Estamos há pouco tempo nos recuperando de um trauma coletivo que foi a pandemia da covid-19. Reestruturando vidas. Recuperando a dignidade do trabalho, a dignidade de habitar, a dignidade de comer, também tocar e sentir, voltar a nos relacionarmos socialmente e com nossos afetos. Esse trauma que essa geração vivenciou é algo sem precedentes, uma crise sanitária a nível mundial com reflexos econômicos e sociais gravíssimos sentidos até hoje.
Vale lembrar que junto à crise sanitária estávamos imersos em uma crise política, institucional, social e econômica severa. Eram camadas e mais camadas de elementos que agravavam a situação. Agora, nessa nova tragédia, muitos de nós ainda não conseguiram reestruturar suas vidas e trabalho.
Muitos de nós entraram em uma situação de superendividamento, que agora, nesta nova catástrofe, será um limitador de reconstrução. E acredito que nunca mais seremos os mesmos.
No episódio da pandemia, os impactos também tiveram recorte de raça e classe. Eu insisto nisso, porque a olho nu, se todos passarem a enxergar verdadeiramente e com honestidade, essa constatação fica evidente e assustadora. Também nesse período tivemos de lidar com situações que inauguraram uma nova forma de agir e existir. Não sabíamos, como civis, lidar com situações de disseminação de vírus, demandas médicas e sanitárias - especialmente porque não tínhamos um Estado preparado para esse tipo de situação, de forma a orientar um protocolo preciso.
Diferente disso, o governo manteve uma postura negacionista, contrariando orientações da ciência organizada internacionalmente para apresentar soluções e meios de preservação das vidas. Foram falas institucionais prestando um desserviço à nação. Vale recordar, fazendo um paralelo ao caso atual de Porto Alegre em relação à inundação, que o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, demorou muito a se pronunciar sobre diversas situações, deixando a população à deriva, em pânico coletivo, sem direcionamento algum. E por que o pronunciamento é importante? Porque as pessoas, apesar de tudo, acreditam na máxima autoridade do município e isso se aplica à máxima autoridade dos estados e da União.
A manifestação de um chefe do Executivo é corretamente entendida pela população como um direcionamento a ser seguido com a expectativa de que seja uma indicação baseada em evidências, estudos e estratégias. Uma orientação tempestiva e segura. Na pandemia e agora nas inundações que assolaram nosso estado, nosso povo sofreu com a desinformação, a subnotificação e o negacionismo da situação catastrófica colocada.
Também na pandemia, muitos de nós compreendiam que a causa de tudo era ação humana direta. Outra metade negou, de modo a dobrar o número de perdas. Não era a natureza cobrando, era consequência propriamente dita do que estamos fazendo. Uma ação leva a outra e o efeito cascata se impõe.
Nesse caso, a flexibilização de legislações urbanísticas e ambientais também foram determinantes para o estopim da crise sanitária, assim como o alargamento das autorizações de avanço do desmatamento, o assolamento de biomas inteiros, o passe livre à pecuária e a utilização dos recursos ambientais de forma predatória. E as decisões parecem tardar, sempre fora do tempo. “Parecem”, perdoem, é um eufemismo. Em grande medida as determinações são tardias, sempre com viés de interesse privado e de capital estrangeiro.
Sabe a teoria da diferenciação geopolítica do norte e sul global? A história se repete como tragédia.
Todos esses atos decorrem direta ou indiretamente de negligências, mas também de atos intencionais, dolosos, de cunho criminoso, até mesmo a própria ausência de atitude é um dado concreto de um projeto político neoliberal.
Nesse tempo tivemos de nos apropriar de conceitos, aprender o que significa o sistema de drenagem, o escoamento de uma cidade e a respectiva precarização da engrenagem que serve justamente para resguardo da população. Proteção à vida e a dignidade de viver. Quais as consequências da ausência de manutenção e da ausência de prioridade? Vale dizer, temos legislações urbanísticas, de saneamento e descarte de resíduos sólidos de referência internacional. Alguém consegue justificar a não aplicação? Interpretações deturpadas intencionalmente. Legislações ambientais flexibilizadas, vendidas.
Grande parte dos problemas das cidades não foi a chuva em excesso, foi a ausência de estrutura de contenção. Necessidade já alertada há décadas por pesquisadores, movimentos sociais e organizações em defesa do meio ambiente e da cidade. Foi a ocupação desenfreada do espaço que originalmente era dos cursos dos rios, arroios e lagunas. Será que entendemos o que significa o impacto social de um aterro? O que significa aterrar áreas que originalmente seriam de uma biodiversidade e das próprias águas. Elas estão ocupando o que sempre foi delas.
A manutenção de áreas de risco com habitações precárias é sim consequência de um estado fracassado. De uma política neoliberal criminosa. E fica a pergunta, quem pagará a reestruturação de comunidades inteiras? Quem as coloca em um espaço seguro e com suas relações que mantém uma existência digna. Moradia não é somente uma casa, cimento e engenharia. Moradia é lugar, pertencimento. História. É conexão com o meio. Quem se responsabiliza objetiva e subjetivamente por tudo isso? Sabemos muito bem quem deveria pagar a conta histórica.
* Sabrine Tams Gasperin é advogada, mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense, doutoranda em Políticas Sociais e Direitos Humanos pela UCPEL e integra o grupo de pesquisa Questão agrária, urbana e ambiental e o Observatório dos Conflitos da Cidade.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko