Onde vivem os homens, a ajuda só pode vir dos homens. Bertolt Brecht
Um dos principais debates após a tragédia climática que atingiu o Rio Grande do Sul nas últimas semanas foi sobre o papel do Estado na prevenção e no enfrentamento às inundações. Segundo dados da Defesa Civil Estadual, atualizados em 27 de maio, as enchentes afetaram 469 municípios e 2.345.400 pessoas, desalojando mais de 580 mil e causando 169 mortes, tendo ainda 56 pessoas desaparecidas e mais de 55 mil abrigadas.
Logo após a inundação de Porto Alegre, Canoas e outros municípios da região metropolitana, as redes sociais foram tomadas por vídeos de ações de resgates realizadas por cidadãos que cobravam a omissão dos governos, principalmente do governo federal e das Forças Armadas no socorro às pessoas que tiveram suas casas alagadas. Como se viu posteriormente, grande parte desses depoimentos tiveram origem de influencers e centros de irradiação da extrema-direita, preocupados não apenas em desgastar o governo Lula, mas em difundir a ideia da falência das instituições estatais no atendimento às necessidades da população, enaltecendo o “nós por nós” como estratégia de enfrentamento a tragédias que teriam sido ocasionadas pela própria omissão e falta de planejamento dos governos. Até governantes de direita, como Eduardo Leite e Sebastião Melo, foram massacrados pela extrema-direita nas redes sociais.
Por sua parte, a esquerda, além de se dedicar à iniciativas solidárias, como as cozinhas solidárias e distribuição de água e alimentos, focou na culpabilização de Eduardo Leite e Sebastião Melo como os grandes responsáveis por esta tragédia, pelo negacionismo climático e pela não destinação de recursos da Defesa Civil, no caso de Leite; e pela falta de manutenção das comportas e bombas que poderiam ter evitado a inundação do centro e vários bairros de Porto Alegre, no caso de Melo.
Longe de mim querer isentar Leite e Melo de suas responsabilidades, mas entendo que o foco exagerado nessa pessoalização impede uma avaliação mais profunda de um evento climático extremo, como o que tivemos agora e os dois eventos ocorridos no ano passado no Rio Grande do Sul. Também dificulta atentar para os limites do Estado no momento atual de uma acumulação capitalista predatória, a qual ameaça inviabilizar a própria vida humana em um planeta cada vez mais aquecido pela emissão de gases de efeito estufa.
Partindo da concepção do Estado capitalista como um locus de condensação de poder entre as diferentes frações de classe dominantes, entendo como equivocadas tanto a crítica da extrema direita, como a crença na ação estatal como única saída para o enfrentamento de crises e tragédias produzidas pelo sistema capitalista, ainda mais no estágio nomeado, muito apropriadamente, por Naomi Klein como “capitalismo de catástrofe”, ou seja, da utilização de tragédias como oportunidades de negócios, para acumulação de capital, assim como sempre foram e ainda são as guerras.
Naomi Klein exemplifica essa sua tese com a neoliberalização do controle dos recursos públicos destinados à reconstrução de New Orleans após o furacão Katrina, onde a população negra foi removida dos bairros centrais da cidade e privatizou-se a educação pública; ou no tsunami na Ásia em 2004, quando numerosas praias deixaram de ser públicas, e comunidades de pescadores foram removidas para permitir o acesso de grandes cadeias de hotéis.
O entendimento do papel do estado capitalista neste momento de avanço do neoliberalismo e do “capitalismo de catástrofe” é fundamental para entendermos a reação dos diferentes governos à tragédia climática no Rio Grande do Sul. O governador Eduardo Leite se apressou em clamar por um Plano Marshall de reconstrução do estado; o presidente Lula anunciou a destinação de volumosos recursos para esse fim, mas criou uma Secretaria Extraordinária com status de ministério para tratar da reconstrução; e o empresariado gaúcho apresentou uma lista de reivindicações que nem disfarça a intenção de obter vantagens com uma tragédia que atingiu principalmente as populações de baixa renda, que representam a grande maioria abrigada hoje.
O fato de a consultoria contratada para elaborar e gerenciar a reconstrução no Rio Grande do Sul ser a mesma que trabalhou na reconstrução de New Orleans aumenta ainda mais a possibilidade de utilização desta tragédia para avançar nas políticas neoliberais implantadas por Eduardo Leite e Sebastião Melo, como já foi aventada a possibilidade de construção de cidades de lona em pontos afastados dos bairros centrais de Porto Alegre e outros municípios da região metropolitana, o que representa claramente uma proposta higienista.
A partir do entendimento do contexto em que se situa a atual tragédia climática no Rio Grande do Sul, cabe às esquerdas não apostar todas as fichas no papel dos governos na reconstrução, mas avançar na auto-organização popular que está dando grande resposta no atendimento às populações desabrigadas, principalmente com a experiência das cozinhas solidárias. Nossa luta deve ser pela cobrança de participação nas decisões e transparência na execução das obras e iniciativas de reconstrução.
Ao contrário do "nós por nós" individualista da extrema direita, vamos seguir a máxima de Brecht, dos homens ajudando a si mesmos, mas os homens entendidos como a classe trabalhadora, construindo um outro mundo ainda possível e cada vez mais necessário, em comunhão com a natureza e livre da barbárie capitalista.
* Marcelo Soares é sociólogo e militante ecossocialista.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko