Rio de Janeiro

Coluna

Regularização fundiária em cheque: o que está por trás dos discursos e políticas de titulação?

Nesse contexto de acirramento das disputas em torno da regularização fundiária, é fundamental a defesa do seu sentido de garantia de direitos - Thiago Ripper/ RioOnWatch
As causas para a irregularidade fundiária são históricas e remontam ao nosso passado colonial

Tarcyla Fidalgo* e Felipe Litsek**

A informalidade na ocupação da terra é um dos traços mais marcantes das cidades brasileiras. Hoje, apesar da ausência de dados oficiais, estima-se que pelo menos 50% dos imóveis do país apresentam alguma forma de irregularidade, seja ela fundiária, urbanística, ambiental, registral, entre outras. Não estamos falando apenas de favelas, mas de todo o estoque fundiário nacional, incluindo imóveis de alta renda. 

Mas por que este fenômeno é tão comum? As causas para a irregularidade fundiária são históricas e remontam ao nosso passado colonial, que, após um longo período de privilégio da ocupação e efetivo uso, acabou por instituir um sistema fundiário caracterizado pelo registro e pela propriedade privada nos moldes da mercantilização da terra ao determinar sua transmissão primordialmente por meio da compra e venda.

Este paradigma foi instituído a partir da Lei de Terras, promulgada em 1850, que determinou a criminalização da posse e o afastamento de pessoas de baixa renda do direito formal à terra. Sem a possibilidade de acessar a moradia pelos meios legais, restou às classes populares ocupar espaços e erguer suas casas. A urbanização acelerada pela qual o Brasil passou no século XX intensificou este processo, já que não havia oferta de moradia para todos os trabalhadores que chegavam, resultando na proliferação de favelas e ocupações urbanas. 

Hoje, apesar do cenário legislativo ter sofrido profundas alterações, a prática ainda reforça a dimensão de irregularidade do estoque fundiário nacional. A Constituição de 1988 e importantes avanços legislativos, como o Estatuto da Cidade, garantem direitos fundiários aos ocupantes de territórios informais. Instrumentos como a usucapião especial urbana e a concessão de uso especial para fins de moradia buscam proteger o direito à terra dessa população.

De fato, muitos dos moradores de favelas e comunidades urbanas, bem como de habitantes de outras tipologias em exercício de comprovada função social, hoje já têm o direito de se tornarem formalmente donos dos seus imóveis, por meio da regularização fundiária. Mas isso não acontece, seja pela deficiência de políticas públicas, entraves judiciais ou interesses de natureza política. 

Tema em destaque nos dias atuais, a regularização fundiária está tanto nas bandeiras de movimentos de moradia quanto nos discursos de políticos e economistas neoliberais. O que explica essa contradição? É que existem diferentes visões sobre o seu significado. Alguns enxergam a regularização como uma política completa para territórios informais, o que inclui urbanização, melhorias habitacionais e ambientais, provisão de serviços públicos, entre outras medidas, o que chamamos de regularização fundiária plena. Outra visão defende que a regularização se resume a distribuir o título da propriedade para moradores, a regularização fundiária stricto sensu, ou dominial. 

Até 2017, o Brasil adotava a primeira visão, ainda que com sérias limitações em assegurar esse direito de maneira abrangente. A ênfase na titulação como finalidade prioritária da regularização fundiária ganha força com a aprovação da Lei 13.465/2017, atual marco da política nacional da REURB (Regularização Fundiária Urbana). Ela foi influenciada pelas ideias do economista peruano Hernando de Soto, responsável por implementar uma política de titulação em massa de favelas no Peru, sob a justificativa de que a garantia da propriedade para as camadas mais pobres seria, por si só, um caminho para a superação da pobreza por meio do “destravamento” da terra como ativo econômico.

Tratava-se de disseminar o ideário da terra e da moradia como mercadoria, com o objetivo de destacar seu aspecto patrimonial. O resultado da implementação das ideias de De Soto não foi o esperado, sendo certo que diversos estudos contestam a efetividade do título para fins de reduzir desigualdades e superar a pobreza, apontando que muitas comunidades permaneceram precarizadas mesmo após a formalização da propriedade. 

No âmbito do Rio de Janeiro, a questão fundiária é alvo de disputas - discursivas e práticas - entre diversos atores: políticos, empreendedores, ativistas sociais e integrantes de grupos armados. A titulação, promovendo a formalização da propriedade da terra, vem sendo entendida - para além de porta para sua mercantilização - como fonte de poder, levando as disputas territoriais a um patamar diverso do alcançado em outras partes do país.

O recente relatório final da polícia federal sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, ocorrido em 2018, é categórico ao enfatizar a importância das disputas fundiárias na motivação do crime. Do mesmo modo, relatório do IDMJ racial aponta a proliferação de legislações municipais sobre o tema propostas por vereadores ligados a grupos armados, com 89% dos pedidos para regularização fundiária tendo como objeto áreas da zona oeste da cidade, foco de atuação de grupos milicianos.

 

Levantamento aponta uma concentração de pedidos de regularização fundiária na Zona Oeste do Rio de Janeiro, área de expansão miliciana

Nesse contexto de acirramento das disputas em torno da regularização fundiária, é fundamental a defesa do seu sentido de garantia de direitos, trazendo a regularização fundiária para sua função precípua de garantia do direito à moradia e melhoria das condições de vida de moradores de áreas informais. Para isso, a simples aplicação da legislação federal não é o bastante. Em um cenário de privilégio da titulação, conforme anteriormente descrito, é necessário pensar em “camadas extras” de proteção aos moradores, em especial aqueles que habitam em áreas valorizadas/em valorização da cidade e que se mostram especialmente vulneráveis a processos de mercantilização e/ou elevação dos custos de vida.

Assim, também no Rio de Janeiro surge a proposta do Termo Territorial Coletivo (TTC), modelo de gestão territorial já existente e bem sucedido em diversos países do mundo que, a partir da regularização fundiária, busca garantir o fortalecimento comunitário e a acessibilidade econômica das moradias, em um arranjo jurídico que, sem inibir a liberdade de negociação, afasta a especulação imobiliária e se mostra como formato mais protetivo da moradia de populações vulnerabilizadas.

Cabe destacar que o TTC não é a única opção ou modelo, mas nos convida a pensar a questão fundiária a partir do paradigma da segurança da posse, priorizando a moradia em detrimento do controle territorial e da mercantilização da terra. É dessa regularização fundiária que precisamos, com urgência.

*Tarcyla Fidalgo é advogada, doutora em planejamento urbano e regional (IPPUR/UFRJ), mestra em sociologia urbana. Pesquisadora da Rede Observatório das Metrópoles (Núcleo RJ) e coordenadora da regional sudeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).

**Felipe Litsek é bacharel em direito, mestrando em planejamento urbano pelo IPPUR / UFRJ e pesquisador da rede Observatório das Metrópoles (Núcleo RJ)

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Revisão: Renata Melo 

Edição: Mariana Pitasse