nem existir nada porque tem alguns trabalhadores que já recebiam mais do que o piso e, agora, com a decisão do STF, a pressão dentro do setor privado é para que as pessoas negociem para receber menos, porque ficou tudo muito confortável para o patrão. Isso cria um processo de desesperança nos trabalhadores. O pessoal se sente amedrontado, assediado e sem esperança. Tem gente até querendo sair do país ou migrar de profissão", conta.
PEC 19
O capítulo atual da jornada política em prol do piso é o foco dos parlamentares e da categoria na tentativa de aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 19/2024, que fixa uma jornada de 30 horas semanais para os trabalhadores do ramo. Uma das principais articuladoras da medida, Alice Portugal diz que a ideia de 44 horas para a enfermagem seria "uma ficção". "Se aprovarmos as 30 horas, fica garantida a jornada real. É uma jornada indicada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como sendo capaz de garantir a saúde de quem cuida da saúde dos outros. Você ficar mais de seis horas por dia em pé, andando numa enfermaria leito a leito, num centro cirúrgico, numa UTI, é algo muito estressante e, se você faz isso em três vínculos empregatícios diferentes, não há inclusive segurança nem para o paciente."
Assim como ocorreu com as demais propostas legislativas já aprovadas pelo Congresso em torno do piso da enfermagem, a PEC 19/2024 conta com ampla maioria no Legislativo e por isso tende a ser aprovada pelo Senado e pela Câmara com folga no placar de votação. "O que a categoria precisa é que a gente trabalhe para vencer essa questão do piso. A única coisa que eu acho difícil agora é a gente trocar a ideia de piso por 'vencimento-base', que seria o correto, mas agora é mais complicado", ressalta Mauro Filho, ao mencionar o empecilho gerado pela decisão do Supremo.
Trabalhadores
A batalha em torno da PEC 19 inclui ainda um trecho da proposta que prevê para os trabalhadores um reajuste anual sobre o piso que não seja inferir ao índice da variação inflacionária acumulada no período de 12 meses imediatamente anterior ao de cada ajuste. A presidenta da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), Solange Caetano, afirma que, ainda que se garanta a carga de 30 horas semanais, o piso tende a ficar defasado com o tempo se não houver uma correção permanente dos valores.
"Hoje a enfermagem não tem garantia de que este ano, por exemplo, a gente consiga negociar uma reposição do INPC ou segundo algum outro índice que seja favorável. Vamos trabalhar agora junto à Comissão de Constituição & Justiça (CCJ) do Senado e começar a luta." A PEC ainda não tem data definida para ser votada no colegiado.
Edição: Thalita Pires